Exame, 07/05/2020
Enquanto uma vacina não é desenvolvida, a busca por um remédio ainda é a maior esperança para evitar que a pandemia faça mais vítimas
Pouca gente deu importância quando um grupo de 23 cientistas dos Estados Unidos publicou um artigo na revista científica Science Translational Medicine em junho de 2017. A pesquisa descrevia pela primeira vez a ação de um novo medicamento, com o nome de GS-5734, contra doenças como a sars (síndrome respiratória aguda grave) e a mers (síndrome respiratória do Oriente Médio). O remédio, também chamado de remdesivir e criado pela farmacêutica Gilead, era estudado para o tratamento de ebola desde 2013. E os pesquisadores suspeitaram que ele poderia controlar as infecções de coronavírus.
Quase prevendo o que aconteceria em 2020, os cientistas concluíram: “Nosso trabalho fornece evidências de que o GS-5734 pode evitar que pacientes infectados por coronavírus evoluam para uma doença mais grave (…) e de que sua ação pode ser valiosa quando um novo coronavírus surgir no futuro”. O virologista Robert Jordan, um dos principais autores da pesquisa, se recorda. “Nossa motivação era a mers, porque a doença ainda estava ativa na Arábia Saudita. Mas observamos a atividade do remdesivir em diferentes coronavírus. É ótimo que isso tenha ajudado nas pesquisas da covid-19”, diz o pesquisador, que foi diretor de biologia da Gilead de 2011 a 2018.
Graças a pesquisas como essa, o remdesivir tornou-se um dos remédios de maior potencial contra a covid-19. No dia 1o de maio, a FDA, agência americana que regula o uso de medicamentos, deu autorização para que ele seja usado em caráter emergencial. Desde que o surto começou, é a primeira vez que uma droga recebe o sinal verde. A decisão foi tomada depois que surgiram novas evidências sobre o remdesivir.
Em uma pesquisa com mais de 1.000 pacientes nos Estados Unidos, o remédio reduziu o tempo médio de internação de 15 para 11 dias. A mortalidade caiu de 11% para 8%, uma diferença pequena estatisticamente. Novos estudos devem dar mais clareza. Ao todo, mais de 7.500 pacientes em 450 hospitais participam de ensaios com o medicamento. Como tudo na ciência, é possível que a conclusão seja que ele não é eficaz contra a covid-19. Num estudo com 237 pacientes em Wuhan, na China, o remdesivir não alterou a evolução da doença. Mas as notícias recentes já foram suficientes para dar esperanças. O índice Dow Jones subiu 2,2% em 29 de abril com os novos resultados sobre o remdesivir.
Pesquisador da farmacêutica Gilead, nos Estados Unidos: os estudos com o remdesivir mostraram-se promissores contra a covid-19 | David Paul Morris/Bloomberg/Getty images
Enquanto uma vacina não é desenvolvida, encontrar um remédio é a maior esperança para reduzir a mortalidade e acelerar o tratamento. É uma corrida contra o relógio. O desenvolvimento de um remédio do zero pode levar até 20 anos. Por isso, boa parte das pesquisas tem se debruçado sobre drogas já existentes. São 182 medicamentos e 99 vacinas sendo estudados no mundo. A lista inclui antivirais — que, assim como o remdesivir, inibem a reprodução do vírus —, além de corticoides, antibióticos e imunomoduladores, que ajudam a equilibrar a resposta do sistema imunológico.
Esses remédios são importantes porque, na maioria dos casos, o paciente morre não por causa do vírus, mas em razão da reação agressiva das células para combatê-lo, um processo conhecido como “tempestade de citocina”. Ao todo, mais de 1.400 testes clínicos estão em andamento. “É um esforço sem precedentes”, diz James Cutrell, professor na Universidade do Texas e autor de um estudo que analisa as pesquisas de medicamentos contra a covid-19. “Os resultados são encorajadores, mas o remdesivir dificilmente será uma bala de prata. Precisamos identificar outras terapias.”
Um dos principais exemplos dos esforços científicos é o ensaio clínico internacional Solidarity, capitaneado pela Organização Mundial da Saúde. O estudo tem o objetivo de testar quatro remédios no tratamento de pacientes em estágio grave. Além do remdesivir, estão nesse grupo a cloroquina e a hidroxicloroquina (usadas contra a malária e outras doenças) e a combinação entre o lopinavir e o ritonavir (contra o HIV). Uma quarta vertente estuda a mesma combinação (lopinavir e ritonavir) associada ao interferon-beta, usado no tratamento de esclerose múltipla.
