Revista Pesquisa FAPESP, em agosto 2016
Estudo analisa distribuição de projetos de pequenas empresas de base tecnológica paulistas e aponta São Carlos como o polo mais denso
A formação de polos de inovação no estado de São Paulo é influenciada por alguns fatores peculiares e nem sempre segue a dinâmica observada em outros países. Essa é uma das conclusões de um estudo feito por pesquisadores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade George Washington, nos Estados Unidos, que analisou a prevalência em diferentes regiões do estado do chamado empreendedorismo intensivo em conhecimento (KIE, na sigla em inglês). Trata-se da concentração de empresas jovens e inovadoras que utilizam novas tecnologias geradas por universidades e por elas próprias e conseguem tirar partido de oportunidades de negócio em setores diversos.
Os pesquisadores utilizaram dados do programa Pesquisa Inovativa em Pequenas Empresas (Pipe) da FAPESP, que desde 1997 apoia a execução de pesquisa científica e tecnológica em micros, pequenas e médias empresas em municípios paulistas. De acordo com os autores, trata-se de um indicador confiável, ainda que restrito, da localização de inovação empresarial no estado. Foram analisados 1.130 projetos Pipe distribuídos em 114 cidades que tiveram pelo menos um projeto concedido entre 1998 e 2014. Cinco delas se destacaram pela alta concentração de projetos: São Paulo (298 projetos), Campinas (197), São Carlos (177), São José dos Campos (72) e Ribeirão Preto (55). Observou-se que, embora a capital paulista abrigue a maior quantidade de projetos, em termos relativos é São Carlos que tem mais destaque, com 199 projetos Pipe por grupo de 100 mil habitantes (ver gráfico).
Uma contribuição original do estudo foi indicar que, em contraste com o que indica a literatura sobre a formação de clusters de inovação em países desenvolvidos, a existência de grandes aglomerados urbanos no estado de São Paulo não produziu automaticamente uma concentração de empreendimentos intensivos em conhecimento. A hipótese dos autores é que, em países em desenvolvimento, certas desvantagens de ordem econômica das grandes metrópoles levam parte das empresas para outras regiões. Os pesquisadores cruzaram informações sobre a concentração de projetos Pipe com dados socioeconômicos dos municípios fornecidos pelo Sistema Estadual de Análise de Dados (Seade). Constataram, por exemplo, que indicadores de mobilidade, como o número de habitantes por automóvel, e de demografia, como a densidade populacional, exercem impacto negativo sobre a localização de projetos Pipe. Já outros indicadores analisados, como a criminalidade, parecem não ter influência. “O trânsito excessivo das grandes cidades atrapalha a logística, eleva os custos da inovação e pode ser apontado como uma das causas do processo de desindustrialização da capital paulista nas últimas décadas”, explica Bruno Brandão Fischer, professor da Faculdade de Ciências Aplicadas da Unicamp, campus de Limeira, e autor principal do estudo, que foi apresentado na Atlanta Conference on Science and Innovation Policy, nos Estados Unidos, no ano passado.
No entanto, uma relativa proximidade das pequenas empresas de base tecnológica com grandes centros urbanos mostrou-se um fator decisivo no surgimento de polos de inovação. “São nos centros econômicos que se localizam potenciais clientes e usuários de serviços tecnológicos”, afirma Sérgio Robles Reis de Queiroz, professor do Departamento de Política Científica e Tecnológica do Instituto de Geociências da Unicamp, também autor do artigo. “Para quem faz pesquisa empresarial no estado de São Paulo é bom estar perto da capital e do conhecimento produzido ali, mas não necessariamente dentro dela”, explica Queiroz, que é coordenador-adjunto da área de Pesquisa para Inovação da FAPESP.
O trabalho não se debruça sobre as razões que colocam São Carlos em destaque, mas traz algumas hipóteses relativas às condições locais que favoreceriam a concentração de projetos Pipe na cidade. “Estamos iniciando um estudo sobre São Carlos e já é possível afirmar que a infraestrutura local de pesquisa, que inclui a Universidade Federal de São Carlos [UFSCar], um campus da Universidade de São Paulo [USP] e empresas como a Embrapa, exerce um papel fundamental”, informa Fischer.
