CNN em 05/07/2021
Pesquisadores estão usando o Sirius, maior projeto científico do Brasil, para mapear moléculas que inativem coronavírus e assim desenvolver medicamentos
O maior e mais complexo instrumento de pesquisa científica feito no país, o superacelerador de partículas Sirius, tem ajudado em estudos sobre o novo coronavírus – isso mesmo sem estar totalmente aberto aos cientistas, o que deve ocorrer somente no segundo semestre deste ano.
As primeiras pesquisas feitas no superacelerador de partículas construído em Campinas (SP) foram direcionadas para a busca de um possível remédio contra a Covid-19 antes mesmo que ele fosse oficialmente inaugurado, em outubro do ano passado.
A gigantesca máquina tem a capacidade de “escanear” todo tipo de matéria. O equipamento tem sido usado por grupos brasileiros de pesquisa já familiarizados com esse tipo de tecnologia. Antes do Sirius, só era possível encontrá-la no exterior.
Um dos grupos é o Centro de Pesquisa e Inovação em Biodiversidade e Fármacos (CIBFar), vinculado à USP (Universidade de São Paulo) e com sede em São Carlos (SP).
“Nosso objetivo é produzir enzimas importantes do vírus em laboratório. Depois disso, nós tentamos verificar quais medicamentos ou outras moléculas interagem com essa proteína em um tubo de ensaio. Até o momento, já testamos mais de 10 mil moléculas contra essa proteína feita a partir do coronavírus”, afirma o biólogo André de Godoy, pós-doutorando do CIBFar.
O grupo estuda doenças como zika, febre amarela e chikungunya, mas desde a chegada da pandemia parou todos as outras pesquisas para focar no causador da maior crise sanitária mundial dos últimos 100 anos.
Além dos cientistas da USP São Carlos, o Laboratório Nacional de Biociências tem usado a infraestrutura do Sirius para entender melhor como a relação entre o vírus e determinadas moléculas ocorrem. Este é um dos quatro laboratórios do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização social responsável pelo Sirius e supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações.
Mais nitidez na garimpagem
Os pesquisadores dizem que, sem o Sirius, a visão para tentar estudar vírus no Brasil é um pouco opaca. Por ter potência maior, o superacelerador de partículas permite que a luz síncroton usada nas linhas de pesquisa (leia abaixo como é a luz síncroton) entre muito mais a fundo nas estruturas, o que dá nitidez à visão dos cientistas. Com isso, aumenta a velocidade para identificar moléculas que interrompam a infecção provocada pelo vírus.
O desenvolvimento de um medicamento costuma começar desse modo, segundo Godoy. É preciso, primeiro, identificar quais moléculas conseguem se ligar a um determinado vírus e desempenhar o papel de brecar a atividade do invasor no corpo humano. No entanto, o processo de descoberta de novos medicamentos é longo. Com o Sirius, os cientistas tentam agilizar a garimpagem. Das milhares de moléculas testadas até agora, poucas vão chegar ao fim do processo.
“Temos cerca de 20 moléculas que parecem ter alguma atividade em inibir a enzima do vírus. A questão agora é verificar quais delas têm atividade em culturas de células infectadas, além de testar quão tóxica essas moléculas são para as células não-infectadas. Esperamos em alguns meses chegar a pelo menos uma molécula com um bom perfil para que possa ser testada em animais”, afirma Godoy.
Depois de identificada a molécula, que será o princípio ativo de um eventual antiviral, ela terá que ser testada em laboratório antes de chegar às fases de experimento em humanos, como ocorreu com as vacinas aprovadas em vários lugares do mundo contra a Covid-19.
Pesquisadores espalhados pelo planeta tendem a fazer o mesmo que estes grupos de ponta da ciência brasileira. Além de procurar moléculas novas, como algumas isoladas de plantas na natureza, também há uma busca por atalhos, como usar moléculas já conhecidas, que tenham uma atividade antiviral contra outros microrganismos, para ver se elas também conseguem inibir o novo coronavírus.
Esses medicamentos, quando prontos para os testes, costumam ser desenvolvidos por grandes grupos da indústria farmacêutica. Os institutos de pesquisa ligados ao poder público também podem entrar no processo por meio de parcerias.
O Sirius encurtou o caminho dos pesquisadores brasileiros. “Antes de existir o Sirius, nós fazíamos esses experimentos em laboratórios no exterior, principalmente no Diamond Light Source (no Reino Unido). Com o novo laboratório, podemos realizar os mesmos experimentos com uma máquina de forma equivalente aos síncrotrons europeus e americanos”, explica Godoy.
Do desenvolvimento de remédios à exploração de petróleo
Além de estudos relacionados ao coronavírus, estão em andamento no Sirius experimentos relacionados à busca de novos antibióticos e outros medicamentos para doenças raras e doenças negligenciadas, como o Mal de Chagas. Em termos práticos, o que vem sendo feito é apenas um pequeno e importante exemplo do que o superacelerador de partículas pode representar.
Quando tiver as linhas de luz síncroton totalmente prontas, ele estará entre os principais do mundo e poderá ser usado em variadas áreas científicas, desde a farmacologia até a agricultura e a exploração de petróleo em águas profundas.
