Jornal da Ciência, em 03/04/2012
Os cortes propostos pelo governo federal ao orçamento do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI) podem colocar a perder muitos dos significativos avanços obtidos nos últimos anos e vão na contramão de outras medidas adotadas pela própria União em tempos recentes, como a expansão da infraestrutura de ensino público universitário e a busca pela internacionalização da ciência brasileira.
Esse é o diagnóstico quase unânime dos cientistas ao tratar da redução em cerca de 22% na verba federal destinada ao sistema de C,T&I brasileiro para 2012. É o segundo ano consecutivo em que há contingenciamento de recursos destinados ao MCTI. Somados, os dois cortes fizeram o valor disponível ao Ministério cair de R$ 7,8 bilhões, em 2010, para R$ 5,2 bilhões, neste ano. Mesmo sem levar em conta a inflação no período (que tornaria a situação ainda mais alarmante), o orçamento foi reduzido a dois terços do valor do último ano do governo Lula.
O anúncio dos cortes, justificado no governo pela crise financeira internacional, foi veementemente criticado por representantes da comunidade científica. A Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência (SBPC), a Sociedade Brasileira de Física (SBF) e a Sociedade Brasileira de Astronomia (SAB) estiveram entre as entidades que divulgaram notas de repúdio à ação federal.
Os protestos não se limitaram à esfera científica. Representantes do setor industrial, preocupados com o impacto dos cortes no estímulo à inovação – fator essencial para a preservação da competitividade da indústria brasileira no cenário internacional – também se manifestaram contrários à restrição de recursos.
“No momento em que o Brasil começa a se afirmar no cenário internacional, consideramos tal redução orçamentária um grave retrocesso para a política de formação de recursos humanos qualificados e o desenvolvimento científico nacional”, afirma Celso de Melo, presidente da SBF. “É desanimador constatar que, pelo segundo ano consecutivo, cai a fração do PIB aplicada em ciência, tecnologia e inovação, o que nos coloca cada vez mais distante dos percentuais observados para o setor nos países desenvolvidos.”
Contraste internacional – Mais do que aumentar a distância entre nós e as nações mais avançadas, a decisão – que os cientistas ainda esperam reverter – coloca o Brasil em forte contraste com outros países em estágio similar de desenvolvimento. Na China, por exemplo, a despeito de uma expectativa menor de crescimento (a exemplo do que ocorre aqui), o primeiro-ministro Wen Jibao anunciou em março um aumento de 12,4% no orçamento para ciência e tecnologia, atingindo a expressiva soma de US$ 36 bilhões. Dentre as medidas adotadas, incluem-se uma elevação de 26% nas verbas voltadas à pesquisa básica e um incremento de 24% no montante de recursos destinados às universidades de elite.
“É interessante notar que o aumento do orçamento para pesquisa e a redução do crescimento foram anunciados no mesmo discurso, o que indica uma consciência muito clara sobre o papel da ciência, da tecnologia e da inovação no futuro da China”, comenta Luiz Davidovich, pesquisador da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). “Infelizmente, não podemos dizer o mesmo do Brasil.”
Impactos imediatos – Em alguns estados da federação, como São Paulo e Rio de Janeiro, há uma “rede de proteção” estadual consistente que pode amenizar um pouco os impactos, com fundações de amparo à pesquisa (Faps) consolidadas e financiando importantes trabalhos das comunidades científicas locais. Contudo, nas regiões menos desenvolvidas do País, como o Centro-Oeste, o Nordeste e, sobretudo, o Norte, essa estrutura local ainda não tem participação tão significativa nas verbas destinadas ao sistema de CTI, e o resultado dos cortes pode ser ainda mais dramático.
“O financiamento do MCTI constitui a parte mais significativa do investimento na região”, diz Luis Carlos Bassalo Crispino, físico da Universidade Federal do Pará (UFPA). “Isso acontece porque as fundações de amparo à pesquisa do Norte, quando existem, são muito jovens e ainda não apresentam continuidade em seus investimentos. Para que se tenha uma ideia, nem mesmo todos os estados da região possuem uma Fap.”
O estrangulamento do orçamento nacional para pesquisa cria ainda mais complicações com o recente movimento do governo brasileiro de ampliar a rede de universidades federais – um esforço para democratizar o acesso ao ensino superior público de qualidade e abrir vagas para os doutores formados no País.
“Atraídos por essa nova oferta de emprego, diversos brasileiros foram repatriados. Em um prazo de dois anos tivemos um aumento de cerca de 20% no número de professores em diversos departamentos de física no País”, afirma Marcia Barbosa, diretora do Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) e vice-presidente da IUPAP (International Union of Pure and Applied Physics). “O Brasil se tornou um celeiro de empregos e atraiu pesquisadores de todo o mundo que se interessavam a vir aqui para estágios de pós-doutorado.”
Contudo, com o corte de recursos para a pesquisa nos últimos dois anos, esse tiro pode acabar saindo pela culatra. Os doutores recém-formados absorvidos nas vagas de docência nessas instituições estão sendo obrigados a abandonar seus esforços de pesquisa, sem verba que estão para conduzi-los.
“Aliás, esses jovens já estão sofrendo um verdadeiro massacre, pois em várias instituições nacionais devem lecionar 12 ou mais horas de aula por semana. Em instituições de pesquisa de países desenvolvidos, a carga horária típica semanal em sala de aula de um professor é de cerca de três horas por semana”, diz Davidovich.
“Com a atual carga horária, e um fraco apoio às atividades de pesquisa, estamos liquidando o que há de mais precioso nos ambientes de pesquisa: o vigor e a criatividade de jovens pesquisadores. Nessas condições, fica difícil competir com os países mais desenvolvidos”, completa.