Com participação de França, Suíça, Espanha, Noruega, Canadá, Irã, África do Sul, Argentina e Brasil, o estudo pretende chegar a 10.000 pacientes. No Brasil, a iniciativa é liderada pelo Ministério da Saúde e pela Fiocruz e pode envolver 1.500 pacientes — por enquanto são cerca de 100. “Há muita ansiedade para encontrar uma resposta e isso leva a uma supervalorização de dados preliminares. A única forma de resposta é com um estudo clínico robusto”, diz Estevão Portela Nunes, vice-diretor do Instituto Nacional de Infectologia Evandro Chagas da Fiocruz e pesquisador principal do Solidarity no Brasil. Se tudo caminhar bem, a pesquisa da OMS deverá dar respostas mais consistentes sobre os medicamentos.
Das drogas pesquisadas, nenhuma causou tanta polêmica quanto a cloroquina. Criada há cerca de 90 anos, ela se mostrou eficaz contra doenças como malária, lúpus e artrite reumatoide. A hidroxicloroquina é uma versão menos tóxica. O principal efeito colateral é o risco de arritmia cardíaca. Ainda não se sabe exatamente como a droga age contra a covid-19. Entre as hipóteses levantadas estão a de que ela altere o pH da célula, inibindo a replicação do vírus, e a de que ajude a reduzir a resposta inflamatória. Na pandemia, seu uso ganhou contornos políticos. Nos Estados Unidos, o presidente Donald Trump defendeu o remédio, mesmo sem a comprovação científica. Foi seguido por Jair Bolsonaro no Brasil. As declarações fizeram explodir as buscas pela droga na internet e levaram a uma corrida às farmácias. Em alguns países, o uso indevido causou intoxicação e mortes.
Pesquisas na França apresentaram resultados positivos sobre a cloroquina, mas tiveram a metodologia questionada. No Brasil, um estudo da Fiocruz em Manaus foi encerrado depois que 11 pacientes morreram ao tomar doses altas. O objetivo era comparar os efeitos de doses baixas e altas em pacientes graves. “Usamos a maior dose segura, mas o remédio levou a um aumento da arritmia maior do que se esperava”, diz o médico infectologista Marcus de Lacerda, um dos envolvidos no estudo.
Um estudo da Prevent Senior foi suspenso por inconsistências entre a data do início do tratamento e a do pedido de autorização. A operadora de saúde diz que divulgou os dados observados em seus beneficiários e que houve erro ao associá-los à pesquisa. A empresa enviou esclarecimentos ao governo. A pesquisa foi suspensa. “Foi apresentada uma pesquisa preliminar como sendo um estudo científico”, diz Jorge Venancio, coordenador da Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep). “Os dados podem ser válidos, mas o trabalho não é o que a empresa diz.”
Até o início de maio, havia 199 pesquisas relacionadas ao novo coronavírus no Brasil. Um grupo de hospitais, entre eles Albert Einstein, HCor e Sírio-Libanês, realiza dois estudos para testar a hidroxicloroquina em diversos estágios da doença. O primeiro, com 1.050 pacientes, é focado em pacientes em estado moderado ou grave e usa também o antibiótico azitromicina. O segundo, com 1.300 pacientes, estuda a eficácia apenas da hidroxicloroquina nos casos leves.
Um dos objetivos é entender se o medicamento ajuda a evitar a internação, importante em um contexto de falta de leitos. Os estudos usam medicamentos doados pela farmacêutica EMS, que dobrou a produção do remédio. “A vantagem de usar uma droga existente é que conhecemos melhor o remédio e ganhamos tempo”, diz Roberto Amazonas, diretor médico-científico da EMS. O número de ensaios é grande, mas os resultados finais podem demorar. “Infelizmente, o tempo da ciência é lento”, diz Caio Gonçalves de Souza, gerente médico da Apsen, farmacêutica nacional que produz 95% dos remédios com hidroxicloroquina vendidos no Brasil e já doou o remédio a 30 hospitais.
O que os cientistas estão fazendo é tentar encontrar uma molécula capaz de interferir no metabolismo do vírus. O processo se assemelha à montagem de um quebra-cabeça. A peça (a molécula) precisa se encaixar perfeitamente ao desenho (o vírus). A dificuldade é que existe um número exponencial de moléculas e princípios ativos. O uso de sistemas computacionais ajuda a reduzir o número de hipóteses (leia mais na pág. 84).
