G1 em 23/10/2020
Governo havia anunciado bons resultados do uso de nitazoxanida para tratar Covid-19, mas artigo sobre estudo só foi publicado nesta sexta, ainda sem revisão. ‘[Resultado] é muito pouco para a gravidade da doença’, afirma infectologista.
Anunciado pelo governo federal como medicamento capaz de tratar a Covid-19, o vermífugo nitazoxanida reduz a carga viral, mas não atende aos objetivos principais do tratamento, como redução de desfechos graves (como necessidade de oxigênio e evolução para respirador mecânico) e risco de vida. Essa é a avaliação de especialistas ouvidos pelo G1.
Na segunda-feira (19), o ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, afirmou que uma pesquisa coordenada pela pasta mostrou que o medicamento apresentou resultados positivos no tratamento precoce de pacientes com Covid-19. O ministro, no entanto, não deu detalhes.
Nesta sexta-feira (23), um artigo do estudo foi publicado, mas ainda sem revisão. Os especialistas ouvidos pelo G1 fizeram uma análise da publicação.
“O objetivo principal do estudo, reduzir mortes e sintomas graves da Covid-19, não foi alcançado. Foi apresentado apenas um objetivo secundário, de que o medicamento é capaz de reduzir a carga viral. Isso, na prática, não resolve o problema do coronavírus”, afirma o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Universidade de São Paulo.
Redução da carga viral
De acordo com a publicação, a nitazoxanida reduziu a carga viral em pacientes com sintomas leves e diminuiu a febre em pacientes no início do tratamento.
O virologista Anderson Brito, do departamento de epidemiologia da Escola de Saúde Pública da Universidade de Yale, nos Estados Unidos, explica que a carga viral é uma medida aproximada da quantidade de vírus em uma amostra extraída do paciente.
“Essa medida é feita medindo-se a quantidade de material genético do vírus por mL”, diz. “Em casos graves, há estudos mostrando uma associação entre carga viral e risco de vida. Não é esse o caso desse estudo, que focou em casos leves da Covid”, explica Brito.
“A nível de tratamento da Covid, o benefício do uso da droga parece ser muito baixo. Como são indivíduos com casos leves, essa redução na carga viral não traria grandes reflexos a nível de transmissão da doença”, conclui o virologista.
Hospitalizações e sintomas graves
O infectologista Alberto Chebabo, diretor da Divisão Médica do Hospital Universitário da Universidade Federal do Rio de Janeiro (URFJ), avalia que o medicamento não foi capaz de reduzir hospitalizações nem sintomas graves.
“O artigo não demonstrou que a nitazoxanida seja capaz de reduzir risco de morte ou desfechos graves, como necessidade de oxigênio e evolução para respirador mecânico. Apenas diminuiu a ocorrência de febre e baixou a carga viral. Isso é muito pouco para a gravidade da doença”, afirma Chebabo.
“É um trabalho bem feito, que mostra que o medicamento tem uma atividade antiviral, que foi a de reduzir a carga viral, mas não sabemos o que isso quer dizer na prática, precisa de mais investigação. Não dá para afirmar que diminuiu risco de contágio somente por diminuir carga viral e que não precisa mais fazer isolamento”, explica Chebabo.
O artigo com os resultados foi publicado em versão pré-print na plataforma medRxiv e segue em avaliação por uma revista científica. O estudo foi coordenado pela pesquisadora Patrícia Rieken Macedo Rocco, chefe do Laboratório de Investigação Pulmonar do Instituto de Biofísica Carlos Chagas Filho (IBCCF) da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que participou da cerimônia do governo federal de divulgação da pesquisa. (Veja mais abaixo)
Voluntários receberam kit com nitazoxanida para estudo clínico em Bauru, uma das cidades que participou do estudo do Ministério. — Foto: Alisson Negrini/TV TEM
Questionado se faz sentido o nitazoxanida entrar para o protocolo de tratamento da Covid-19, de acordo com o demonstrado no artigo, Chebabo afirma que não, e compara o medicamento com o antiviral remdesivir.
“Os efeitos apontados no tratamento com nitazoxanida são mínimos, não justifica uma produção em massa e adoção em tratamentos. Porém, tem atividade antiviral, então pode ser mais estudado”, diz.
“A título de comparação, é muito melhor que cloroquina, que é cara e não tem efeito. Ou, então, podemos comparar com o remdesivir, que tem algum efeito, mas não tem impacto nos casos graves e em diminuição de mortes”, compara Chebabo.
Brito também compara a droga com o remdesivir.
“O que se está tentando fazer é adaptar uma droga existente para tentar identificar algum efeito positivo, como o que se tem feito com o remdesivir, desenhada para o vírus Ebola, e que tem sido usada contra o SARS-CoV-2, porém com efeitos muito marginais, não é a bala de prata”, explica Brito.
“Não é como o Tamiflu, por exemplo, que foi criado do zero, especificamente para interferir no ciclo viral do vírus da gripe”, ressalta o virologista.
Gráfico ‘ilustrativo’ sem dados
Na segunda-feira (19), o ministro de Ciência, Tecnologia e Inovação, Marcos Pontes, e o presidente Jair Bolsonaro anunciaram a conclusão do estudo em questão e apenas disseram, sem mostrar dados, que o medicamento apresentou “resultados positivos”.
Sem dar detalhes dos resultados ou apresentar a íntegra do estudo, o governo informou que os testes clínicos com voluntários mostraram que o medicamento reduziu a carga viral quando foi tomado em até 3 dias depois do início dos sintomas.
Presidente Jair Bolsonaro e o Ministro Marcos Pontes durante visita ao Sirius, no CNPEM, em Campinas — Foto: Ricardo Custódio / EPTV
Segundo o governo, o trabalho havia sido submetido para a análise de uma revista científica e, por isso, o ministério não podia dar detalhes dos resultados.
Durante o anúncio, o governo apresentou um vídeo que mostra a trajetória da pesquisa. Nele, os organizadores exibiram um gráfico sem dados, idêntico ao disponível no serviço de banco de imagens ShutterStock.
As imagens são exibidas quando o narrador afirma que “a missão dada ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Informação foi cumprida” e “o resultado comprovou de forma científica a eficácia do medicamente na carga viral.”
Animação mostra gráfico utilizado por vídeo do Ministério da Ciência e Tecnologia disponível no banco de imagens Shutterstock — Foto: Reprodução/Ministério da Ciência e Tecnologia; Reprodução/Shutterstock
Medicamento com receita
A nitazoxanida é um medicamento utilizado no Brasil pelos nomes comerciais Azox e Annita e faz parte do grupo dos antiparasitários e vermífugos. O remédio também tem ação antiviral e é receitado em casos de rotavírus.
Para evitar automedicação, a droga passou a ser vendida apenas com prescrição médica em abril deste ano. Entretanto, uma decisão da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) de 1º de setembro retirou a exigência de retenção da receita.
O medicamento contendo nitazoxanida, disponibilizado comercialmente, não tem a indicação para o coronavírus, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS).
1,5 mil voluntários
Segundo o ministro Marcos Pontes, mais de 1.500 voluntários de sete cidades do Distrito Federal, de São Paulo e do Rio de Janeiro participaram do estudo clínico. Eles foram divididos em dois grupos: um tomou a nitazoxanida e o outro tomou um placebo. Segundo o governo, o grupo que recebeu o medicamento apresentou diminuição da carga viral.
Segundo a coordenadora geral do estudo, Patrícia Rieken Macedo Rocco, “houve uma redução significativa da carga viral neste grupo”.
Repercussão: Russas News; Resende News; Portal 24h; O Sul