por Huffpost Brasil em 15/07/2020
Usada antes da pandemia principalmente para tratar piolhos, a ivermectina passou a ser receitada por médicos como preventivo ou para fases iniciais da covid-19. Não há, no entanto, comprovação científica do uso do vermífugo para combater o novo coronavírus. Um estudo clínico brasileiro sobre o tema só deve ser concluído em 2021, e a distribuição do medicamento por agentes públicos é considerada irregular por especialistas.
Na onda de respostas milagrosas para crise de saúde, a droga ganhou força ainda em abril, com a publicação de um estudo na Antiviral Research que indicou que o fármaco foi capaz de inibir a replicação do SARS-CoV-2 in vitro (em laboratório). Os pesquisadores alertaram, porém, que, para ter efeito em humanos, a dose teria de ser 10 vezes maior.
“Esse resultado quase inviabiliza o uso em humanos porque aumenta muito a dose, daí aumenta a chance de ter efeitos no sistema nervoso central e pode ter efeitos adversos desconhecidos porque ela [ivermectina] nunca foi usada nessa dose”, afirmou ao HuffPost a consultora da Sociedade Brasileira de Infectologia (SBI) Raquel Stucchi.
Informe da SBI sobre uso de medicamentos para covid-19 diz que “os antiparasitários ivermectina e nitazoxanida parecem ter atividade in vitro contra a SARS-CoV-2, porém ainda não há comprovação de eficácia in vivo, isto é, em seres humanos. “Muitos dos medicamentos que demonstraram ação antiviral in vitro (no laboratório) não tiveram o mesmo benefício in vivo (em seres humanos). Só estudos clínicos permitirão definir seu benefício e segurança na covid-19”, diz o texto.
Os resultados preliminares de uma triagem de drogas no Instituto de Ciências Biomédicas da USP (Universidade de São Paulo) divulgados em artigo preprint (sem revisão por pares) na última sexta-feira (10) mostram que tanto a ivermectina quando a nitazoxanida, os dois vermífugos apontados como possíveis curas para a covid-19, não tiveram desempenho satisfatório. As drogas eliminaram o vírus das amostras, mas também mataram as células.
Conhecida no Brasil pelo seu nome comercial “Annita”, a nitazoxanida é uma das apostas do governo de Jair Bolsonaro. Em abril, o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI) lançou um estudo clínico para testar o uso da droga na prevenção e tratamento da covid-19. A meta é recrutar 500 pacientes com sintomas leves e outros 500, com sintomas graves.
A iniciativa foi motivada por um estudo do Laboratório Nacional de Biociências – vinculado ao MCTI – em colaboração com a Unicamp (Universidade Estadual de Campinas), segundo o qual o vermífugo reduziu em 94% a carga viral do SARS-CoV-2 em células in vitro.
Como a ivermectina ficou popular na pandemia?
Nos últimos meses, o uso da ivermectina passou a circular em mensagens nas redes sociais e foi defendido pelo presidente Jair Bolsonaro. “Eu acho que o resultado é até melhor que a cloroquina, porque mata os vermes todos”, disse Bolsonaro em uma live de 11 de junho. O que há em comum entre os dois medicamentos é a falta de comprovação científica para combater o novo coronavírus.
Vídeos de médicos que circularam entre a população foram decisivos na disseminação da ideia de uma solução fácil para a crise sanitária. Um vídeo publicado pela médica Lucy Kerr, em defesa da ivermectina, teve quase 400 mil visualizações em uma semana e foi excluído pelo YouTube. O conteúdo foi classificado como “enganoso” pelo projeto Comprova.
Outro nome que contribuiu para a promoção da ivermectina foi o pediatra e toxicologista Anthony Wong, chefe do Centro de Assistência Toxicológica do Instituto da Criança do Hospital das Clínicas de São Paulo. Tanto ele quanto Kerr têm defendido o uso da droga em reuniões com prefeitos. Wong também é contra o isolamento social.
A propaganda se refletiu no mercado farmacêutico. Dados mais recentes do Sindusfarma (Sindicato da Indústria de Produtos Farmacêuticos) mostram que em abril foram vendidas 2.044.811 caixas de ivermectina. No mês anterior, foram 820.574.
