Revista Pesquisa FAPESP, 18 de junho de 2018
Demora em alcançar a viabilidade econômica do etanol de segunda geração afasta investidores, mas algumas empresas persistem na corrida
A corrida para produzir comercialmente o etanol de segunda geração, obtido a partir de celulose, está durando bem mais do que o esperado. Vários competidores desistiram no meio do caminho e hoje vive-se um momento decisivo, com disputa pela liderança. Três plantas industriais parecem estar próximas de atingir um estágio de eficiência tecnológica e viabilidade econômica. Duas delas estão no Brasil: uma da Raízen, em Piracicaba (SP), e outra da GranBio, em São Miguel dos Campos (AL). Ambas utilizam como matéria-prima resíduos da cana-de-açúcar, como palha e bagaço, que sobram da produção tradicional de bioetanol. A terceira, do consórcio Poet-DSM, funciona em Emmetsburg, no estado norte-americano de Iowa, e converte restos da produção de milho em combustível.
A persistência das três empresas é extraordinária em um ambiente que vem acumulando expectativas frustradas. Uma década atrás, evidências de que já existia tecnologia madura para produzir biocombustíveis em grande escala a partir de matéria-prima farta – como madeira ou resíduo agrícola – atraíram um considerável volume de capital de risco, investido na construção do que seriam as primeiras plantas comerciais. O preço alto do petróleo – com picos acima de US$ 100 por barril entre 2008 e 2011 – e os fortes incentivos públicos nos Estados Unidos para a produção de etanol de segunda geração tornavam o cenário ainda mais atraente. Mas a decisão de construir as usinas mostrou-se muito mais arriscada do que o esperado. Obstáculos nos processos de produção, que impediam o funcionamento contínuo dos equipamentos, associaram-se aos custos altos de alguns dos insumos, mostrando que faltavam pesquisa e investimentos para construir uma trajetória mais competitiva.
Seguiu-se um período depressivo. Segundo dados da consultoria Bloomberg New Energy Finance, os investimentos globais em biocombustíveis de nova geração, que chegaram perto de US$ 3 bilhões em 2011, caíram para menos de US$ 1 bilhão em 2013 e pouco mais de meio bilhão em 2016. Empresas reviram seus planos. O grupo espanhol Abengoa fechou em 2015 sua usina em Hugoton, Kansas, Estados Unidos. Em novembro passado, a multinacional DowDuPont colocou à venda, por US$ 225 milhões, sua planta de etanol celulósico na cidade de Nevada, em Iowa, Estados Unidos, e ainda não conseguiu um comprador. A empresa anunciou que continuará no mercado de biocombustíveis oferecendo insumos especializados, como leveduras geneticamente modificadas capazes de melhorar o rendimento dos produtores. A unidade tem capacidade para produzir 110 milhões de litros de etanol por ano, mas nunca operou comercialmente.
Startups criadas nos Estados Unidos para dar suporte à indústria acabaram corrigindo seus planos de negócio, caso da Solazyme, de São Francisco, que se dedica à produção de alimentos, ou da Amyris, de Emeryville, Califórnia, que agora fabrica cosméticos, fragrâncias e medicamentos contra a malária. “O caminho para o desenvolvimento da tecnologia tem sido mais longo e substancialmente mais dispendioso do que havia sido antecipado pelos especialistas”, afirma o engenheiro Viler Janeiro, diretor de negócios de etanol celulósico do Centro de Tecnologia Canavieira (CTC), empresa de biotecnologia que construiu uma planta de demonstração no município paulista de São Manuel.
Na produção de etanol de primeira geração, apenas um terço da biomassa é utilizada, por meio da fermentação da sacarose do suco da cana. O desafio, na segunda geração, é aproveitar também o bagaço e a palha, fontes de celulose, hemicelulose e lignina, que respondem pelos outros dois terços da energia da planta e não são metabolizados no sistema convencional. De modo geral, as tecnologias aplicadas nas usinas de segunda geração submetem a biomassa a um pré-tratamento, para quebrar a estrutura do material lignocelulósico; a processos de hidrólise, em que enzimas são utilizadas para converter polímeros de celulose e hemicelulose em açúcares; e de fermentação, com uso de leveduras modificadas geneticamente que transformam os açúcares provenientes da biomassa em etanol. O desenvolvimento de leveduras avançou de forma desigual no aproveitamento da celulose e da hemicelulose. Há microrganismos mais eficientes na quebra das hexoses, açúcares de seis carbonos originários da celulose, do que na das pentoses, açúcares de cinco carbonos provenientes da hidrólise da hemicelulose. Outro gargalo importante para atingir a viabilidade econômica se relaciona ao custo das enzimas necessárias para gerar os açúcares, considerado ainda muito elevado.
