Por Agência FAPESP em 07/01
Antonio Ricardo Droher Rodrigues faleceu na sexta-feira, 3 de janeiro, aos 68 anos. Engenheiro civil formado pela Universidade Federal do Paraná (UFPR) e doutor em Física pelo King’s College, University of London, foi responsável pelo projeto dos aceleradores dos dois síncrotrons brasileiros: o UVX, o primeiro do hemisfério Sul, inaugurado em 1997, e o Sirius, seu sucessor, em fase final de comissionamento, ambos no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas.
Era casado com Liu Lin, líder do grupo de Física de Aceleradores do LNLS, e deixa três filhos: Erica, Kevin e Ian. Seu corpo foi cremado no sábado, em Campinas.
“Ricardo foi um engenheiro genial, responsável pela parte principal no projeto do primeiro Síncrotron UVX. Foi também quem projetou o Sirius e dirigiu as operações que levaram ao seu sucesso como grande obra instrumental para a ciência, inteiramente projetado e, em grande parte [80%], construído no Brasil”, diz Rogério Cezar Cerqueira Leite, presidente do Conselho do CNPEM. “Além do mais, foi sempre um pesquisador dedicado, gentil e modesto. Enfim, um exemplo de cientista e cidadão para todos os brasileiros.”
Em tratamento de um câncer no pulmão, Ricardo Rodrigues não presenciou a primeira volta de elétrons no anel de Sirius, em 25 de novembro de 2019, e nem estava presente quando a equipe conseguiu armazenar elétrons por várias horas no acelerador, em 14 de dezembro do mesmo ano. Mas apareceu para uma foto dois dias depois, quando a equipe conseguiu gerar corrente suficiente para fazer chegar a luz síncrotron pela primeira vez em uma das futuras estações experimentais do Sirius . “Fizemos por ele. E ele ficou muito feliz”, diz Antonio José Roque da Silva, diretor-geral do CNPEM.
“O Ricardo era um gênio”, afirma o físico Cylon Gonçalves da Silva, que liderou o projeto de construção de UVX, no início dos anos 1980 e que dirigiu o LNLS de 1986 a 1998. “Conheci muita gente excepcional, mas inteligência técnica e capacidade criativa como a dele eu nunca vi. Não era vaidoso, mas sabia o que valia. Era um líder extraordinário pela generosidade. A comunidade brasileira deve muito a ele.”
O “homem da máquina”
No segundo ano de graduação na engenharia civil da UFPR, Ricardo Rodrigues começou a estudar óptica de raios X, orientado por Cesar Cusatis, coordenador do Laboratório de Óptica de Raios X e Instrumentação no Departamento de Física. “Era uma pessoa excepcional”, lembra Cusati. “Saiu da graduação e foi imediatamente aceito como aluno de doutorado no King´s College, tendo como orientador Michael Hart, o inventor do interferômetro de raios X”, conta Cusati. “Quando voltou ao Paraná foi um suporte fundamental para nosso laboratório”, ele conta.
Três anos depois, transferiu-se para o Instituto de Física da Universidade de São Paulo (USP), de São Carlos, onde Cusati tinha feito o doutorado na área de cristalografia de RX, orientado por Ivone Mascarenhas. “Ricardo Rodrigues é um cientista de alto padrão e um dos personagem mais importantes na história recente da ciência brasileira”, diz Sérgio Mascarenhas, professor aposentado do Instituto de Física da USP de São Carlos
Essa trajetória conferiu a Ricardo Rodrigues uma formação excepcional. “Tinha uma visão prática, conferida pela engenharia, interessava-se por eletrônica e, ainda durante a graduação, fez iniciação científica em óptica e instrumentação de raios X”, afirma o diretor-geral do CNPEM.
Assim, quando Roberto Lobo, presidente do Centro Brasileiro de Pesquisa Física (CBPF), começou a montar o Comitê Executivo do Projeto Radiação Síncrotron – que daria origem ao primeiro síncrotron brasileiro e ao LNLS – Ricardo Rodrigues era um candidato natural. “Era só dizer que um projeto era difícil que ele mordia a isca”, afirma Cylon Gonçalves.
Ricardo Rodrigues passou a integrar o Comitê Executivo do projeto em outubro de 1983. Dois anos depois, aos 33 anos, coordenou a equipe de engenheiros e físicos que desenvolveu o projeto do anel acelerador no Stanford Syncrontron Radiation Laboratory (SSRL), nos Estados Unidos, sob orientação de Helmut Wiedemann.
“Não tinha ninguém que sabia fazer isso aqui no Brasil e fomos lá aprender”, contou o próprio Ricardo Rodrigues em entrevista ao site O mundo da usinagem, em 2019. Quando o UVX começou a ser construído, em 1986, Ricardo Rodrigues já era conhecido como o “homem da máquina”, conta Marcelo Baumann Burgos no livro Ciência na Periferia: A Luz Síncrotron Brasileira. Um ano depois assumia a posição de chefe da Divisão de Projetos do então recém-criado Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS).
