Nexo Jornal, em 29/10/19
Usando a biologia, a física e a química, e contando com uma ajudinha crucial da melhor tecnologia do mundo, a cientista Daniela Trivella está transformando riqueza natural em riqueza econômica
Nenhum país sobre a Terra é tão rico quanto o Brasil em biodiversidade, que é a variedade de seres diferentes vivendo nos nossos ecossistemas. Mas essa riqueza toda é vista por muita gente como uma pobreza: um obstáculo no caminho do desenvolvimento. Pois o trabalho da cientista Daniela Trivella é justamente encontrar jeitos de transformar riqueza natural em riqueza daquele outro tipo: a que paga a conta no supermercado. Com uma formação múltipla, Daniela aprendeu a ver o mundo em várias escalas: das minúsculas células da biologia às ainda menores moléculas da química, às ainda muito menores partículas da física. Ela seria uma biofísicoquímica, se essa palavra existisse (como não existe, prefere a qualificação de “cientista”). Daniela está à frente do projeto Molecular Powerhouse (Usina Molecular), que vai usar altíssima tecnologia para encontrar na natureza brasileira moléculas que curem doenças – e gerem riquezas. Ela é pesquisadora do LNBio (Laboratório Nacional de Biociências), uma instituição federal de excelência, que divide o mesmo campus em Campinas com outro centro de primeira linha, o LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron), sobre o qual dá para saber mais nesta entrevista. Significa que ela tem acesso ao ótimo acelerador de partículas UVX – e que, a partir de 2020, poderá usar o espetacular Sirius, o substituto do UVX, que será o melhor do mundo na sua classe. O Sirius, que mais parece um estádio de futebol, é um laboratório de luz síncrotron, um acelerador de elétrons que bombardeia coisas com fótons ultra-velozes, para desvendar seus segredos. É para dentro dele que Daniela vai levar plantas de todo o Brasil.
Cientistas do Brasil
Quem: Daniela Trivella, 39 anos
O quê: cientista (ou biofísicoquímica) especializada em transformar moléculas da natureza em insumos valiosos para a indústria
Onde: no LNBio (Laboratório Nacional de Biociências) , em Campinas. E, a partir de 2020, no acelerador de partículas Sirius
Como: plantando espécies brasileiras, procurando moléculas nelas e usando muito poder de processamento para descobrir quais dessas moléculas são úteis
Esta é a sétima entrevista da série do Nexo “Cientistas do Brasil que você precisa conhecer, ontem e hoje”. O projeto tem duas frentes: uma traz 12 vídeos com a minibiografia de pesquisadores que marcaram a história. A outra traz 12 entrevistas em texto na seção “Profissões” – conversas conduzidas pelo jornalista Denis Burgierman com cientistas brasileiros em atuação hoje. São pesquisadores de áreas como ciências da vida, geociências, física, química, ciência da computação e matemática, que vêm tendo o reconhecimento de seus pares e trabalham em linhas de atuação promissoras. O projeto tem o apoio do Instituto Serrapilheira. A primeira pergunta é sempre a mesma:
O que você quer descobrir na ciência?
DANIELA TRIVELLA Eu quero descobrir novos medicamentos para o tratamento de doenças que ainda não têm cura, usando a maior riqueza do Brasil, que é a biodiversidade.
E como você faz isso?
DANIELA TRIVELLA A gente usa alta tecnologia para fazer a ponte entre a natureza e a clínica. Minhas áreas são biologia e química. Na ciência do passado, a gente trabalhava em laboratório molhado – bancada, reagentes químicos, tubos de ensaio, jaleco, luva, tudo manual. Agora a biologia e a química estão se mudando para laboratórios secos, in silico: estudamos as moléculas a partir de modelos em computador. Por isso, estamos trazendo gente de novas áreas: matemática, computação, inteligência artificial. E, cada vez mais, conseguimos automatizar os processos. Temos equipamentos de massa nos quais se colocam as amostras e eles ficam o fim de semana inteiro coletando dados. Conseguimos escanear bibliotecas inteiras de moléculas naturais. E usamos também a cristalografia de proteínas, um método relativamente antigo, da década de 1960, que consiste em bombardear moléculas naturais com raios-x, para analisar a difração dos raios. Em 2019, a coleta de dados é ainda toda manual – a gente vira noites coletando, no laboratório de luz síncrotron [o UVX, inaugurado em 1997]. Em breve, com o novo laboratório, o Sirius [previsto para ser inaugurado em 2020], isso vai ser feito de modo totalmente automatizado. Hoje, a gente coleta 20 dados a cada vez – lá serão 200.
