VICE em 15/03/2016
Quem são e o que fazem os millenials brasileiros que estão construindo um dos aceleradores de partículas mais avançados do planeta
Quem encontra com Henrique Caiafa Duarte nas horas vagas não percebe nada de muito diferente no engenheiro de 27 anos. Mineiro de nascimento e morador de Campinas, em São Paulo, ele usa barba, rabo de cavalo e frequenta shows e bares de rock. Músico amador, gosta de compor e montou uma banda com os colegas do trampo para tocar “as músicas mais fáceis” de Iron Maiden, Pink Floyd e Dream Theather. Também curte passar horas – dias, às vezes – trancado em casa jogando games, principalmente God of War e Tomb Raider. Mas se, numa mesa de bar, o papo derivar para sua profissão, a conversa pode ficar esotérica demais. “Às vezes, para fazer uma analogia, falo que trabalho numa máquina gigante de raios X. É que eu mesmo, até poucos anos, nem imaginava que existia um acelerador de partículas no Brasil”, conta.
Henrique é funcionário do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e colabora no mais sofisticado empreendimento tecnológico já concebido em terras tupiniquins: o Sirius, um acelerador de partículas do tipo síncrotron, de última geração, que está sendo erguido na região do Polo de Alta Tecnologia de Campinas, no interior paulista.
Ainda que permaneça ignorada pela vasta maioria da população, a construção do Sirius é o maior projeto em andamento na área de ciência e tecnologia no país. O investimento total previsto é de R$ 1,7 bilhão. O LNLS integra o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), e o projeto está inscrito no Programa de Aceleração do Crescimento (PAC). Deve entrar na fase de testes em 2018.
Desde 1997, já funciona no LNLS o primeiro síncrotron construído no Brasil, conhecido como UVX. É uma máquina classificada como de segunda geração e por isso mesmo quase obsoleta. Em 2009, começou-se a debater a necessidade de construir um novo acelerador. Um primeiro projeto foi concebido e apresentado a um comitê internacional de especialistas para avaliação. A resposta do comitê foi surpreendente: desafiou os brasileiros a sonharem com uma máquina mais arrojada. A equipe do LNLS aceitou o desafio e, em pouco mais de um ano, elaborou um novo projeto, aprovado com louvor. Nascia o Sírius, totalmente concebido e quase totalmente construído, por brasileiros.
Entre os 176 profissionais envolvidos no Sirius, 129 pertence à chamada Geração Y, isto é, aqueles nascidos entre a década de 80 e o começo dos anos 2000, como é o caso de Henrique.
PESQUISA AO EXTREMO
Coincidentemente, 27 anos era a idade que tinha o físico americano Ernest Lawrence quando, em 1930, criou o primeiro acelerador, uma estrutura metálica circular com pouco mais de 10 cm de diâmetro. Hoje tais máquinas podem chegar a ter quilômetros de extensão e são capazes de manipular as condições naturais até extremos, a fim de nos proporcionar vislumbres dos segredos da matéria.
Num acelerador, os níveis de pressão e temperatura podem ser tão baixos quanto os encontrados no espaço sideral. Ao mesmo tempo, foi numa máquina dessas que se registraram as mais elevadas temperaturas já criadas pela tecnologia humana, na casa dos trilhões de graus. Para arremessar as partículas a velocidades próximas às da luz são usados campos magnéticos com intensidades milhares de vezes superiores àquele que é gerado por todo o planeta Terra. E quando alcançam estas velocidades, as partículas passam a exibir estranhos comportamentos relativísticos: sua massa cresce, e seu tempo de vida também pode se dilatar.
O acelerador mais sofisticado do mundo é o Large Hadron Collider, que pertence ao Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (CERN) e fica na fronteira entre França e Suíça. Em 2013, pesquisadores anunciaram ter detectado dentro do LHC sinais da partícula conhecida como Bóson de Higgs. A detecção resultou no prêmio Nobel de física daquele ano.
