Blog Mensageiro Sideral / Folha de S. Paulo, em 17/12/2014
As últimas descobertas feitas pelo jipe Curiosity, anunciadas ontem pela Nasa, pavimentam definitivamente o caminho para a busca por vida em Marte. A mais interessante delas foi a detecção de uma intrigante emissão temporária de metano na atmosfera marciana, ocorrida nas proximidades de onde está o jipe, na cratera Gale. Aqui na Terra, a principal fonte desse gás, nem preciso dizer, é atividade biológica.
Esse era um dos grandes objetivos da missão do robô, que chegou a Marte em 2012, depois que diversas sondas orbitais indicaram a presença de pequenas quantidades do gás no ar do planeta vermelho. Surpreendentemente, de início os resultados foram negativos — praticamente nada de metano foi encontrado, a despeito da alta sensibilidade dos instrumentos embarcados no Curiosity.
A história, entretanto, começou a mudar no sol 466 da missão. (“Sol” é a expressão usada para denominar um dia marciano, que é ligeiramente maior que o terrestre, com 24h39. Ou seja, o sol 466 equivale ao 466º dia local de operações do Curiosity em Marte. Ele aconteceu no fim de 2013, para nós, terráqueos.) A partir daquela data, e em outras três medições feitas ao longo dos 60 sóis seguintes, a detecção de metano teve um salto — foi de míseros 0,69 parte por bilhão para 7,2 partes por bilhão. Estamos falando de um aumento de cerca de dez vezes na concentração de metano, subitamente. Depois dos 60 sóis, a concentração rapidamente caiu para os níveis baixos de outrora.
Conclusão: alguma fonte de metano próxima ao local do Curiosity começou a borbulhar o gás na atmosfera. O que pode ter sido?
Os cientistas da Nasa, em seu artigo publicado na “Science”, conseguiram pelo menos concluir o que não foi. Eles já sabem que o metano não é produto da radiação ultravioleta do Sol agindo sobre compostos orgânicos trazidos a Marte do espaço por meteoritos e poeira cósmica. Ou seja, é possível indicar que o gás foi produzido localmente, com matéria-prima marciana.
Certo. O que todo mundo quer saber mesmo é: foram micróbios? Aqui na Terra, há uma porção desses seres unicelulares que consomem gás carbônico (CO2) e emitem metano. Caso você queira saber onde encontrar alguns, no seu trato intestinal há vários deles, produzindo o tal gás, que você emite, espero, quando não há ninguém por perto. (Em tempo: o metano em si é inodoro, mas alguns outros gases que o acompanham no pum não podem receber o mesmo elogio.)
Podem criaturas assim estar trabalhando em Marte? Os pesquisadores não descartam essa possibilidade. Ao final do artigo, eles dizem o seguinte: “Nossas medições ao longo de um ano marciano inteiro [são 687 dias terrestres] indicam que quantidades-traço de metano estão sendo geradas em Marte por mais de um mecanismo ou por uma combinação de mecanismos propostos — incluindo metanogênese ocorrendo hoje ou liberada de reservatórios antigos, ou ambos.”
Metanogênese, claro, é uma forma sutil de soletrar “vida”. O que eles imaginam é que, se criaturas vivas produziram o metano marciano, isso pode ter acontecido no passado, e o gás passou um tempo aprisionado sob o solo, e só agora viu a luz do dia. Ou talvez ainda existam hoje micróbios no subsolo do planeta vermelho trabalhando para enriquecer a atmosfera com o gás. Vida pregressa ou vida presente. Legal, né? Mas calma.
Antes que você se anime demais, é importante fazer um lembrete: pode muito bem ser que esse metano tenha origem abiótica, ou seja, pode ter sido gerado apenas por processos geológicos, como a reação do mineral olivina com água, fenômeno conhecido como “serpentinização”. Mas o ponto principal do trabalho é óbvio: há algo lá produzindo metano e precisamos saber o que é. “A fonte é algo a continuar procurando”, disse Douglas Galante, astrobiólogo do LNLS (Laboratório Nacional de Luz Síncrotron) que não participou do estudo. “O planeta definitivamente tem algum tipo de atividade interessante.”