Os pesquisadores cruzam os dados das substâncias com as informações genéticas do vírus. Assim não se perde tempo com opções furadas. Identificada uma hipótese plausível, a substância é testada em células e em animais e, depois, em humanos. “Embora seja possível acelerar o trabalho com o uso de tecnologia, é inviável pular qualquer etapa”, diz Lenio Alvarenga, diretor médico da farmacêutica Roche. A empresa conduz uma pesquisa com um de seus medicamentos, o Actemra, indicado para o tratamento de artrite reumatoide. O estudo encontra-se na terceira fase, de testes com humanos.
A procura por alguma droga vai além. O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais, ligado ao Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, avaliou 2.000 drogas usando inteligência artificial em busca de moléculas contra o vírus. Seis mostraram-se promissoras e seguiram para o teste in vitro. Uma apresentou 94% de eficácia e agora é testada em um grupo de 500 pacientes. O ministro da Ciência, Marcos Pontes, divulgou a novidade, mas não disse o nome do remédio para evitar uma corrida às farmácias.
No dia seguinte, a Anvisa endureceu as regras para a venda de nitazoxanida, usada no remédio Annita, um dos mais vendidos do país. Ele é usado no tratamento de vírus intestinais e protozoários. Ainda que a pesquisa não seja confirmada pelo governo, a farmacêutica FQM Farmoquímica, que vende o Annita, realiza um estudo próprio com o princípio ativo. Cinquenta pacientes são avaliados. Depois a empresa deve fazer um estudo maior, com 400 pessoas. O objetivo é testar a droga em pacientes internados, mas não em estado grave.
Uma hipótese é que a medicação interfira na entrada e na replicação do vírus. Outra é que ele ajude a controlar a tempestade inflamatória. O remédio também é estudado no Egito e no México. A FQM começou a avaliar o medicamento em janeiro, antes de a doença chegar ao Brasil. É um risco que a indústria no Brasil deveria correr mais, na visão de Vinicius Blum, gerente executivo da FQM e responsável pela área médica. “Nossa indústria cresceu em um ambiente baseado na cópia. Precisa entender que é capaz de solucionar problemas e ter coragem de investir”, afirma.
Fora do Brasil, outras drogas são avaliadas. No Canadá, uma pesquisa liderada pela Universidade de British Columbia identificou um antiviral chamado APN01. Em testes in vitro, o APN01 preveniu que o coronavírus infectasse as células. Para Josef Penninger, que liderou a pesquisa, a corrida pelos medicamentos leva a um entusiasmo desmedido. “A porta de entrada do vírus é a enzima receptora ACE-2. Por isso, esse acesso precisa ser bloqueado”, diz o pesquisador.
“Nossa droga é projetada não apenas para isso mas também para proteger pulmão, vasos sanguíneos e coração. Na minha visão, é uma abordagem terapêutica mais racional.” Os ensaios agora estão em curso com 200 pacientes. Além dessa pesquisa, a suíça Novartis, um dos maiores laboratórios do mundo, trabalha em um medicamento contra a covid-19. Chamado Jakavi, ele se baseia na droga ruxolitinibe, usada para o tratamento da mielofibrose, um tumor que afeta a medula óssea. O remédio bloqueia a resposta exagerada do sistema imunológico. A droga é testada agora em pessoas que tiveram casos severos de pneumonia.
Uma dúvida é como as pesquisas vão evoluir agora que o número de casos vem caindo nos Estados Unidos e na Europa, onde está a maioria dos esforços científicos. Se o número de pessoas com a doença for baixo, haverá um risco de a pesquisa não ir para a frente. O estudo com o remdesivir em Wuhan, por exemplo, tinha como meta 400 participantes, mas acabou restrito a 237 porque a epidemia chegou ao fim na cidade chinesa.
Segundo uma pesquisa do Massachusetts Institute of Technology, a chance de um ensaio clínico de um medicamento ter sucesso é de apenas 16%. Dos 45 remédios pesquisados contra ebola, sars, mers e zika nos últimos 20 anos, nenhum mostrou ser efetivo. “Pode ser que tudo que estamos estudando agora não tenha utilidade imediata, mas será útil para uma próxima epidemia”, diz Marcus de Lacerda, médico infectologista de Manaus. Os estudos sobre o remdesivir e outros medicamentos oferecem uma esperança. Mas o sucesso de uma droga agora seria um ponto fora da curva.