Segundo a bióloga Daniela Trivella, coordenadora científica do Laboratório Nacional de Biociências, o Sirius abre caminho para o país avançar no desenvolvimento de produtos tecnológicos a partir da biodiversidade nacional. “O Sirius pode ajudar o Brasil a viabilizar uma cadeia sustentável na área de fármacos. O grande diferencial do Brasil é a sua biodiversidade. A grande parte das moléculas das plantas de todos os biomas nacionais, além das encontradas nos organismos marinhos, são novas. Precisamos de pesquisas e das empresas para termos mais inovação”, diz a cientista, que já usou o equipamento para estudar o coronavírus.
“A linha Ema, que está em montagem, vai ser voltada para o estudo de materiais em condições termodinâmicas extremas (pressão, temperatura e campo magnético). Os pesquisadores poderão investigar, neste caso, amostras de rochas do interior da terra”, explica o físico Antônio José Roque da Silva, diretor do CNPEM e responsável pelo Sirius. No caso do Brasil, experimentos como esses podem ajudar a desenvolver técnicas ainda mais modernas de exploração de petróleo e gás natural em águas profundas.
Até agora, o Sirius recebeu 31 propostas de pesquisas vindas de vários estados brasileiros e da França. Como é praxe nesse tipo de equipamento, os grupos de pesquisa fazem o pedido de reserva das estações e esperam o agendamento. Depois do uso gratuito, voltam aos seus laboratórios para outras etapas dos experimentos. Se for necessário retornar ao Sirius, o novo período de utilização tem de ser pago.
Investimento bilionário
O Sirius é resultado de um ousado projeto que começou a ser desenhado no início deste século por cientistas brasileiros. Os primeiros R$ 2 milhões destinados pelo governo federal para estudar a proposta foram liberados em 2009. A construção começou em 2014 no campus do CNPEM, em Campinas.
Orçado em R$ 1,8 bilhão, dos quais ainda faltam cerca de R$ 500 milhões para serem liberados, o complexo de pesquisa é totalmente financiado pelo governo, apesar dos cortes de verbas da ciência nos últimos anos, e exibe números superlativos. São 68 mil metros quadrados de área construída, 1.000 km de cabos elétricos e 900 toneladas de aço.
O Sirius terá no total 14 linhas de luz. Cada uma terá uma característica específica e receberá nomes alusivos à biodiversidade brasileira. A linha Manacá é a única em operação até agora. “Até o início de 2022 teremos seis linhas de luz com algum tipo de operação”, afirma o físico Roque da Silva. “Às vezes parece que estou em um sonho”, comenta com emoção sobre o projeto.
A montagem de mais três linhas de luz deve ocorrer durante o ano que vem. Outras cinco linhas, para chegar ao total de 14, ainda dependem de recursos financeiros para serem terminadas. Não há previsão de quando isso vai ocorrer.
O Sirus tem 264 funcionários, incluindo pesquisadores que realizam experimentos próprios, trabalham no desenvolvimento da superacelerador de partículas e no suporte aos cientistas externos.
Autódromo de elétrons
Por ter uma máquina de quarta geração – e, portanto, estar na fronteira do conhecimento científico –, o Sirius permite aos cientistas estudar com muito mais detalhe o nanocosmo das moléculas, das células vivas e de materiais como rochas, entre outros.
A ciência é feita nas estações de pesquisa, atreladas às linhas de luz síncroton. Elas são instaladas ao redor dos aceleradores de partículas que têm a função de acondicionar e focalizar a luz para que ela ilumine as amostras dos materiais que se quer analisar.
Coração da infraestrutura, a luz sincrotron é um tipo de radiação eletromagnética extremamente brilhante que se estende por um amplo espectro. Ela é composta por diversos tipos de luz, desde o infravermelho, passando pela luz visível e pela radiação ultravioleta e chegando aos raios X.
A máquina é como se fosse um grande autódromo de elétrons. São três aceleradores de partículas funcionando de forma integrada e fazendo os elétrons se aproximarem da velocidade da luz dentro de um anel de 518 metros de circunferência. Ao se deslocarem, as partículas são forçadas, por poderosos ímãs – nada menos do que 1.300 — acoplados ao anel, a mudar de trajetória, perdendo energia e emitindo a luz síncrotron.
Com o uso dessa luz especial, pode-se penetrar a matéria e revelar características de sua estrutura molecular e atômica para a investigação de todo tipo de material. O amplo espectro da luz gerada permite realizar diferentes tipos de análise com as radiações que a compõem. Seu alto brilho possibilita a realização de experimentos extremamente rápidos e a investigação de detalhes dos materiais na escala de nanômetros — medida que equivale a um bilionésimo de 1 metro ou muito menos que a espessura de um fio de cabelo.
Erguido em um prédio em forma de donut, o Sirius mereceu uma intrincada obra de engenharia. Na base de todo o edifício há uma espessa camada de concreto para evitar qualquer tipo de vibração. “Cabanas” de proteção radiológica funcionam como uma espécie de bunker que blinda as áreas por onde os feixes de luz síncrotron circulam. As paredes precisam ser espessas para impedir o vazamento da energia emitida pelas fontes de luz. Isto preserva a saúde dos pesquisadores e funcionários do Sirius e garante a qualidade dos estudos.
Repercussão: CNRN – Canal de Notícias do RN;Jornal do Dia;Curitiba News