Para o engenheiro químico Carlos Eduardo Vaz Rossell, é crucial melhorar a eficiência das enzimas e reduzir seu preço. “O Brasil tem uma vantagem, que é a disponibilidade de um grande volume de biomassa na própria usina na forma de bagaço. Isso ajuda na busca da viabilidade econômica e justifica novos investimentos em pesquisa”, diz Rossell, que coordenou entre 2010 e 2016 a planta-piloto do Laboratório
Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), vinculado ao Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas.
Já em relação ao aproveitamento da palha, há desafios de ordem logística – ela tem que ser retirada do campo e trazida para a usina – e de produtividade. O engenheiro químico Antonio Bonomi, coordenador da divisão de inteligência de processos do CTBE, afirma que ainda não se sabe ao certo o quanto de palha deve ser retirado dos canaviais para utilizar como matéria-prima. “A manutenção de parte da palha melhora a produtividade da cana, preservando a umidade e os nutrientes.” Somados a esses desafios, surgiram problemas de engenharia que não haviam sido previstos, alguns de solução cara e complexa, que impediram o funcionamento da maioria das plantas no prazo estipulado.
O custo das enzimas necessárias para produzir etanol de segunda geração ainda é elevado
Artur Milanez, gerente de biocombustíveis do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), discorda da percepção corrente de que a demora na viabilidade econômica signifique um fracasso da tecnologia. “Estamos vivendo a fase final de pesquisa e desenvolvimento (P&D). É comum, quando são testadas rotas tecnológicas, ocorrer um processo de afunilamento até chegar ao processo mais eficiente”, afirma. Em 2011, o BNDES e a Financiadora de Estudos e Projetos (Finep) empenharam R$ 3 bilhões no Plano Conjunto de Apoio à Inovação Tecnológica Industrial dos Setores Sucroenergético e Sucroquímico (Paiss), para o desenvolvimento de novas tecnologias de processamento da biomassa de cana. Na carteira de projetos apoiados estavam a Raízen e a GranBio, ao lado de empresas como a Abengoa, o CTC, a Petrobras, entre outros.
Quem parece mais perto de alcançar a escala comercial é a Raízen. Joint venture da brasileira Cosan e da multinacional Shell, a empresa montou em 2014 uma planta em Piracicaba que produz ao mesmo tempo as duas gerações do combustível. Na última safra, produziu 12 milhões de litros de etanol celulósico – a meta é atingir 25 milhões de litros neste ano e 40 milhões de litros, capacidade total instalada, no ano que vem. A Raízen valeu-se de um investimento feito na década passada pela Shell: a participação na empresa Iogen Energia, que tem uma planta-piloto de etanol extraído de palha de trigo em Ottawa, no Canadá. “Fizemos uma análise da viabilidade da tecnologia e vimos que era interessante”, conta Antonio Stuchi, diretor-executivo de Tecnologias e Projetos da Raízen.
No Canadá, a ideia de aproveitar a palha de trigo não vingou: o processo demandava uma quantidade de água considerada antieconômica. Mas o conhecimento foi útil para a estratégia da Raízen. “Tínhamos dúvida se as enzimas teriam eficiência e estávamos no escuro em relação à capacidade das leveduras de atuar sobre as pentoses”, lembra. Nenhum desses temores se concretizou. “Mas fomos pegos de surpresa com problemas de engenharia.” O elevado nível de sujeira na biomassa levou à criação de uma etapa de pré-limpeza. Também foi preciso redesenhar o processo de separação de açúcares e de lignina e introduzir mais filtros e centrífugas. Mas o principal problema era a corrosão dos equipamentos no pré-tratamento, levando a uma operação intermitente. “A agressividade da palha da cana, rica em sílica, era muito maior do que a da palha de trigo”, afirma Stuchi.
O engenheiro-agrônomo Gonçalo Pereira, professor do Instituto de Biologia da Unicamp que foi cofundador e cientista-chefe da GranBio, observa que as empresas cometeram o erro de transferir tecnologias de plantas-piloto para usinas sem testá-las em um nível intermediário. “Acreditava-se que o grande gargalo estaria nas etapas biotecnológicas, de enzimas e leveduras, que foram superadas. Ninguém imaginou que haveria problemas na parte mecânica do processo, nos equipamentos do pré-tratamento”, diz. Segundo ele, apostou-se que o comportamento da celulose na indústria de papel se repetiria. “Enquanto a estrutura da lignocelulose da madeira repele água e amolece no pré-tratamento, o bagaço de cana funciona como uma esponja e forma uma espécie de mingau com fibras e sílica. Esse material não consegue ser facilmente transportado ou desaguado, levando à erosão, ao entupimento de canalizações e válvulas, e ao travamento de roscas”, afirma.