Então, o que você faz é estudar moléculas que vêm da natureza em busca do potencial farmacêutico?
DANIELA TRIVELLA Isso. É algo que se faz há muito tempo – boa parte das moléculas que usamos em medicamentos vêm da natureza. Mas antes era um processo quase inviável, de procurar agulhas no palheiro, examinando palha por palha para encontrar algo útil em meio a um número quase infinito de moléculas. Com a tecnologia de 2020, a gente vai ter um atalho enorme. A gente criou um projeto chamado MPH – Molecular Powerhouse. Montamos aqui uma coleção de mais de 600 plantas crescendo, da Amazônia, Mata Atlântica, Caatinga, Cerrado. Processamos essas plantas e hoje temos uma coleção de 6.000 amostras. Num laboratório manual, demoraria muitos anos para testar todas. Num sistema automatizado, você faz o primeiro teste [de triagem] em um dia só.
A computação é usada para analisar o formato tridimensional das moléculas e procurar aquelas com potencial médico?
DANIELA TRIVELLA É. A gente tem um outro estudo, sobre mecanismos moleculares de doenças. Estudamos doenças como esclerose múltipla, autismo, câncer, bactérias super-resistentes, vírus (como o zika), para entender como essas doenças funcionam e como é possível intervir no mecanismo natural delas. Geralmente, identificamos uma proteína-chave – na célula tumoral, no vírus, onde for –, que pode ser inibida, ou ter sua ação bloqueada com uma molécula da natureza. Então, quando vamos buscar fármacos, a gente já tem um alvo proteico. E aí, vamos procurar moléculas bioativas para aquele alvo.
Você vê no computador o formato da fechadura, aí pode começar a procurar por uma chave.
DANIELA TRIVELLA Exato. A gente faz uma triagem dessa biblioteca de 6.000 amostras, procurando pelas chaves. Com o modelo no computador, já conseguimos saber quais moléculas são bioativas e onde que elas interagem com a proteína-alvo – a fechadura. Normalmente, a chave não vai ser perfeita – ela dá umas encrencadas. Então, para transformá-la no princípio ativo do medicamento, a gente tem que fazer modificações químicas nessa molécula, que chamamos de otimizações. O objetivo é melhorar a molécula, para que ela atue melhor na proteína e para que não atue em outros alvos, gerando efeitos colaterais. E o computador hoje ajuda nesse processo também: podemos fazer mudanças nas moléculas in silico, para ir filtrando antes de fazer mudanças químicas. A gente não precisa mais produzir mil moléculas no laboratório – produzimos dez, aquelas que já sabemos que têm potencial.
E aí essas dez vão ser testadas in vitro?
DANIELA TRIVELLA In vitro, na nossa proteína-alvo e nas células. A gente tem também aqui um modelo bem legal chamado “organ on a chip”. São modelos de organoides humanos conectados entre si. Por exemplo, conseguimos simular o intestino, o fígado e o rim juntos. Assim, dá para saber como a molécula é absorvida e excretada. Você faz isso num chipzinho, com miniórgãos criados com culturas de células. Só depois, se der certo e for segura, vai para testes com humanos.
Essas moléculas que vocês testam são naturais, tiradas de organismos brasileiros, ou sintetizadas a partir das encontradas nos organismos?
DANIELA TRIVELLA Pode ser as duas coisas. Depende do quão é fácil acessar a molécula na natureza. Se ela foi extraída da casca de uma árvore centenária da Amazônia, é inviável obter grandes quantidades por extrativismo. Tem que sintetizar. Se for uma molécula produzida em abundância por uma planta arbustiva, dá para cultivar, usando agroecologia, movimentando uma cadeia lá na floresta, trazendo benefício para muita gente. Estamos fazendo um banco de dados de todas as moléculas de plantas brasileiras, para poder comparar com cada novo alvo.
E quanto tempo vai levar para vermos na farmácia medicamentos descobertos aqui?