De acordo com a infectologista Raquel Stucchi, a maior parte dos médicos que estão incentivando tratamentos muito precoces não é infectologista ou pneumologista. “São muitos médicos que talvez queiram se autopromover. Claro que seria ótimo se tivesse uma solução mágica. Seria ótimo se tivesse uma água benta que fizesse milagre. O que essas pessoas colocam é ‘olha, estou dando um milagre para você’. E aí vai da consciência e ponderação de cada um”, afirma.
Qual o risco de tomar ivermectina?
Além de não ser efetiva para evitar ou tratar a covid-19, o uso da ivermectina pode trazer riscos à saúde. Tanto a dosagem quanto a interação com outros medicamentos pode trazer malefícios ao paciente. Os chamados “kits covid”, distribuídos por algumas prefeituras, incluem ivermectina, além da azitromicina, dipirona e cloroquina.
“A gente não sabe como isso funciona. Tem o problema da posologia e da interação medicamentosa. Tanto a ivermectina quanto a azitromicina são tomadas por via oral. Você pode ter uma interação desde a absorção, distribuição, excreção, um pode interferir no outro”, afirmou ao HuffPost Sandra Farsky, vice-presidente da Associação Brasileira de Ciências Farmacêuticas e professora da Faculdade Ciências Farmacêuticas da USP.
A especialista explica que os medicamentos precisam atingir uma concentração específica no sangue para atingirem eficácia, mas sem provocar toxicidade. “O que pode acontecer é que um medicamento interfira no outro e você pode ter ou ineficácia de um tratamento ou uma toxicidade porque você pode alterar essa concentração. É um estudo que deveria ser feito ainda mais num paciente que está com covid, que é uma infecção sistêmica pulmonar e cardíaca, que altera o que a gente chama na farmacologia de parâmetros de cinética”, completa Farsky.
O uso conhecido e seguro da ivermectina é para infestações de piolhos, sarna e parasitas, tanto para seres humanos quanto para animais. Também é conhecida sua atuação como vermífugo para filariose linfática (elefantíase) e oncocercose, por exemplo.
O medicamento pode levar à toxicidade do sistema nervoso central. Embora os efeitos colaterais não sejam muito frequentes quando são usadas as doses indicadas na bula, podem ocorrer reações na pele, tais como coceira, vermelhidão, erupções, dores de cabeça, náuseas, vômitos, pressão baixa, quedas, inchaço no rosto, braços e pernas, taquicardia e dores musculares. Crises asmáticas também podem ser agravadas.
Outro efeito negativo é comprometer o tratamento efetivo para covid-19. “As pessoas podem ter uma falsa sensação de segurança por tomar medicação que acreditam que possa ter algum efeito e deixam de adotar medidas que sabidamente evitam a transmissão, como o distanciamento social, uso de máscaras e higienização das mãos”, alerta a infectologista Raquel Stucchi.
Também há o risco de que pacientes com quadros moderado ou grave demorem mais a chegar aos serviços de saúde. “Acabam procurando tardiamente serviço médico porque começam a ter sintoma, a ter falta de ar e falam ‘acho que vou melhorar porque estou tratando’ e chegam muito tarde no hospital. E a gente sabe que a chance de recuperação dos pacientes graves tem a ver com a precocidade do tratamento”, afirma a infectologia.
Se houver suspeita de covid-19, a primeira recomendação é ficar em casa. “Toma bastante líquido e espera passar. Quem tem sintoma respiratório é para ficar em casa por 14 dias porque vai transmitir se sair de casa. Se no 3º ou 4º dia tiver muita febre e falta de ar, tem de ir no serviço médico, e o médico decide com o paciente se algum tratamento deve ser feito”, orienta a médica.
Versão veterinária da ivermectina
A falta de ivermectina nas farmácias levou pessoas a comprarem a versão veterinária do medicamento. Em maio, o Conselho Federal de Farmácia chegou a fazer um alerta sobre esse tipo de uso. ”A versão veterinária é pior ainda porque os cuidados de manipulação de medicação veterinária não são iguais aos cuidados que se têm na preparação de medicamentos para humanos, de uso de conservantes e até de dose”, afirma Raquel Stucchi.