Os problemas enfrentados pela Raízen na operação experimental de segunda geração não impediram a usina de seguir produzindo na primeira geração – enquanto os concorrentes montaram unidades exclusivas de etanol celulósico e não conseguiam fazê-las funcionar. Stuchi explica que a estratégia de produzir os dois tipos de etanol permitiu várias sinergias. “Na primeira geração, obtemos um excedente de biomassa que faz parte do custo operacional. Aproveitamos essa matéria-prima, que está na usina, para o etanol de segunda geração. Também há processos convergentes de fermentação e destilação. Outro ponto é a demanda por água. Parte-se de biomassa sólida e é necessário fazer sua diluição – e eu posso utilizar a água evaporada na unidade de primeira geração. Isso ajudou a conter a necessidade de investimentos complementares e a demonstrar aos acionistas que nossos processos poderiam ser mais competitivos.” A produção conjunta de primeira e de segunda geração está sendo útil para garantir a sustentabilidade do processo, mas isso não significa que o modelo híbrido será dominante. “A vantagem de uma planta que opera apenas a segunda geração é que ela teria mais flexibilidade para produzir, trazendo matéria-prima de outras culturas adequadas ao processo produtivo”, diz Artur Milanez, do BNDES.
Um expediente adotado na montagem das usinas de segunda geração foi combinar tecnologias licenciadas de outras empresas. Milanez lembra que existia uma crença de que o Brasil poderia se valer das tecnologias desenvolvidas no exterior, bastando eventuais ajustes de “tropicalização”. “Sempre acreditamos que as adequações às características da biomassa brasileira seriam um desafio e o sucesso da Raízen mostra que era indispensável criar soluções localmente”, afirma.
A GranBio comprou licenças de várias tecnologias para estabelecer sua usina em Alagoas, a Bioflex. A DSM, da Holanda, forneceu a primeira levedura testada, a Novozymes, da Dinamarca, enzimas para hidrólise, enquanto a italiana Mossi Ghisolfi (MG) foi a responsável pelos sistemas de pré-tratamento e hidrólise. A tecnologia não funcionou como o prometido, em especial o pacote adquirido do grupo da Itália. “O que se viu no primeiro momento foi um autêntico colapso do sistema”, reconhece Bernardo Gradin, presidente da GranBio. Para complicar a situação, a GranBio perdeu seu principal interlocutor junto à MG com a morte trágica de um dos donos do grupo, Guido Ghisolfi, um aparente suicídio, em março de 2015, apenas quatro meses após a Bioflex iniciar seus testes. “Passamos quase um ano sem poder tocar na planta, que estava passando por perícias. O pioneirismo exigiu muito mais paciência do que imaginávamos.”
A disputa foi parar em uma corte de arbitragem em Londres e o caso deve ter uma solução negociada em breve. No final de 2017, a empresa italiana entrou em recuperação judicial e interrompeu as atividades da planta que havia construído na cidade de Crescentino para produzir etanol a partir de palha de arroz e de trigo, e de cana-do-reino. Além dos R$ 750 milhões gastos na construção da planta e do sistema de cogeração de energia, a GranBio investiu R$ 150 milhões em P&D, o que envolveu uma equipe de 45 pesquisadores e a aquisição de patentes complementares, com apoio financeiro da Finep. Também investiu mais R$ 40 milhões em P&D para o desenvolvimento de variedades da chamada cana energia, capaz de fornecer mais de 2,5 vezes biomassa do que a cana tradicional.
Agressividade da palha de cana, rica em sílica, causou erosão nos equipamentos de pré-tratamento
Hoje, pouca coisa sobrou na Bioflex do pacote oferecido pelos italianos. Um novo processo de pré-tratamento foi desenvolvido e a hidrólise enzimática estendida. A M&G prometia promover a hidrólise em apenas 19 horas, enquanto a tecnologia atual requer entre 48 e 90 horas. Para dar suporte ao novo processo, foi necessário construir seis tanques de fermentação além dos dois que existiam, a fim de abrigar a biomassa por um período maior e adequar o sistema de efluentes. A GranBio investiu em tecnologia própria – criou, por exemplo, leveduras em parceria com a Unicamp – e foi buscar tecnologia fora: investiu em uma empresa norte-americana, a American Process Inc. (API), que havia desenvolvido plataformas de pré-tratamento de biomassa para produção de açúcar celulósico. Detém hoje mais de uma centena de patentes nos Estados Unidos.