DANIELA TRIVELLA O desenvolvimento de medicamentos costumava demorar de 15 a 20 anos, da forma clássica. Os primeiros medicamentos que estão surgindo agora no mundo feitos com ajuda da computação, com base na estrutura das moléculas, levaram coisa de cinco anos. Nossa perspectiva é que esses métodos computacionais acelerem cada vez mais o processo.
E como você acabou trabalhando com isso? Você sempre soube que queria fazer isso?
DANIELA TRIVELLA Sempre gostei de ciência, e sempre tive interesse nessa parte médica; curar, tratar. Outra coisa que sempre me interessou, desde criança, é o potencial do Brasil – eu não entendia como um país tão rico pode ser tão pobre. Fui fazer ciências biológicas lá na UFSC, eu cresci em Santa Catarina. E logo fui para a bioquímica, a relação da química com a biologia. Emendei mestrado em biotecnologia, onde eu estudava enzimas, processos de detoxificação celular, interação com o meio ambiente. Mas eu queria entender mais a fundo como química e biologia se encontravam, então me mudei para São Carlos e fui fazer doutorado em física biomolecular na USP de lá. Tive que aprender matemática – geralmente biólogo tem aversão. Isso mudou minha vida. Perdi o medo e comecei a usar essa ferramenta: é muito mais simples transformar as coisas em números e trabalhar com os dados. Assim me tornei uma cristalógrafa. A cristalografia gera aquelas imagens lindas de moléculas tridimensionais. Mas você não enxerga essas moléculas diretamente. Você usa raios-x, eles interagem com a proteína e você detecta o padrão de difração. Para construir a imagem da proteína, você tem que calcular.
Você não enxerga a molécula…
DANIELA TRIVELLA Enxergo, mas pelos dados. Uma coisa legal do doutorado foi entrar nesse mundo subnanométrico das proteínas – entender como elas interagem com as substâncias químicas, como se organizam, como perdem a estrutura. Antes, na bioquímica, eu via as enzimas, de forma direta, pelo microscópio. Quando você começa a estudar cristalografia, você aprende a enxergar essa escala – eu olho para a parede e penso como os átomos estão organizados.
E depois do doutorado você veio para Campinas?
DANIELA TRIVELLA Sim, para o Instituto de Química da Unicamp, num projeto para integrar biólogos e químicos – porque, se não tem os dois, você não consegue fazer nada, não conecta as moléculas aos organismos. Como era um instituto de química, as reuniões eram na língua química [risos]. Aí surgiu uma oportunidade em San Diego, na Califórnia, no [Instituto] Scripps [de Oceanografia], que foca em biomedicina e biotecnologia. Eles foram pioneiros em buscar bactérias no mar para desenvolver fármacos. Lá no Scripps, eles pesquisam formas de usar a própria maquinaria da bactéria para produzir fármacos em quantidade, com engenharia genética. Chama biossíntese – trabalhei com isso lá e hoje estamos fazendo aqui com os alunos de pós-graduação. Foram sete meses na Califórnia, como aluna do pós-doc da Unicamp, mas continuo trabalhando até hoje com meu orientador de lá e com colaboradores da área de biossíntese no mundo todo, que conheci lá. Na hora de voltar, meu chefe me ofereceu ficar mais três anos naquele lugar maravilhoso – é lindo lá, um paraíso, com essa massa crítica de ciência e biotecnologia sempre olhando para frente. Mas aí eu pensava… E o Brasil? Porque lá nos EUA não tem tanta biodiversidade. Lá, eles exploram biodiversidade do mundo todo, menos do Brasil, que tem leis muito restritivas. Aqui, tem todo esse potencial, mas vivemos de exportar matéria-prima, como se ainda fôssemos colônia. Por que aqui a gente não faz?
Aí você voltou para fazer?
DANIELA TRIVELLA Voltei, em 2012. O Brasil ainda era aquele foguete voando da capa da Economist – “Brazil Takes Off”. Procurei o diretor aqui do LNBio, o professor Kleber Franchini, apresentei para ele meu background e meus planos. E casou muito bem. Eles tinham acabado de implementar uma plataforma toda robotizada para triar moléculas – tria 10 mil por dia – e estavam buscando mais pesquisa em produtos naturais. Em 2013, comecei aqui, como pesquisadora, com a missão de fazer toda a parte burocrática e montar o laboratório de química. E começamos parcerias, com grupos acadêmicos e com a Phytobios, uma empresa especialista em bioprospecção de plantas.