Diferentemente do LHC, cuja razão de existir é realizar colisões entre partículas, os aceleradores de tipo síncrotron tem como função principal a produção da chamada luz síncrotron. Trata-se de um tipo de radiação que açambarca uma faixa do espectro eletromagnético que vai do infravermelho aos raios X de alto brilho. A luz síncrotron é usada para realizar análises em amostras do mais diversos tipos, de células a rochas, e tem sido uma importante ferramenta no desenvolvimento de produtos e serviços em várias áreas, da indústria automobilística à produção de medicamentos. Atualmente, cerca de 40 síncrotrons estão em funcionamento no mundo.
Graças a um convênio entre o CERN e o LNLS, uma tecnologia desenvolvida para o LHC será usada também no acelerador brasileiro. É um filme fino, com estrutura especial, que vai revestir o anel por onde vai correr o feixe de partículas. Conhecido como Non Evaporable Getters (NEG), o filme absorve, ao máximo, as moléculas de gases que eventualmente estejam dentro do anel, criando um ambiente de ultra-alto-vácuo. “Queremos alcançar pressões da ordem de 10 -¹² milibar. Isso é próximo do vácuo que existe no espaço, que chega a 10 -¹³ milibar”, explica Rafael Molena Seraphim, 33, líder do grupo de vácuo do Sirius.
O trabalho do grupo já atraiu atenção internacional e foi abordado na prestigiosa publicação Physics Review. “No LHC, o filme foi usado para revestir tubos de 80 mm de diâmetro. No Sirius, em certos trechos, o diâmetro do tubo será de apenas 6mm. Conseguir depositar o filme em condições assim é algo extremamente difícil”, diz Rafael.
O outro síncroton de quarta geração existente, o MAX 4, localizado na Suécia, também usa a tecnologia dos filmes NEG. “Isso é uma tendência, as máquinas do futuro vão usar estes filmes”, fala Rafael. “A diferença é que nós criamos nossa própria estrutura para adaptar essa tecnologia para o nosso projeto. A Suécia não fez isso, o CERN é quem fez o trabalho para eles”, diz. Ele comemora a parceria com o CERN. “Menos de dez instituições em todo o mundo tiveram autorização para usar esta tecnologia.”
Rafael é cria da casa. Chegou ao LNLS como estagiário, quando ainda era estudante de engenharia mecânica numa faculdade particular. Foi contratado, fez mestrado na Unicamp e em 2009 se tornou líder do grupo de vácuo. Tinha apenas 27 anos. Na função, viajou para vários países para participar de encontros e conferências ligados a aceleradores de partículas.
Em termos etários, a comunidade internacional de pesquisadores que trabalham com aceleradores mescla pessoas jovens com outras mais experientes. Às vezes a juventude de Rafael causava algum impacto nos interlocutores. “O impacto diminui quando você começa a expor seu conhecimento. Mesmo sendo jovem, você pode ter bastante conhecimento e experiência. Daí a outra pessoa relaxa e o diálogo flui.” Rafael parece ter mais do que os seus 33 anos e conversa com bastante segurança, embora se diga introvertido.
Se tivesse seguido seu sonho de infância, hoje já estaria em idade de pendurar as chuteiras. Apaixonado por futebol, Rafael queria ser jogador profissional. Atuou em times amadores, mas uma contusão aos 15 anos o obrigou a mudar de planos. Como era ótimo aluno em exatas, decidiu-se pela engenharia. Durante o curso, já mirava adiante. “Trabalhava de dia e fazia faculdade de noite, então só podia estudar no fim de semana, incluindo os sábados. Acho que era mais maduro do que as pessoas da minha idade, sempre tive objetivos bem definidos.”
