Pesquisadores do CNPEM e colaboradores demonstram o potencial de minerais de abundância natural e baixo-custo para aplicação em nanodispositivos
A crosta terrestre é constituída em sua maior parte por minerais chamados silicatos, rochas compostas principalmente pelos elementos químicos silício (Si) e oxigênio (O). Esse é o caso do feldspato, cuja erosão dá origem às argilas, e do quartzo, principal componente da areia, entre outros. Extremamente abundantes, os silicatos são utilizados não apenas na produção de materiais de construção, vidros e cerâmicas, como também encontram aplicação na agricultura e nas indústrias farmacêutica, cosmética, química e petroquímica.
Silicatos em camadas
Os silicatos são diferenciados pela proporção entre o número de átomos de silício e oxigênio. Essa proporção determina como esses e demais átomos que compõem o mineral se distribuem no espaço, chamada de estrutura cristalina. Por sua vez, essa estrutura determina as propriedades físicas e químicas do mineral, e, consequentemente, suas possíveis aplicações.
Uma classe importante desses minerais é a dos filossilicatos, que tem em sua constituição a proporção de 2 átomos de silício para 5 de oxigênio. Essa proporção faz com que sua estrutura mais estável seja na forma de empilhamento de camadas tetraédricas de silício como átomo central e oxigênio nos vértices, formando uma rede hexagonal de silício. Essas camadas tetraédricas de silício são intercaladas com camadas octaédricas de átomos centrais bivalentes, como o magnésio, ou trivalentes, como o alumínio, contendo oxigênio e hidroxilas nos vértices.
Aliada ao caráter de isolante elétrico dos filossilicatos, sua estrutura permite que materiais isolantes de poucas camadas atômicas possam ser obtidos facilmente por esfoliação mecânica, o mesmo método pelo qual o grafeno pode ser obtido a partir do grafite.
Isolantes de poucas camadas atômicas com propriedades adequadas são fundamentais para a fabricação de dispositivos eletrônicos na nanoescala. No entanto, pesquisas nesse sentido destacam-se pela utilização de materiais sintéticos como o nitreto de boro hexagonal (hBN). Como os filossilicatos são naturalmente abundantes e de fácil extração, a possibilidade de serem utilizados como isolantes na fabricação de nanodispositivos é de grande interesse, já que o custo associado à fabricação desses dispositivos pode ser reduzido em relação à utilização de isolantes sintéticos, favorecendo a produção em larga escala.
No entanto, por serem materiais naturais, elementos químicos como ferro (Fe) e manganês (Mn) presentes no ambiente de sua formação geológica são incorporados em sua estrutura. Chamados de impurezas, esses átomos podem desempenhar um papel importante nas propriedades físico-químicas desses minerais. Para que a utilização dos filossilicatos nesse tipo de tecnologia seja otimizado, é preciso, portanto, investigar a fundo as propriedades desses minerais na forma de poucas camadas, com foco principalmente na compreensão de como as impurezas podem influenciar as propriedades do mineral e de como podem ser manipuladas para a obtenção das propriedades adequadas.
Esse é o trabalho que pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), e colaboradores de instituições do Brasil e Japão, vem desenvolvendo, resultando até o momento na publicação de dois artigos em revistas de impacto na área. Os trabalhos apresentam um estudo sistemático das propriedades de poucas camadas partindo das propriedades de muitas camadas de dois filossilicatos, chamados clinocloro e flogopita, com o cuidado de entender como as impurezas presentes nesses minerais influenciam suas propriedades macroscópicas.
Do solo para a nanotecnologia
Em trabalho publicado no periódico Applied Surface Science [1], os pesquisadores conduziram uma investigação robusta do mineral clinocloro, da família das cloritas, e de suas características estruturais e espectrais na forma de muitas e poucas camadas.
