Sucro Energético em Agosto
Tassia Lopes Junqueira
Especialista em Processos do CTBE – Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol
Biorrefinaria: de olho no futuro
A possibilidade de produzir etanol e açúcar a partir do caldo de cana-de-açúcar teve um papel importante na consolidação do setor sucroalcooleiro, em vista das sinergias entre os processos. Em geral, as usinas possuem certa flexibilidade na produção, podendo direcionar mais ou menos açúcar para cada produto. Essa dinâmica permite reduzir os riscos com as oscilações de preços e as demandas dos produtos.
Outro fator importante para o sucesso da indústria foi a autossuficiência energética obtida com o uso do bagaço como combustível, permitindo a produção de todo vapor e eletricidade requeridos no processo. Além disso, com a possibilidade de vender eletricidade para a rede elétrica a preços atrativos, diversas usinas investiram em medidas de aproveitamento energético e na modernização de seu sistema de cogeração, empregando caldeiras de alta pressão e turbinas de extração-condensação, de modo a aumentar os excedentes de eletricidade para a comercialização.
Como consequência, a eletricidade consolidou-se como o terceiro produto do setor e tem tido participação crescente na matriz energética brasileira. Ademais, com a restrição à queima pré-colheita, a palha está disponível no campo em grandes quantidades e pode ser parcialmente recolhida e utilizada para geração de eletricidade na indústria. Estima-se que, combinado ao aumento de eficiência energética do processo, o aproveitamento da palha como combustível tem potencial para duplicar a geração de eletricidade nas usinas.Com a produção de etanol, açúcar, eletricidade e outros subprodutos – levedura, melaço, bagaço, ração animal, óleo fúsel, entre outros –, as usinas de cana-de-açúcar podem ser classificadas como biorrefinarias. Biorrefinaria, de forma análoga à refinaria de petróleo, pode ser definida como uma instalação industrial que integra os processos de conversão de biomassa para produção de combustíveis, energia, materiais e outros produtos.
A diversificação do portfólio de produtos permite aproveitar as sinergias entre os processos, seja através do aproveitamento de energia, materiais ou instalações, reduzindo os custos de produção, e diminui a suscetibilidade às oscilações de preços no mercado. Ainda, a obtenção de combustíveis e produtos químicos a partir de fontes renováveis, como a cana-de-açúcar, tem grande potencial de redução das emissões de gases de efeito estufa e consiste em um importante passo na diminuição da dependência de recursos fósseis rumo ao estabelecimento da chamada bioeconomia.
A partir das frações da cana-de-açúcar, caldo e material lignocelulósico (bagaço e palha), uma enorme variedade de produtos pode ser obtida (veja quadro em destaque). Os materiais lignocelulósicos são compostos, principalmente, por polímeros de carboidratos (celulose e hemicelulose) e lignina. Para a obtenção das diferentes frações e disponibilização dos monossacarídeos, majoritariamente glicose (C6) e xilose (C5), processos físico-químicos e/ou biológicos são empregados.
Adicionalmente, esses produtos podem ser utilizados como intermediários químicos para a produção de outros combustíveis, de produtos químicos, de polímeros, etc. O próprio etanol pode ser usado como matéria-prima para a obtenção de vários produtos comumente derivados de petróleo, tais como etileno, butanol, éter etílico, acetatos e combustíveis de aviação.
Outro exemplo é o butanol, que possui um valor atrativo como insumo químico – em torno de US$ 1,25/kg – e também apresenta potencial como biocombustível, em vista da densidade energética e de outras características semelhantes às da gasolina, o que, em teoria, permitiria sua aplicação como substituto imediato (drop-in). O butanol pode ser produzido por via bioquímica, através da fermentação de açúcares, e pela via catalítica, a partir de etanol.
Dentre os ácidos orgânicos, pode-se destacar o ácido succínico, que é, usualmente, produzido a partir de derivados de petróleo, mas cuja obtenção a partir de fontes renováveis (através da fermentação de açúcares) vem ganhando espaço. Embora o ácido succínico seja usado em pequenas quantidades nos setores alimentício, farmacêutico e agrícola, se produzido a um custo competitivo, a sua utilização como intermediário na obtenção de produtos químicos pode expandir consideravelmente, incluindo resinas e plastificantes.
Vale ressaltar que muitos dos produtos potencialmente obtidos a partir de biomassa possuem mercado reduzido a alguns milhares de toneladas por ano, que poderia ser suprido por poucas unidades industriais, dado o porte das biorrefinarias de cana-de-açúcar que são voltadas à produção de biocombustível em larga escala. No entanto, por serem produtos, em geral, com maior valor agregado, podem contribuir para a viabilização do processo de produção de etanol a partir de materiais lignocelulósicos – denominado etanol celulósico ou de 2ª geração, “2G”.
O etanol de 2ª geração, por utilizar resíduos agroindustriais, pode, potencialmente, alcançar menores custos de produção. No entanto a maior complexidade do processo, que requer etapas adicionais de pré-tratamento e hidrólise enzimática para disponibilização dos açúcares, e os desafios na fermentação de pentoses a etanol têm dificultado a demonstração da viabilidade do etanol 2G em escala comercial.
No Brasil, o processo de produção de etanol 2G tem focado na utilização dos resíduos agroindustriais da cana-de-açúcar. Considerando-se a utilização do bagaço disponível na planta e de 50% da palha produzida no campo para a produção de etanol 2G, o aproveitamento eficiente dos carboidratos possibilitaria aumentar em até 50% a produtividade de etanol por área plantada. Incrementos adicionais poderiam ser alcançados com o uso de variedades de cana mais produtivas, como a cana-energia.
Em um estudo realizado através da Biorrefinaria Virtual de Cana-de-açúcar (BVC), ferramenta de simulação e avaliação desenvolvida pelo CTBE, foram avaliados os custos de produção de etanol, considerando uma projeção tecnológica definida em conjunto com os principais agentes no desenvolvimento da tecnologia 2G. Observou-se que o custo de produção do etanol 2G ainda é superior ao do etanol convencional, porém, com o avanço na curva de aprendizado da tecnologia, o etanol 2G torna-se competitivo, alcançando um menor custo no longo prazo.
Diante da complexidade das biorrefinarias, que podem empregar diferentes matérias-primas e rotas tecnológicas para a produção de diversos produtos, a simulação de processos pode ser utilizada para avaliar alternativas de uma maneira relativamente rápida e menos custosa. Além disso, a BVC tem como diferencial a integração de toda a cadeia produtiva de cana-de-açúcar (desde a produção de biomassa, conversão industrial até uso dos produtos) e a avaliação da sustentabilidade, considerando os impactos econômicos, ambientais e sociais.
Uma mudança de paradigma, no sentido de um melhor aproveitamento da biomassa de cana-de-açúcar, traz perspectivas de maior rentabilidade e sustentabilidade no setor. Nesse sentido, os resultados gerados pela BVC podem ser utilizados para direcionamento de pesquisa, formulação de políticas públicas e identificação de novos investimentos.