O projeto desenvolvido em Stanford, conhecido como Projeto 1, era mais moderno e arrojado do que foi possível construir. A partir de meados dos anos 1980, a falta de recursos, além de comprometer o cronograma do UVX, exigiu que a equipe liderada por Ricardo Rodrigues revisasse os parâmetros da máquina: o acelerador, inicialmente projetado para uma energia de 3 GeV, foi redesenhado para operar com 1,15 GeV.
O UVX foi inaugurado em 1997. Quatro anos depois, quando Cylon Gonçalves deixou a direção do LNLS, Ricardo Rodrigues demitiu-se. “Depois de 15 anos de trabalho intenso, estávamos todos exaustos, estressados”, lembra Cylon Gonçalves.
Voltou em 13 de agosto de 2009, atendendo a um convite de José Roque, que acabara de assumir a direção do LNLS com o compromisso de iniciar o projeto de construção de um novo síncrotron. O sim veio depois de um almoço de mais de duas horas. “Ele me perguntou se valeu a pena ter construído o primeiro síncrotron. Respondi que o UVX foi fundamental para o treinamento de pessoas para dar um salto mais competitivo com uma nova máquina. Além disso, era a chance de ele realizar o sonho de fazer um equipamento de fronteira”, afirma o diretor-geral do CNPEM.
Quando iniciou o projeto Sirius, Ricardo Rodrigues era, novamente, o homem certo, no lugar certo. O novo síncrotron, de quarta geração, foi concebido no estado da arte da tecnologia, comparando-se apenas ao Max IV, inaugurado em junho de 2016 na Suécia.
“O projeto inicial era fazer uma máquina de terceira geração e, então, o comitê avaliou que todos no mundo já estavam pensando em quarta. Em um mês, refizemos todo o projeto de óptica da máquina e mudamos a câmara de vácuo, que precisava ser de cobre. Foi um bom aquecimento. Hoje temos uma máquina melhor que a do Max IV”, disse Ricardo Rodrigues na entrevista ao site O mundo da Usinagem. Foi ele quem liderou a equipe do LNLS no redesenho da rede magnética para que o brilho de Sirius – de 0,28 nm.rad – fosse o mais intenso entre todos os síncrotrons em operação, lembra José Roque.
A nova máquina, que deverá iniciar a operação ainda este ano, possibilitará a realização de pesquisa competitiva, impossível de ser realizada hoje no Brasil com o síncrotron atual. As seis primeiras estações experimentais de pesquisa – nanoscopia de raios X, espalhamento coerente de raios X, micro e nanocristalografia macromolecular, por exemplo – foram selecionadas para atender tanto às novas demandas da ciência e da tecnologia, como para permitir o avanço de investigações em áreas estratégicas como óleo e gás, saúde, entre outras.
Ciência e arte
Em 2002, depois que deixou o LNLS, Ricardo Rodrigues decidiu empreender. Junto com Liu Lin e o técnico em eletrônica Carlos Scorzato, amigo desde os tempos da UFPR, montou a Skedio Tecnologia. “A nossa proposta era fazer instrumentação”, conta Scorzato. A empresa desenvolveu controles para a indústria da construção civil, desfibriladores cardíacos, dosadores, medidor de pressão industrial, entre outros. “A ideia era produzir coisas que não existiam”, resume.
A lista de inovações desenvolvidas pela Skedio incluiu um sistema de acionamento de uma instalação da artista plástica Tania Fraga para uma exposição no Instituto Itaú Cultural, em 2004, e em Adelaide, na Austrália, em 2007. A obra – na verdade um robô em formato de cubo com 1,20 metro de face –, interagia com um computador para produzir movimentos ondulatório, semelhantes aos de arraia (veja o vídeo).
“Eu tinha participado de um workshop no Canadá e descobri que determinados nanomateriais como o nitinol, permitiam externalizar o virtual”, diz. Ela foi atrás de quem pudesse desenvolver sistema semelhante e encontrou a Skedio. “O Ricardo topou o desafio”, diz Fraga.
Scorzato explica tratar-se de um metal com “memória” que, quando aquecido, pode ser moldado para assumir uma determinada forma e, resfriado, volta à posição original – foi isso que conferiu movimento ondulatório ao robô projetado.
O sistema da Skedio era recoberto com uma membrana “estimulável”, confeccionada em borracha natural produzida por comunidades da Amazônia. O usuário manipula a forma virtual usando uma tela sensível ao toque, que aciona o robô e ambos, o virtual e o material, se movem durante um minuto com os mesmos movimentos, num diálogo entre a ciência e a arte, ela explica. “O curador da exposição na Austrália ficou encantado”, ela diz.
Cylon Gonçalves acredita que, se Ricardo Rodrigues não tivesse sido cientista, teria sido artista. “Ele desenhava e pintava. Todo o talento que tinha para a ciência, também tinha para a arte”.