Tecnologia customizada para a produção de etanol a partir do bagaço e palha de cana-de-açúcar pode chegar ao mercado em até dois anos
Com uma produção de etanol que ronda a casa dos 30 bilhões de litros/ano, o Brasil é um dos principais players do mercado mundial. Grande parte deste combustível, no entanto, é chamado de etanol de primeira geração (E1G), cuja obtenção se dá a partir da fermentação do caldo da cana para obtenção do álcool. Um mercado em ascensão, no entanto, enxerga os “resíduos” do setor sucroalcooleiro (bagaço e palha de cana) uma fonte rica em açúcares com potencial de injetar até 15 bilhões de litros de etanol de segunda geração (2G) ou celulósico, nas previsões mais otimistas.
Acessar estes açúcares, porém, depende de combinações de enzimas – importadas e caras, que chegam a representar até 50% do custo de produção do etanol 2G. Todavia, uma pesquisa do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) pode mudar este cenário. Pesquisadores do Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR/CNPEM) protegeram uma tecnologia nacional para a produção de coquetéis enzimáticos de alta eficiência a partir de uma linhagem do fungo Trichoderma reesei , por meio de dois pedidos de patente depositados em 2019 junto ao Instituto Nacional da Propriedade Industrial (INPI) via Patent Cooperation Treaty (PCT), e no dia 22 de maio revelaram a invenção para comunidade científica em estudo publicado no periódico Biotechnology for Biofuels.
Com modificações no fungo, os cientistas observaram uma produção de cerca de 80 g/L de enzimas, a mais alta já descrita em uma publicação científica a partir de fontes de carbono (açúcar) de baixo custo. Além da alta concentração de enzimas por g/L, o coquetel produzido pelo fungo geneticamente modificado também apresentou eficiência de sacarificação da ordem de 60-70%, números próximos aos vistos em coquetéis comerciais.
Fungo “engenheirado” utilizado pelos pesquisadores do LNBR/CNPEM para produção de enzimas de alto rendimento (Divulgação: LNBR/CNPEM)
Em estágio avançado de desenvolvimento e com empresa interessada no licenciamento das patentes, a tecnologia se encontra em fase final de escalonamento em planta piloto e já superou as etapas de análise tecnoeconômicas e ambientais.
Escalonamento em planta piloto é última fase antes de tecnologia chegar à escala comercial; pesquisadores estimam que coquetel estará disponível em no máximo dois anos
Para fins de comparação, a mais alta concentração de enzimas até então relatada para este tipo de fungo com a utilização de uma fonte de carbono de baixo custo havia sido de 37 g/L, resultado observado em uma linhagemproprietária, o que torna dificulta a pesquisadores a reprodução do trabalho.
Análises de viabilidade tecnoeconômicas indicam o estágio avançado da tecnologia
A produção do coquetel enzimático do LNBR/CNPEM tem sido acompanhada de avaliações técnico-econômicas detalhadas e periódicas, uma vez que a sua competitividade econômica é crucial para o desenvolvimento, consolidação e sucesso da tecnologia do etanol 2G. Dentre os fatores mais relevantes que vem sendo monitorados, destacam-se os custos operacionais relacionados aos insumos, com especial destaque aos custos da fonte de carbono utilizada. Outros fatores importantes são aqueles relacionados às utilidades de processo (eletricidade e vapor), bem como ao investimento com equipamentos necessários para a produção do coquetel em unidades integradas ao processo de etanol celulósico, denominadas on-site.
“Alguns de nossos resultados mais recentes têm mostrado um avanço significativo na redução dos custos operacionais de produção por kg de proteína. A literatura científica afirma que os custos de produção em unidades on-site devem variar entre US$ 4 a 10 por kg de proteína e nossas avaliações têm apontado uma tendência de aproximação cada vez maior dos valores mínimos observados nesse intervalo de custos”, explica Edvaldo Morais, pesquisador especialista em análises tecnoeconômicas no LNBR/CNPEM.
Biotecnologia e ciência de ponta viabilizaram engenharia genética
Com o uso de uma ferramenta de edição genética conhecida como CRISPR/Cas9, especialmente customizada para este fungo, os pesquisadores puderam realizar modificações genéticas decisivas no microrganismo, incluindo edição de fatores de transcrição, deleção de proteases e a inserção de enzimas heterólogas (enzimas de interesse, oriundas de outros microrganismos, e que com o processo de inserção no fungo o habilitam a produzi-las também).