O amor pelo esporte o acompanhou na carreira. Ele se juntou ao time do laboratório LNLS. A equipe treina dentro do terreno do laboratório e já ganhou alguns campeonatos contra times de empresas. Nos últimos dois anos tem jogado menos, já que, segundo Rafael, o trabalho no acelerador está ocupando até os fins de semana. Avesso a bares e vida noturna, destina as horas vagas à convivência com a família. Mas conseguiu manter outro hábito particular: a missa. “Sou muito católico, vou à missa toda semana”, diz.
Membro do grupo de física de aceleradores do LNLS, Fernando Henrique de Sá, 27, também ia à missa semanalmente quando era mais jovem. Durante a faculdade de engenharia física, porém, começou a ler as obras de Carl Sagan e a estudar relatividade e mecânica quântica. Desde então, mudou de ideia e se tornou cético e admirador da teoria da evolução. “Como a hipótese da existência de Deus não é cientifica, não pode ser refutada. Eu a considero irrelevante. Mas a religião pode ter aspectos positivos”, diz.
Com o tom de voz baixo e muito cuidado antes de qualquer resposta, Fernando conta que seu trabalho envolve aperfeiçoar a posição e a intensidade dos magnetos dentro do acelerador. Para que seja eficiente, o feixe de elétrons que circula dentro do acelerador deve ser o mais concentrado possível. É da interação deste feixe com os magnetos que vai surgir a luz síncrotron. O projeto prevê que o diâmetro do feixe tenha dez milésimos de milímetro de diâmetro.
Para que o feixe se mantenha, será preciso criar uma região estável de 10 mm ao redor do ponto central do tubo, um desafio de engenharia que, para se tornar real, vai exigir muito cálculo e experimentação. Por isso, o jovem aproveita as horas vagas do trabalho no LNLS para estudar ainda mais: está cursando o doutorado em física na Unicamp, tendo como tema um problema ligado ao Sirius. A jornada de atividades costuma entrar pelo fim de semana. “Já cheguei a trabalhar 70 horas por semana. Agora estou ali pelas 50”, contabiliza.
Nascido no interior de São Paulo e filho de um funcionário público e de uma dona de casa, Fernando Henrique não teve acesso nem interesse por temas ligados à ciência quando criança. Tornou-se um adolescente retraído que gostava muito de matemática e física. Estudou toda a vida em escola pública, mas nem sonhava com a possibilidade de estudar numa universidade estadual ou federal; foi a mãe quem acreditou no seu potencial e o instigou a prestar vestibular para instituições de ponta. Quando se viu estudando na Universidade Federal de São Carlos, teve um choque. “É muito raro alguém que vem de uma escola pública de uma cidade do interior passar para uma universidade estadual ou federal”, conta. Hoje participa de encontros da comunidade de síncrotron em outros países. “Não acreditei quando entrei num avião pela primeira vez”, falou. Nas poucas horas vagas, dedica-se a aprender a andar de mountain bike, e de vez em quando vai num barzinho com os amigos, muitos deles também funcionários do LNLS. É uma vida dedicada ao projeto.
Fernando Henrique não costuma ler literatura, prefere matemática e física. Nunca entrou numa boate e não tem certeza do que seja uma rave. Gosta de jazz, está descobrindo a obra de Chico Buarque e escuta “Construção” todo dia. “Nada na minha trajetória foi planejado. É claro que teve muita batalha, mas aconteceu naturalmente. Eu nunca soube o que queria fazer, mas sempre gostei do que estava fazendo”, diz.
NERD, EU?
Nathaly Archilha, 32, estava fazendo doutorado sanduíche na Inglaterra e articulando para fazer pós-doutorado na USP quando foi sondada para trabalhar no LNLS. “Nem era uma proposta muito melhor do ponto de vista financeiro. Mas pensei ‘puta, o Brasil vai ter uma máquina de quarta geração!’. O desafio é muito maior, e as possibilidades também”, conta. Integrou-se ao LNLS ano passado.