O município tem uma alta concentração de doutores. Um estudo feito em meados dos anos 2000 por Jorge Oishi, estatístico e professor aposentado da UFSCar, mostrou que a cidade reunia na época 1,7 mil doutores, numa população de cerca de 230 mil habitantes. Ali também foi criada uma das primeiras incubadoras de empresas de base tecnológica do Brasil, na Fundação Parque de Alta Tecnologia (ParqTec), em 1985, localizado bem próximo dos campi da UFSCar e da USP. Segundo o estudo, outros fatores com impacto na concentração de projetos Pipe no município estão relacionados à mobilidade urbana e ao custo de vida mais baixo.
São Carlos fica a 230 quilômetros da capital paulista e o percurso rodoviário se cumpre em pouco mais de duas horas. Marco Antonio Pereira, sócio da Itera, empresa instalada em São Carlos desde 2008 e especializada em soluções tecnológicas na gestão de documentos eletrônicos, costuma ir a São Paulo todas as semanas. “É onde estão nossos principais clientes”, conta. A decisão de se fixar em São Carlos teve a ver com o ambiente científico da cidade. “A empresa está localizada a poucos minutos de departamentos de ciência da computação da USP e da UFSCar, com quem trabalhamos com frequência”, explica Pereira, que é mestre em ciência da computação pela UFSCar.
Em 2015, a companhia recebeu apoio do Pipe para desenvolver um software que extrai os principais conceitos e palavras de grandes volumes de documentos e ajuda a organizá-los, e conseguiu a parceria do Instituto de Ciências Matemáticas e de Computação (ICMC) da USP. “O instituto está conectado a redes internacionais. A aproximação com o ICMC é uma forma de mantermos a empresa sintonizada com o conhecimento em nível global.”
O fenômeno se observa em outras cidades, e com argumentos semelhantes. “Estamos em São José dos Campos, a apenas 100 quilômetros de São Paulo. A distância curta nos permite impulsionar novos negócios na capital, sem precisarmos arcar, por exemplo, com os custos elevados de um aluguel lá”, explica a engenheira Renata de Cássia Ferreira Silva, sócia da RVT, empresa dedicada à gestão do consumo de energia elétrica. Em 2015, a companhia recebeu auxílio do Pipe para desenvolver um simulador capaz de estimar a redução do consumo de energia elétrica de equipamentos de refrigeração industrial. Nas pesquisas que realiza, a empresa mantém parcerias com a Faculdade de Engenharia Química da Unicamp e com o Parque Tecnológico de São José dos Campos, que interage com empresas como Embraer, Vale, Ericsson e Sabesp.
Perfis distintos
Os resultados do estudo suscitam um debate sobre as razões que levam cidades como São Carlos e Campinas, ambas com notória vocação para a inovação, a apresentarem perfis diferentes na concentração de projetos desenvolvidos por pequenas empresas. Embora, em números absolutos, o desempenho seja semelhante, em termos relativos a diferença é grande: São Carlos contabiliza 199 projetos Pipe por 100 mil habitantes, enquanto Campinas, com uma população quatro vezes maior, tem 43 projetos Pipe por 100 mil habitantes. Para o economista Marcelo Silva Pinho, professor da UFSCar, uma explicação é que as duas cidades têm sistemas de inovação local bem diferentes. De acordo com ele, a maioria das startups estabelecidas em São Carlos nasceu de projetos desenvolvidos dentro das universidades instaladas na cidade. “Em São Carlos, muitas empresas são o desdobramento de iniciativas individuais de pesquisadores e professores. Já em Campinas, com um ambiente industrial mais complexo, várias empresas de base tecnológica nascem de outras empresas”, explica Pinho. Tais características podem exercer influência na concentração de projetos Pipe. Segundo ele, uma hipótese é que empreendedores com perfil acadêmico tenham mais familiaridade com os trâmites necessários para elaborar projetos e participar de editais, enquanto empresários com experiência na indústria recorrem a outros expedientes para se financiar.
