Revista Pesquisa FAPESP, Julho de 2014
Se tudo correr conforme o planejado e não faltarem os recursos orçamentários previstos, em cinco anos o Brasil poderá se tornar autossuficiente na produção de radioisótopos, substâncias radiativas que podem ser usadas no diagnóstico e tratamento de várias doenças, além de ter aplicações na indústria, na agricultura e no meio ambiente. O governo federal deverá investir cerca de US$ 500 milhões, o equivalente a cerca de R$ 1,09 bilhão, na construção do Reator Multipropósito Brasileiro (RMB), um grande centro de pesquisa que será erguido no município de Iperó, na região de Sorocaba, a 130 quilômetros de São Paulo.
A construção do empreendimento é uma das metas do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) e está alinhado com o Programa Nuclear Brasileiro (PNB). “Além de produzir radioisótopos para aplicações na saúde, na indústria e na agricultura, o reator realizará testes de combustíveis e materiais estruturais para centrais nucleares”, explica o coordenador técnico do projeto, José Augusto Perrotta, assessor da presidência da Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), órgão do MCTI responsável pela realização do RMB. “O reator também fornecerá feixes de nêutrons para estudos científicos e tecnológicos e formará e treinará profissionais para atender às necessidades do PNB.”
Entre os produtos mais importantes do novo reator de pesquisa brasileiro estará o radioisótopo molibdênio-99 (99Mo), que é produzido a partir da fissão do urânio-235 (235U). Com o 99Mo é construído um dispositivo denominado “gerador de tecnécio”. O tecnécio-99m (99mTc, m de metaestável) é um radioisótopo que é a base de radiofármacos utilizados em cerca de 80% dos procedimentos de diagnósticos da medicina nuclear.
No Brasil, são realizados cerca de 2 milhões de procedimentos dessa área médica por ano. “O país precisa importar todo o molibdênio-99 de que necessita”, diz Perrotta. “Em 2013, foram importados em torno de 21 mil curies [curie (Ci) é a unidade de medida de atividade radioativa] de 99Mo, a um custo total de US$ 10,1 milhões.” Segundo ele, o RMB deverá produzir no mínimo mil curies por semana de molibdênio-99, o que corresponde a cerca de 50 mil curies por ano.
Hoje existem no mundo entre 240 e 250 reatores nucleares de pesquisa em operação e alguns produzem radioisótopos para as mais diversas aplicações. Para a medicina nuclear, só o Canadá responde por 40% da produção mundial. Quando, em 2009, o principal reator canadense teve problemas e ficou inoperante temporariamente, houve uma grande queda da oferta, o que levou a uma crise nessa área da medicina. O problema pode se tornar mais grave em poucos anos porque a maioria dos reatores em atividade está perto do fim de sua vida útil e será desativada.
O RMB e seus laboratórios associados – de processamento de radioisótopos, de análise de materiais irradiados e de feixes de nêutrons – serão instalados numa área de 2 milhões de metros quadrados (m2), adjacente ao Centro Experimental de Aramar, da Marinha do Brasil, que cedeu para o RMB um terreno de 1,2 milhão de m2. Os outros 800 mil m2 serão desapropriados pelo governo do estado de São Paulo e também cedidos ao empreendimento.
Quanto ao reator propriamente dito, Perrotta explica que ele será do tipo de piscina aberta, no qual a água é usada como moderadora de nêutrons, blindagem para radiação e refrigeração, na retirada do calor gerado nas reações nucleares. “A água mantém a temperatura do reator menor que 100ºC, o que dá maior segurança ao sistema”, diz Perrotta. “Esse tipo de reator é mais simples do que os das usinas nucleares. O grau de segurança e confiabilidade é maior e por isso eles podem ficar em centros de pesquisa e universidades próximos de cidades.”
O novo reator terá uma potência térmica de até 30 MW, o que o situa entre os de tamanho intermediário no mundo. “O RMB tem como referência o projeto do reator Open Pool Australian Lightwater (Opal), da Austrália, com potência de 20 MW, inaugurado em 2007”, conta Perrotta. “O projeto básico do nosso reator foi desenvolvido em cooperação entre a CNEN e sua similar da Argentina, a Comisión Nacional de Energía Atómica (CNEA). Para isso, foi contratada a empresa argentina Invap, a mesma que fez o da Austrália.” O CNEA também está construindo um reator semelhante ao RMB, e a cooperação contribui para diminuir os custos dos dois. Para o projeto básico de engenharia e infraestrutura dos prédios do reator brasileiro e dos laboratórios e de todos os sistemas associados foi contratada a empresa brasileira Intertechne.
Para o projeto básico de engenharia foram destinados R$ 50 milhões do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), que é uma reserva de recursos para financiamento do setor de pesquisa, desenvolvimento e inovação, administrado pela Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), ligada ao MCTI. Paralelamente ao projeto básico, há uma série de estudos e relatórios de impactos ambientais e pedidos de licença para a construção do RMB, nos quais foram investidos R$ 2,7 milhões do orçamento da CNEN.