“É surpreendente o aumento verificado na capacidade de produção e na qualidade do coquetel de enzimas gerado pelo fungo que desenvolvemos”, relata Mario Murakami, líder da pesquisa no LNBR/CNPEM. Além da alta concentração de enzimas por grama/litro, o coquetel produzido pelo fungo geneticamente modificado também apresentou eficiência de sacarificação semelhante à de um coquetel comercial. “Além disso, esta plataforma foi concebida de forma que fosse totalmente integrável as usinas sucroalcooleiras do país, sem custo de downstream, transporte e armazenamento”, acrescenta Murakami.
Na esteira de vantagens da tecnologia desenvolvida no CNPEM, os pesquisadores destacam que este fungo é capaz de produzir todas as enzimas necessárias para a hidrólise enzimática, visto que uso combinado de distintas fontes produtoras de enzimas tem se mostrado impraticável na realidade industrial.
Com o estudo, os pesquisadores também foram capazes de desmistificar a ideia de que o desenvolvimento de uma linhagem competitiva para a produção industrial de celulases levaria décadas de pesquisas e investimentos, desencorajando iniciativas. “Com o desenvolvimento de tecnologias avançadas de biologia molecular, novas perspectivas de múltiplas modificações genéticas se mostraram plenamente viáveis, deixando no passado as então restrições por baixas eficiências de transformação obtidas com este fungo”, esclarece Murakami.
O trabalho representa um avanço significativo neste campo de pesquisa, o que deverá pautar estudos futuros relacionados à produção de enzimas com este fungo e, possivelmente, impactar também o setor de produção industrial de enzimas.
Com biomassa abundante, coquetel enzimático pode ampliar perspectivas do setor
Com uma moagem de cana da ordem de 633 milhões de toneladas por safra, o Brasil gera cerca de 70 milhões de toneladas de massa seca de palha, conforme dados da Companhia Nacional de Abastecimento (CONAB). Com aplicações diversas, hoje a palha é utilizada pelas usinas para a cogeração de energia elétrica, processo que tem sido aperfeiçoado pelo Projeto SUCRE (Sugarcane Renewable Electricity), uma iniciativa implementada pelo LNBR/CNPEM, financiada pelo Fundo Global para o Meio Ambiente (GEF) e gerido em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD). Desde 2015, o LNBR trabalha em parceria com 20 usinas no Brasil no desenvolvimento de tecnologias industriais e protocolos para a geração de energia limpa, com baixa emissão de gases de efeito estufa (GEE).
A mesma palha utilizada para energia, no entanto, também pode ser adotada para a produção de bioetanol. Essa flexibilidade é altamente desejável pois permite às usinas adequar sua produção à demanda, optando pela geração de energia ou produção de biocombustível, de acordo com movimentos observados no mercado. “O SUCRE é um marco no setor sucroenergético brasileiro pois foi responsável por identificar as barreiras que estavam inibindo um uso mais amplo da palha, sugerindo alternativas para contorná-las. Desta forma, viabilizou a geração de energia excedente, ampliando acesso a oferta de energia limpa bem como a atuação das usinas”, explica Regis Leal, diretor do Projeto SUCRE. “Um coquetel enzimático brasileiro, com custo competitivo, vem enriquecer o potencial da palha e de outros subprodutos e garantir uma utilização ainda mais eficiente da matéria-prima”, esclarece.
Sobre o CNPEM
O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) é uma organização social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC). Localizado em Campinas-SP, gerencia quatro Laboratórios Nacionais – referências mundiais e abertos às comunidades científica e empresarial. O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) está, nesse momento, finalizando a montagem do Sirius, o novo acelerador de elétrons brasileiro; o Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) atua na área de biotecnologia com foco na descoberta e desenvolvimento de novos fármacos; o Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR) pesquisa soluções biotecnológicas para o desenvolvimento sustentável de biocombustíveis avançados, bioquímicos e biomateriais, empregando a biomassa e a biodiversidade brasileira; e o Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) realiza pesquisas científicas e desenvolvimentos tecnológicos em busca de soluções baseadas em nanotecnologia.
Os quatro Laboratórios têm, ainda, projetos próprios de pesquisa e participam da agenda transversal de investigação coordenada pelo CNPEM, que articula instalações e competências científicas em torno de temas estratégicos.
Sobre o LNBR
O Laboratório Nacional de Biorrenováveis (LNBR) integra o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização social qualificada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia Inovação e Comunicações (MCTIC). O LNBR busca resolver desafios relevantes para o País por meio de soluções biotecnológicas que promovam o desenvolvimento sustentável de biocombustíveis avançados, bioquímicos e biomateriais. O Laboratório possui diversas Instalações Abertas a Usuários, incluindo a Planta Piloto para Desenvolvimento de Processos, estrutura singular no país para escalonamento de tecnologias.