A corrosão dos equipamentos também foi um problema sério para a empresa. Em um processo conhecido como explosão de vapor (steam-explosion), em que a biomassa é submetida a condições de temperatura e de pressão muito elevadas e sofre descompressão repentina, o choque do material com as paredes dos equipamentos do pré-tratamento provocava avarias quase diárias, interrompendo a produção. Foi necessário simplificar o processo, eliminando uma de suas etapas. “Saímos de uma tecnologia que se mostrou inviável, com dois estágios de pré-tratamento, sendo um deles com a steam-explosion, para uma tecnologia com um único estágio de cozimento menos severo, conhecido como LHW (Liquid Hot Water), acrescido de uma etapa de tratamento mecânico das fibras usando um equipamento específico para esse fim”, explica Gradin. Com isso, a planta começou a operar: em 2017, atingiu capacidade para 28 milhões de litros de etanol de segunda geração – 5 milhões de litros foram exportados para os Estados Unidos.
Para assegurar a viabilidade comercial, são necessários mais recursos – R$ 35 milhões neste ano e R$ 45 milhões em 2019 – para alcançar uma produção de 45 milhões de litros e 60 milhões de litros, respectivamente. Em agosto, Gradin vai apresentar a GranBio em um evento na Holanda como uma empresa diferente daquela de 2014, agora com tecnologias desenvolvidas no Brasil e capacidade de licenciá-las mundialmente.
Embora discreto, um aumento do interesse na segunda geração é estimulado por nova escalada dos preços do petróleo – na casa dos US$ 75 dólares o barril nos últimos meses. Em entrevista ao jornal Financial Times, Feike Sijbesma, executivo da holandesa DSM, que produz etanol celulósico em Iowa, Estados Unidos, em parceria com a norte-americana Poet, disse que a cotação do petróleo amplia as chances de a empresa oferecer um produto competitivo. “Qual é o patamar confortável para nós? Por volta de US$ 70 o barril”, disse.
Batizada de Project Liberty, a planta da Poet-DSM foi inaugurada em 2014. Sua meta é produzir 72 galões (272,5 litros) por tonelada de resíduo de milho e ela está perto disso: já obteve 70 galões (265 litros) por tonelada. Há um ano, o consórcio Poet-DSM anunciou a construção de uma unidade para fabricar as enzimas usadas para quebrar a celulose dos resíduos de milho. Segundo Sijbesma, o principal desafio tem sido organizar a coleta de resíduos de milho. A exemplo do que ocorreu com a cana, há dificuldades para remover sujeira e areia do material.
Na avaliação de Antonio Bonomi, do CTBE, parte da fragilidade no esforço de pesquisa em busca do álcool de celulose se deve ao fato de não existir um mercado mundial do combustível capaz de pressionar por avanços tecnológicos. “E mesmo no Brasil a segunda geração enfrenta a concorrência de primeira geração, uma rota de sucesso que funciona muito bem.” Uma conjuntura mais favorável surgiu há dois anos, quando a Conferência de Paris estabeleceu o compromisso de limitar o aumento da temperatura no planeta e propôs cenários de baixa emissão de carbono em que a energia de biomassa tem papel essencial. No Brasil, o lançamento de uma nova Política Nacional de Biocombustíveis, que premia a produção sustentável de etanol, pode servir como um estímulo adicional à segunda geração (ver Pesquisa FAPESP nº 266).
Pioneiro na pesquisa da utilização de biomassa para produção de energia, o biólogo norte-americano Lee Lynd, professor da Thayer School of Engineering, no Dartmouth College, sustenta que um equívoco cometido por governos e investidores foi apostar maciçamente na construção de grandes usinas, preocupando-se menos em financiar avanços tecnológicos capazes de reduzir custos de produção. No desenvolvimento das energias solar e eólica, ele observa, investiu-se primeiro em nichos para depois buscar alvos mais ambiciosos. Aplicações iniciais de pequeno porte propiciam um aprendizado mais rápido, defendeu Lynd em um artigo publicado em outubro na revista Nature Biotechnology. “As tecnologias das baterias foram empregadas em produtos eletrônicos antes de serem usadas em carros híbridos”, exemplificou.
Lynd foi um dos fundadores da Mascoma, empresa de pesquisa em biocombustíveis que em 2005 recebeu aportes de investidores como Vinod Khosla, o fundador da Sun Microsystems, e do Departamento de Energia dos Estados Unidos. Como aconteceu com outras startups, não conseguiu viabilizar a meta de converter biomassa não comestível em etanol. Em 2014, a Mascoma foi vendida para uma empresa canadense, a Lallemand, interessada em leveduras desenvolvidas segundo uma técnica criada por Lynd. O biólogo, contudo, não desistiu dos planos originais. Trabalha em outra empresa, a Enchi, com propósitos semelhantes aos da Mascoma.