Corre-se o risco de as novas universidades públicas replicarem o modelo do ensino superior privado, que, salvo poucas e louváveis exceções, se dedica única e exclusivamente à emissão de diplomas, sem se preocupar com a produção de conhecimento.
Sem Fronteiras e Sem Futuro – O estrangulamento dos orçamentos de pesquisa também entra em rota de colisão direta com uma das grandes bandeiras recentes do governo brasileiro, o programa Ciência Sem Fronteiras, destinado a financiar bolsas de estudo em universidades estrangeiras. “Uma consequência direta desses cortes é que teremos uma geração de jovens que vieram de experiências produtivas no exterior e que, sem a infraestrutura apropriada, se tornarão profissionais frustrados”, diz Marcia Barbosa.
“O problema não é somente a descontinuidade das pesquisas em andamento, mas sobretudo o efeito desmotivador que isso produz nos estudantes de pós-graduação e nos cientistas mais jovens”, complementa José Wellington Tabosa, físico da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). “Um mínimo de regularidade orçamentária é fundamental para o planejamento de qualquer atividade, principalmente em ciência e tecnologia, onde a interrupção de um projeto de pesquisa, mesmo por um curto tempo, pode significar o seu fim.”
“O Ciência Sem Fronteiras é um programa para treinar no exterior pesquisadores para o futuro. Mas não haverá futuro se agora não construirmos a infraestrutura científica necessária”, prossegue Marcia Barbosa.
Mais ameaças no horizonte – Além de seu impacto imediato no financiamento à pesquisa, com todos os malefícios que ele traz no fomento a uma estrutura robusta de C,T&I no País, os cortes prejudicam muito programas de pesquisa que, por sua própria natureza, exigem comprometimento constante e de longo prazo.
“Um exemplo é o caso da Física Experimental de Altas Energias onde os projetos levam anos para serem implementados, e os experimentos operam por dezenas de anos”, menciona Sergio Novaes, físico da Universidade Estadual Paulista (Unesp) envolvido com um dos experimentos instalados no LHC (Large Hadron Collider), o maior acelerador de partículas do mundo, instalado no Centro Europeu para Física de Partículas (Cern), na divisa entre a França e a Suíça.
“O envolvimento nesses experimentos requer compromissos de longo prazo, que exigem acima de tudo uma estabilidade no financiamento”, diz Novaes. “Não cumprir com as responsabilidades assumidas compromete a credibilidade da ciência brasileira perante os grupos e laboratórios internacionais e vai na contramão dos esforços brasileiros recentes de internacionalização da ciência produzida no País.”
Interessante lembrar que o Brasil iniciou um esforço consistente de inserção de sua ciência no contexto internacional, buscando parcerias com instituições como o Cern e o ESO, que constituem o que há de mais relevante em seus segmentos (física de partículas e astronomia). A instabilidade orçamentária, se não leva diretamente à inadimplência, certamente criará trepidações nas relações com os países participantes desses consórcios, que podem temer que o Brasil não cumpra com suas obrigações depois de negociar seu ingresso nas organizações.
Nano-orçamento – Outra área que está na fronteira da ciência hoje e que pode ser prejudicada fortemente pelos cortes orçamentários é o desenvolvimento da nanotecnologia. O País teve a chance de embarcar nessa onda – que ambiciona o desenvolvimento de dispositivos e materiais construídos nas menores escalas possíveis, muitas vezes feitas de alguns poucos átomos, com potencial tecnológico revolucionário -, mas não conseguiu. “Infelizmente nessa área o País vem patinando há vários anos, com mudanças constantes de coordenação e políticas desconcertadas”, afirma Marcos Pimenta, especialista em nanotecnologia na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
Mesmo em sua plenitude, o orçamento nacional dedicado às “nanos” sempre foi modesto, se comparado a outros países. “Só para termos um parâmetro de comparação, Singapura está gastando US$ 100 milhões só em um centro para estudar e desenvolver tecnologias baseadas no grafeno [forma molecular de carbono que o torna extremamente promissor para aplicações]”, diz Fernando Lázaro, diretor do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas (CBPF). “No Brasil, em 2011, devemos ter gasto ou prometido gastar menos que 10% desse valor em todas as diferentes vertentes das nanociências. Se essa situação não for revertida rapidamente, o Brasil não vai ter um papel minimamente relevante nesse segmento.”
Adalberto Fazzio, físico da USP, assumiu em 2011 a coordenação da área de nanotecnologia no MCTI e tem feito grande esforço para finalmente organizar as ações nessa área. “Ele propôs inclusive um arranjo interministerial para uma política geral do governo sobre nanotecnologia”, diz Pimenta. “Mas o corte no orçamento pode vir a prejudicar seu trabalho.”
A busca pela reversão – O MCTI ainda está por anunciar publicamente em que áreas especificamente os cortes incidirão, mas nesse momento Luiz Davidovich acha que o foco da comunidade científica deve ser em enfaticamente mobilizar governo e sociedade civil para impedir que o contingenciamento venha a acontecer de fato. “Temos de protestar veementemente contra essa política, que compromete o futuro de nosso País.”
Há esperança, entre os cientistas, de que esse corte violento e sistemático possa ser contornado. “Espero que haja uma reversão dessa decisão e que, ao longo do ano, possamos recompor o orçamento do MCTI e recuperar as perdas que certamente ocorrerão”, diz Carlos Alberto Aragão de Carvalho Filho, físico da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e diretor-geral da Associação Brasileira de Tecnologia de Luz Síncrotron (ABTLuS).
Em nota oficial, a SBF pede ao governo federal que reveja os limites de despesas presentemente estabelecidos, de forma que o mínimo de consistência na política científica brasileira possa ser preservado. Em risco está nada menos que o futuro desenvolvimento do País.
(Ascom da SBF)