Ou seja: está oficialmente aberta a temporada de caça aos marcianos. Ou pelo menos ao que pode estar emulando sua existência.
OUTROS RESULTADOS
A história do metano é apenas parte dessa saga. Mas ontem mesmo a equipe responsável pelo Curiosity revelou outros resultados, como a detecção de compostos orgânicos no solo marciano após uma perfuração feita com a broca do jipe. Eles foram encontrados na rocha apelidada de Cumberland e não puderam ser identificados detalhadamente porque reagem com os minerais percloratos que dominam a superfície marciana (e literalmente “comem” moléculas orgânicas no café da manhã, alterando sua estrutura original). De toda forma, não há mais muita dúvida de que Marte não sofreu por falta de compostos orgânicos em seu passado — um passo essencial para o surgimento e a manutenção da vida.
Outra medição feita na rocha Cumberland deu pistas de como e quando Marte perdeu sua água para o espaço. Quer saber como? Então vamos primeiro a uma rápida aulinha de química. Água, como todo mundo e mais alguém sabe, é H2O. O que nem todo mundo se lembra é que hidrogênio pode vir em mais de um sabor (ou isótopo, para os puristas). Há o hidrogênio simples, que tem um próton, e o deutério, que tem um próton e um nêutron. (Ainda há um terceiro isótopo, o trítio, com um próton e dois nêutrons, mas ele é bem menos comum que os outros dois.)
Agora, voltamos ao tema principal. Como a água marciana, que percorria em abundância as planícies do planeta vermelho no passado remoto, se escafedeu? Imagina-se que as moléculas de água, no ar, tenham interagido com raios ultravioleta do Sol. Isso basicamente quebrava a molécula, libertando os átomos de sua prisão. Cada um voava para um canto e, quanto menor o núcleo atômico, mais rápido ele podia viajar. O hidrogênio simples, mais leve, atingia com mais frequência a velocidade de escape e fugia da atmosfera marciana. O deutério não era tão bom nisso.
Resultado: ao longo do tempo, a água marciana foi ficando com uma proporção maior de deutério com relação à composição original. Ao analisar as proporções de deutério e hidrogênio em amostras de diferentes idades, é possível ter uma ideia melhor do ritmo em que Marte perdeu sua água desde a formação do Sistema Solar, 4,6 bilhões de anos atrás.
Com o estudo de meteoritos vindos de Marte, sabemos que essas proporções logo que o planeta se formou eram similares às encontradas nos oceanos da Terra. Em compensação, medições feitas na atmosfera atual indicam um enriquecimento de deutério por um fator de seis. As medidas da perfuração Cumberland, feitas pelo Curiosity, indicam que num período intermediário, entre 3,5 bilhões e 2,9 bilhões de anos atrás, o nível de enriquecimento de deutério também estava no meio do caminho, cerca de três vezes o valor atual dos oceanos terrestres. Na prática, isso quer dizer que muita água já havia sido perdida antes disso, mas muito mais ainda iria desaparecer nos bilhões de anos seguintes.
É com dados como esses que os pesquisadores pretendem reconstruir a história pregressa da água em Marte, combinada à evolução de sua atmosfera, estudada atualmente pela sonda orbital americana Maven. A ideia é compreender por quanto tempo o planeta vermelho conservou ambientes tão bons para a vida — onde a água é um ingrediente essencial — quanto aqueles que encontramos até hoje na Terra.
Apesar de todas as incertezas que os atuais resultados ainda oferecem, não há dúvida de que eles apontam na direção de objetivos mais ousados para as próximas missões. Dentre elas podemos destacar as missões europeias ExoMars, marcadas para 2016 e 2018, além do módulo de pouso americano Insight, para 2016, e o próximo jipe da Nasa, para 2020. A história só promete ficar mais interessante.