Distribuição de ‘kit covid’ é irregular
A distribuição da ivermectina pelo poder público tem se multiplicado pelas cidades brasileiras. No início do mês, o prefeito de Itajaí (SC), Volnei Morastoni, anunciou a intenção de tratar preventivamente aproximadamente 100 mil pessoas com a droga. O tratamento também será acompanhado por profissionais da Universidade do Vale do Itajaí (Univali), de acordo com a prefeitura.
Na avaliação do pesquisador do Centro de Estudos e Pesquisas de Direito Sanitário da USP Daniel Dourado, a distribuição da ivermectina é irregular. “O uso é off label [sem indicação], totalmente, não tem comprovação nenhuma de que funcione — pelo contrário. Não pode incorporar no SUS e nem fornecer como se fosse, porque é contra a lei”, afirmou ao HuffPost.
Para um medicamento ser adotado pela rede pública, é necessário que haja um registro na Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) para o uso específico e que seja feita uma avaliação pela Conitec (Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no SUS), conforme prevê a Lei Orgânica da Saúde.
O colegiado é formado por representantes de cada secretaria do Ministério da Saúde, além de integrantes da Anvisa, da ANS (Agência Nacional de Saúde Suplementar), do CFM (Conselho Federal de Medicina), do CNS (Conselho Nacional de Saúde) e dos conselhos de secretários de saúde estaduais (Conass) e municipais (Conasems).
Em 9 de julho, a Anvisa publicou uma nota em que afirma não haver estudos conclusivos comprovando a eficácia do medicamento contra o novo coronavírus, além de não recomendar o uso da ivermectina e listar efeitos colaterais. O texto foi retirado do ar e substituído por uma outra nota, em tom mais ameno.
Até o momento, o Ministério da Saúde não incluiu a ivermectina nas recomendações de tratamento de covid-19. Até a publicação desta reportagem, a pasta não respondeu a questionamento feito pelo HuffPost Brasil, por meio da assessoria de imprensa, se haverá uma mudança nesse sentido e qual a orientação dada a estados e municípios atualmente sobre distribuição da droga. Também não foi esclarecido se integrantes do ministério interferiram na mudança de posicionamento da Anvisa sobre o tema.
Ensaios clínicos em andamento
Na plataforma Clinical Trials, há 32 estudos registrados sobre uso da ivermectina para tratar a covid-19 em diversos países, sendo dois no Brasil. Um deles, conduzido pela UFSCar (Universidade Federal de São Carlos) com 64 pacientes, e outro pela clínica de obesidade Corpometria Institute, em Brasília, com 254 pacientes.
Em nota, a UFSCar confirmou que o estudo foi iniciado em 1º de julho e deve demorar um ano para ser concluído. Por sua vez, o endocrinologista Flavio Cadegiani, responsável pela segunda pesquisa, afirmou ao HuffPost que haverá uma mudança e a ivermectina será substituída pela nitazoxanida. “No Brasil, a ivermectina é fabricada por uma empresa que também produz agrotóxico, então a gente não tem esse controle da pureza igual tem da nitazoxanida”, afirmou. O estudo previsto para começar em 26 de junho aguarda liberação da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep).
De acordo com o boletim mais recente da Conep, publicado em 7 de julho, havia 4 ensaios clínicos aprovados com ivermectina no Brasil e 3 com a nitazoxanida. Além do estudo da UFSCar, é citada uma pesquisa da Fundação Faculdade Regional de Medicina de São José do Rio Preto (FAMERP) e outra da Fundação Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP).
Uma revisão compilada pela Opas (Organização Pan-Americana da Saúde) concluiu que os estudos sobre ivermectina tinham um alto risco de viés, muito pouca certeza de evidências, e que as evidências existentes eram insuficientes para se chegar a uma conclusão sobre benefícios e danos. A droga não está sendo testada no estudo Solidariedade, da OMS (Organização Mundial da Saúde).