A produção do 99Mo no RMB inclui uma série de etapas inerentes ao ciclo do combustível nuclear. “O minério é retirado da mina e processado de forma a se obter um concentrado de urânio chamado yellowcake”, explica Perrotta. O processo a seguir, que tem tecnologia já dominada pelo país, é realizado em várias fases e resulta em pequenas placas, chamadas de alvo, que contêm urânio enriquecido disperso em seu interior.
Os alvos são irradiados no reator por uma semana para produzir os elementos radiativos provenientes da fissão do urânio, dentre eles o 99Mo. Esses alvos depois são dissolvidos no laboratório de processamento, gerando uma solução de alta pureza de 99Mo, que é enviada para a radiofarmácia que produz radiofármacos. Lá, é produzido o dispositivo denominado “gerador de tecnécio”.
É esse gerador de tecnécio que é distribuído aos hospitais e clínicas. “Por meio do gerador de tecnécio, o médico especialista extrai soluções calibradas contendo o tecnécio-99m e que, associadas a moléculas orgânicas específicas, são utilizadas para diagnóstico de medicina nuclear”, explica Perrotta.
Diferenças do uso
Para isso, o médico injeta essa solução, que, de acordo com a fisiologia do organismo humano, por meio de afinidades e rejeições com os vários tipos de células, se dirige ao órgão ou região que se quer diagnosticar. A maneira de fazer o diagnóstico em medicina nuclear é diferente da que emprega raios X, em que a radiação atravessa a pessoa sem deixar vestígios e sensibiliza um filme fotográfico. O tecnécio-99m é um emissor de radiação gama. Ao ser injetado no paciente, passa a emitir radiação de dentro do corpo da pessoa, que é captada exteriormente por detectores de radiação.
O médico Celso Dario Ramos, presidente da Sociedade Brasileira de Medicina Nuclear (SBMN), diz que radioisótopos, como o tecnécio-99m, são fundamentais para o diagnóstico de muitas doenças. Outros radioisótopos, como o iodo-131 e o lutécio-177, que também serão produzidos no RMB, possibilitam o tratamento de várias doenças, como o câncer de tiróide e tumores neuroendócrinos. “Com o tecnécio-99m é possível fazer imagens que permitem enxergar o metabolismo celular em tecidos vivos”, explica. “Com os diversos radiofármacos é possível ver a distribuição de um determinado hormônio pelo corpo ou o consumo de glicose em uma região, o que pode revelar a presença e a agressividade de um tumor, por exemplo. Os radiofármacos possibilitam ainda enxergar o funcionamento de órgãos internos, como ossos, pulmões, coração, cérebro, fígado e rins.”
No caso do tecnécio-99m, ele tem uma vantagem adicional: uma meia-vida curta. Meia-vida é o tempo que leva para um elemento radiativo perder (emitir na forma de radiação) metade de seus átomos. “A do urânio-235, por exemplo, é de 700 milhões de anos e a do césio-137, 30,2 anos”, informa Perrotta. “A do iodo-131, outro elemento usado na medicina nuclear e que também será produzido no RMB, é de 8,02 dias e a do tecnécio-99m é de apenas seis horas. Quer dizer, a cada seis horas a intensidade da radiação no corpo da pessoa é reduzida à metade, em dois ou três dias não restará praticamente qualquer intensidade radioativa.”
O fluxo de nêutrons de grande intensidade gerado no RMB servirá para testar combustíveis e materiais usados nos reatores de geração de energia elétrica, como nas centrais nucleares de Angra dos Reis (RJ) e de propulsão, como a que será usada no protótipo do submarino nuclear que a Marinha está desenvolvendo. “O RMB propiciará segurança técnica a esses projetos, garantindo a continuidade no desenvolvimento do conhecimento nuclear do país”, diz Perrotta. “Por fim, ele abrigará um laboratório de uso de feixes de nêutrons em pesquisas de materiais em complemento ao Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), de Campinas, no interior paulista. Se não avançarmos neste setor, acabaremos à margem do desenvolvimento mundial e ficaremos à mercê do que existe no exterior.”
Por isso, Ramos, que também é diretor do Serviço de Medicina Nuclear da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), considera “muitíssimo importante” para o Brasil a construção do RMB. “O impacto não se dará somente na medicina nuclear, mas também na física, química, engenharia e biologia e outras áreas de pesquisa”, diz. “O reator não servirá apenas para produzir radioisótopos. Ele será um grande centro de pesquisa, com uma importância tão grande quanto a do LNLS.”
Para Perrotta, o RMB vai contribuir para que a região onde será instalado se torne um polo de tecnologia nuclear no Brasil.
Repercussão: ABEN