Parte do trabalho de Nathaly inclui atender os usuários do UVX, o acelerador atualmente em funcionamento no LNLS. Para fazer os testes, as amostras são colocadas em estações experimentais chamadas de linhas de luz. É nelas que a luz síncrotron é decomposta, de forma que incidam sobre a amostra as frequências de radiação mais adequadas a cada caso.
Nathaly cuida da linha de tomografia de raios X em três dimensões. “Adoro o que faço. Sou capaz de trabalhar 12 horas direto, sem esforço. É algo tão desafiador que, quando começa a dar certo, você quer continuar para ver no que vai dar”, diz.
O interesse por temas de ciência surgiu cedo. Filha de um administrador e de um despachante, gostava de assistir ao “Mundo de Beakman” na TV quando criança e de ler revistas de divulgação cientifica. Boa aluna em exatas, matriculou-se em física para o vestibular mas, até a última hora, pensava em matemática. No plano pessoal, gostava de RPG, jogava vídeo game furiosamente (“tinha que ser arrancada da frente do computador”, lembra) e era bastante introvertida. Ainda hoje, o apetite por games e por séries TV como Game of Thrones e The Big Bang Theory consome boa parte de suas horas de lazer. Mas rejeita o rótulo de nerd ou geek, e usa os personagens deThe Big Bang Theory para reforçar sua argumentação.
“Para mim, nerd é alguém como o Sheldon: muito inteligente, mas muito chato e incapaz de interagir socialmente. Aliás, durante muito tempo eu me irritava quando assistia Big Bang Theory, porque as situações da série me remetiam muito à graduação. Tinha muitos Sheldons na minha faculdade, gente que preferia estudar do que sair. Eu sou mais como o Leonard! Ele sai, conversa, se diverte. Ele, para mim, não é nerd. E eu também não sou”, diz.
Quando não está acompanhando os clientes, ela ajuda a desenvolver a Mogno, nome dado à linha de tomografia de raio X que o Sirius vai operar. O salto será grande. Só para comparar, hoje, ao analisar uma amostra de rocha, a tomografia só consegue revelar o que acontece até 2 mm de profundidade. Com o novo acelerador, o raio X vai chegar até 4 cm na rocha. A expectativa é que a Mogno será uma das melhores do mundo em sua classe. “Será a linha ideal para este tipo de análise”, diz Nathaly.
Henrique Caiafa Duarte, o engenheiro que diz que trabalha numa “máquina de raio X gigante”, faz parte do grupo que projeta o sistema de diagnósticos do feixe que o Sirius vai possuir. “Muitos fatores podem gerar perturbações na trajetória das partículas, incluindo vibrações mecânicas e interferências da rede elétrica,” explica ele. Caberá ao sistema de diagnósticos monitorar se as partículas estarão se deslocando na região desejada, no interior dos tubos, e dar um empurrãozinho para corrigir a trajetória delas sempre que necessário.
O foco de Henrique está no eletromagnetismo, área em que atua desde que era estudante de graduação na UFJF. À medida que os síncrotrons de todo o mundo foram ganhando mais potência, cresceram também os problemas: os campos eletromagnéticos gerados por estes aceleradores são tão fortes que perturbam a estabilidade do feixe. “Antes isso não era levado em conta no projeto e, como consequência em várias máquinas do mundo, acontece o derretimento de peças por aquecimento eletromagnético”, explica Henrique. Para evitar que problemas semelhantes ocorram no Sirius, o engenheiro ajuda a projetar todos os dispositivos que serão inseridos no acelerador.
Trabalhando no LNLS dede 2012, Henrique chegou ao Sirius por acaso. Tinha terminado a graduação e não sabia bem o que fazer. Por meio de um amigo dos pais, entrou em contato com um dos líderes de equipe e aceitou o convite para fazer uma visita. “Quando vim, fiquei emocionado. É muito gratificante saber que o Brasil tem massa cinzenta para fazer coisas que, em termos mundiais, são de topo de nível. E que não temos medo de encarar o desafio.”