Por meio de diversas técnicas experimentais, incluindo técnicas que utilizam a luz síncrotron, acompanhadas de um estudo teórico, o grupo demonstrou que a incorporação de impurezas de manganês (Mn) e cromo (Cr) ocorre de forma homogênea no mineral, enquanto impurezas de ferro (Fe) podem ser incorporadas também na forma de inclusões. Além disso, o estudo mostrou que as impurezas de ferro são as principais responsáveis pela redução no bandgap óptico do material, ou seja, em sua capacidade isolante. Foi observado ainda que o clinocloro mantém suas propriedades vibracionais da rede cristalina quando reduzido de muitas para poucas camadas atômicas por esfoliação mecânica, sendo possível obter camadas ultrafinas de clinocloro com superfícies atomicamente planas comparáveis ao hBN.
Já no artigo publicado no periódico 2D Materials [2], foi realizado o estudo da flogopita, filossilicato da família das micas, na forma de muitas e poucas camadas, semelhante ao estudo realizado com o clinocloro.
Além disso, os pesquisadores avaliaram que os flocos ultrafinos de flogopita obtidos por esfoliação mecânica são estáveis ao serem expostos ao ar e a variações de temperatura, podendo ser utilizados na fabricação de nanodispositivos formados pelo empilhamento de camadas atômicas de diferentes materiais lamelares, chamados de heteroestruturas de van der Waals. O grupo demonstrou que a eficiência de recombinações excitônicas, quando elétrons e buracos ligados se recombinam emitindo luz, em monocamadas de WS2 sobre flogopita é pelo menos três vezes maior do que em substratos de SiO2, semelhante à eficiência obtida para monocamadas desse mesmo material sobre nitreto de boro hexagonal.
Ambos os trabalhos dão o primeiro passo na direção de utilizar o clinocloro e a flogopita em nanotecnologias interessantes, reforçando que minerais naturalmente abundantes são alternativas viáveis de baixo-custo para a fabricação de nanodispositivos e que seguem ainda pouco exploradas. A natureza nos reserva gratas surpresas, muitas vezes o que procuramos já está literalmente sob os nossos pés, só precisamos aprender a manipulá-lo.
Carnaúba
Os estudos apresentados foram dois dos primeiros artigos científicos com dados obtidos na linha de luz Carnaúba, da fonte de luz síncrotron Sirius, do CNPEM, uma das primeiras estações de pesquisa a entrar em operação.
As diferentes técnicas experimentais disponíveis neste tipo de infraestrutura permitem observar aspectos microscópicos dos materiais, como os átomos e moléculas que os constituem, seus estados químicos e sua organização espacial, além de acompanhar a evolução no tempo de processos físicos, químicos e biológicos que ocorrem em frações de segundo.
A linha de luz Carnaúba é a mais longa do Sirius, com 150 metros de comprimento. A grande distância entre a fonte de raios X e a amostra permite produzir um feixe de luz síncrotron com foco de apenas 30 nanômetros. Isso permite que sejam realizadas análises dos mais diversos materiais nano-estruturados, visando a obtenção de imagens 2D e 3D com resolução nanométrica, com benefícios para as ciências de materiais e nanotecnologia, ciências da vida e ambientais, ou mesmo arqueologia e paleontologia.
Fonte:
[1] Raphaela de Oliveira, Luis A.G. Guallichico, Eduardo Policarpo, Alisson R. Cadore, Raul O. Freitas, Francisco M.C. da Silva, Verônica de C. Teixeira, Roberto M. Paniago, Helio Chacham, Matheus J.S. Matos, Angelo Malachias, Klaus Krambrock, Ingrid D. Barcelos, High throughput investigation of an emergent and naturally abundant 2D material: Clinochlore, Applied Surface Science, 2022, 153959. DOI: 10.1016/j.apsusc.2022.153959
[2] Alisson R. Cadore, Raphaela de Oliveira, Raphael Longuinhos, Verônica de C Teixeira, Danilo A. Nagaoka, Vinicius T. Alvarenga, Jenaina Ribeiro-Soares, Kenji Watanabe, Takashi Taniguchi, Roberto M. Paniago, Angelo Malachias, Klaus Krambrock, Ingrid D Barcelos, Christiano J. S. de Matos, 2D Materials, 9, 035007. DOI: 10.1088/2053-1583/ac6cf4