Folha de S.Paulo, 21/04/2015
Reinaldo Lopes
Graças a seu coração de pedra, o Rhacolepis buccalisdeve entrar para a história da paleontologia. E não porque esse peixinho de 115 milhões de anos fosse especialmente malvado. Pesquisadores brasileiros descobriram que o coração do bicho ficou preservado em fósseis da espécie – é o primeiro caso registrado no mundo.
A descoberta é importante não apenas por ser a primeira do gênero, mas também por mostrar que a evolução dos seres vivos não é uma eterna marcha rumo a espécies mais complexas, como muita gente acredita.
Ocorre que o coração do peixe tem uma estrutura intermediária entre formas mais primitivas, porém mais complicadas, e outras que apareceram depois, mas são mais simples – ou seja, ao menos no caso do coração, houve uma perda de complexidade com o passar de milhões de anos.
É claro que encontrar um coração fossilizado, com estruturas internas que podem ser examinadas em detalhe, foi uma surpresa – mas o local de origem do fóssil já dava margem para esperança desde o começo. É que o R. buccalisvem da chapada do Araripe, um pedaço do atual sertão nordestino que, durante a Era dos Dinossauros, ficava à beira-mar e estava repleto de lagunas de água salobra (nas quais nadavam os membros da espécie). As condições geológicas especiais do Araripe permitiram a preservação de tecidos moles – como músculos, pele e penas – de diversos animais do passado. Os mais vistosos são os pterossauros (répteis alados), enquanto os peixes extintos estão entre os mais abundantes.
Para conseguir enxergar detalhes mínimos do interior do fóssil, a equipe coordenada precisou contar com a ajuda dos raios X altamente energéticos produzidos pelo LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron), em Campinas. Com eles, foi possível fazer uma espécie de tomografia do fóssil, com um nível de detalhamento muito superior ao dos melhores tomógrafos disponíveis para uso médico – a resolução é de poucos micrômetros, ou milésimos de milímetro.
“O nível elevado de energia é necessário para atravessar materiais duros feito rocha, como é o caso dos fósseis”, explica José Xavier-Neto, do LNBio (Laboratório Nacional de Biociências), que coordenou o estudo sobre o “coração de pedra” que acaba de ser publicado na revista científica “eLife”.
Num raio-X convencional, o que um médico enxerga é basicamente como cada parte do corpo absorve com diferentes intensidades os raios emitidos pelo aparelho. Para o nível de detalhamento que os pesquisadores queriam obter, no entanto, só esse processo não basta, conta Harry Westfahl Junior, diretor científico do LNLS. É necessário tirar partido da refração – o mesmo processo que faz com que as ondas de luz que vêm do ar e entram na água mudam de velocidade, de forma que uma caneta colocada dentro de um copo d’água parece “quebrada”.
Como os raios X também são essencialmente ondas de luz, embora muito mais energéticas que a luz visível, a mesma coisa acontece quando elas atravessam meios diferentes – e isso pode trazer muito mais informações sobre diferentes componentes de um fóssil – ou de qualquer outro objeto.
Verifique infográfico neste link: https://infogr.am/gvMkvGpWq71jKlzO.
VALVAS
Do tamanho de um piau ou piabinha modernos (cerca de 15 cm), o R. buccalispertencia a um subgrupo primitivo dos teleósteos, os peixes que predominam nos mares e rios de hoje (um de seus parentes vivos relativamente mais próximos é o camarupim, apreciado por sua carne e ovas), diz Murilo Carvalho, outro dos autores da pesquisa. Estudar o coração de uma espécie extinta há tanto tempo seria crucial para entender como os peixes mais primitivos vivos hoje acabaram ficando com uma anatomia cardíaca mais complicada do que a dos peixes que surgiram depois ao longo da evolução.
O cerne dessa transição são as valvas (conjunto de válvulas) que, nos peixes mais primitivos, estão presentes no ponto em que o sangue é bombeado para fora do coração. Essas valvas (são abundantes em tais peixes, mas nas espécies “avançadas” acabaram sendo substituídas por uma estrutura simples, sem valvas.
A análise por tomografia mostrou que o coração da espécie extinta tinha cinco válvulas – o que sugere um processo gradual de perda dessas estruturas até surgirem os parentes modernos do Rhacolepis buccalis, sem nenhuma válvula.
“Eu gosto de fazer uma analogia com a tecnologia de aviação”, diz Xavier-Neto. “Havia um caça americano muito bom, o F-14, cujas asas tinham geometria variável – em velocidades normais elas ficavam estendidas e, quando o piloto queria atingir velocidades supersônicas, encolhia parte das asas. Funcionava muito bem, até descobrirem que dava para ter o mesmo desempenho com uma única configuração de asa.”
O mesmo talvez valha para o coração dos peixes, sugere o pesquisador – produzir estruturas detalhadas na saída do sangue do órgão talvez exigisse um gasto de energia do organismo que poderia ser dedicado a outros fins, mais ou menos como os peixes que vivem em cavernas e acabam sendo conduzidos, pela seleção natural, a perder a visão ao longo das gerações.
GOSTINHO DE SIRIUS
Tudo indica que o achado é só um gostinho do que está por vir com a construção do Sirius, uma nova fonte de luz síncrotron que está sendo construída em Campinas e permitirá análises de fósseis, e de inúmeros outros materiais, com precisão muito superior à alcançada hoje pelo LNLS. Espera-se que o Sirius comece a operar em 2019.