As diferenças entre os sistemas de inovação em São Carlos e Campinas também podem ser observadas na forma como as empresas se relacionam com o conhecimento local, sugere Gustavo Benevides, professor da Escola Superior de Administração, Marketing e Comunicação de Campinas (Esamc) e autor de artigos sobre a formação de polos tecnológicos no interior paulista. “Em Campinas, observo que as empresas interagem bastante com centros de excelência, como o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais [CNPEM], o Centro de Pesquisas Renato Archer, o Núcleo de Inovação Tecnológica Mantiqueira e o Instituto Eldorado, às vezes até mais do que com a Unicamp”, aponta Benevides. Segundo ele, essa dinâmica reflete um sistema de inovação cujos atores interagem pontualmente e de maneira mais dispersa. “Em Campinas, os institutos de pesquisa não conversam muito entre si e atuam de forma mais independente, estabelecendo mais contato com o mercado. E as empresas, quando precisam de soluções rápidas e urgentes, procuram esses institutos.”
Já em São Carlos, a relação está mais próxima das universidades, na visão do pesquisador. “Lá, há três parques tecnológicos interligados com a UFSCar e a USP. Isso permite que a interação entre universidades e empresas seja mais pulsante em São Carlos”, avalia. Para Sérgio Queiroz, ainda faltam estudos capazes de mostrar, com dados concretos, quais fatores diferenciam os sistemas de inovação nas duas cidades. “Nossa pesquisa não se propôs a responder a essa dúvida”, ressalta.
Formação de clusters
Em países desenvolvidos, é comum que grandes aglomerados urbanos abriguem boas universidades e atraiam para o seu entorno empreendimentos intensivos em conhecimento. “É importante que as empresas e startups se fixem em cidades onde seja fácil acionar grupos de pesquisa em universidades, como forma de encontrar solução para seus problemas tecnológicos”, esclarece Renato de Castro Garcia, professor do Instituto de Economia da Unicamp. Na sua avaliação, a concentração de conhecimento nas universidades é um dos principais fatores que levaram certas localidades a se consolidarem como polos de inovação.
No Vale do Silício, na Califórnia, por exemplo, as vantagens de estar próximo do fluxo de informações das empresas de tecnologia, da força de trabalho capacitada, da infraestrutura de pesquisa e de prestadores de serviços e de grandes investidores superam os custos elevados da região, observa AnnaLee Saxenian, professora da Universidade da Califórnia em Berkeley, pesquisadora da área de geografia da inovação. “Apesar de haver congestionamento de tráfego e um custo de vida elevado, continuam surgindo startups inovadoras no Vale do Silício”, afirma a pesquisadora, que participou de um workshop sobre inovação na sede da FAPESP em junho.
O sucesso dos clusters também depende de outros fatores. “Para ter êxito numa economia globalizada, as cidades precisam estar conectadas a redes globais de conhecimento, por meio de intercâmbios entre pesquisadores”, observa Nicholas Vonortas, professor da Universidade George Washington e também autor do estudo. O pesquisador coordena até 2019 um projeto sobre sistemas de inovação na Unicamp no âmbito do programa São Paulo Excellence Chairs (Spec) da FAPESP. Para Sérgio Queiroz, da Unicamp, o estudo ajuda a identificar onde estão localizadas, no mapa do estado de São Paulo, as cidades em que o solo é mais fértil para a inovação. “São as cidades onde os investimentos voltados para a pesquisa empresarial têm mais chances de dar retorno”, conclui.
Projeto
Sistemas de inovação, estratégias e políticas (nº 2013/50524-6); ModalidadePrograma São Paulo Excellence Chairs (SPEC); Pesquisador responsável Nicholas Spyridon Vonortas (Instituto de Geociências-Unicamp); Investimento R$ 992.533,20 (para todo o projeto).