Vocês têm uma parceria com uma empresa, que vai transformar em produtos as descobertas que forem feitas?
DANIELA TRIVELLA Sim. Eles estão interessados no potencial dessas plantas, para o desenvolvimento de fármacos, cosméticos e alimentos. Eles são o braço de inovação de uma outra empresa, chamada Centroflora, que é a maior produtora de insumos naturais do Brasil. E eles têm um programa de impacto socioambiental com 2.000 famílias de produtores orgânicos que plantam jaborandi, maracujá e outras plantas de forma sustentável, em diferentes regiões. É gente que vivia ou de monocultura ou de agricultura de subsistência de baixo valor agregado: a vida deles melhorou muito agora. Sou fã do programa, porque ele mostra que, se você tem ciência de qualidade, que encontra moléculas de alto valor agregado, você acaba puxando uma cadeia no Piauí, na Amazônia, em toda a parte, que leva qualidade de vida para as pessoas, de forma sustentável, dando valor para a floresta em pé.
E o projeto agora está ganhando impulso, não é?
DANIELA TRIVELLA Sim. Desde 2013, a gente foi montando essa plataforma, com muito suor, sem muito recurso. Aí, em 2018, começamos uma parceria com um laboratório farmacêutico brasileiro, que é o Aché. Nós fazemos a descoberta, vamos até a otimização da molécula, eles realizam os testes pré-clínicos e clínicos, para poder levar os medicamentos ao mercado. E, pela primeira vez, estamos trabalhando com recursos.
E vocês já têm umas moléculas que deixam vocês animados?
DANIELA TRIVELLA Já temos. Mas não posso falar nada.
Está difícil o momento atual, para fazer seu trabalho? A crise está te afetando?
DANIELA TRIVELLA Os cortes nos recursos para ciência diminuem as oportunidades de fomento às pesquisas e, com o impacto nas bolsas, afetam também os recursos humanos envolvidos no nosso trabalho. Então impacta, sim.
Pesquisa científica e recursos naturais: essas duas coisas são o centro do seu trabalho. E parece que as duas estão sob ameaça, com os cortes na ciência e a alta no desmatamento. Tem razão para estar preocupada?
DANIELA TRIVELLA Fico preocupada. Além de toda a importância da preservação do meio ambiente, penso que nossa biodiversidade é uma de nossas maiores riquezas. É também nosso principal diferencial competitivo em relação ao resto do mundo. Desenvolvemos alta tecnologia no Brasil, como o Sirius. Temos agora a oportunidade de aliar esta tecnologia com os diferenciais da nossa biodiversidade, realizando grandes descobertas científicas e desenvolvendo novos medicamentos, por exemplo. Medicamentos têm alto valor agregado e podem contribuir para o desenvolvimento sustentável, levando riqueza para as regiões de floresta e impulsionando a economia local e nacional; valorizando a floresta e mantendo-a em pé.
Como sua formação está presente no seu trabalho?
DANIELA TRIVELLA Está totalmente presente. Desenvolver fármacos requer biologia, física e química, que é o que eu estudei. Agora quero aprender cada vez mais computação, que não é nem o futuro, é o presente. Estou aprendendo técnicas, abordagens, lógica computacional, linguagem, códigos. Fazemos aqui algoritmos customizados.
Qual é a maior dificuldade da profissão e o melhor aspecto dela?
DANIELA TRIVELLA [Para e pensa.] Acho que o melhor é perceber que, por meio de suas perguntas, de sua curiosidade, você pode fazer coisas que podem ter grandes impactos na vida das pessoas [e aí a voz dela quebra, e uma lágrima escorre. Daniela disfarça com uma risada.] A dificuldade é que ciência é demorado. Não é de um dia para o outro que você tem uma resposta. E nem sempre dá certo. Normalmente a solução nem está na pergunta inicial que você fez. Você precisa aprender a ser flexível, a olhar as coisas por outros ângulos.
Algum conselho para quem quer seguir o seu caminho?
DANIELA TRIVELLA Seja curioso. E seja flexível, porque a vida é dinâmica, a ciência é dinâmica. E, nesta área em que eu estou, tudo é multidisciplinar. Independentemente de qual é a sua formação, você tem que ter a cabeça aberta para outros conhecimentos, para outros pontos de vista.