Revista Época, em 12/01/17
O especialista em política científica da Universidade Federal do Rio de Janeiro diz que o governo brasileiro deve definir grandes missões para balizar a pesquisa científica do país. E incentivar a interação entre empresas privadas e instituições públicas de pesquisa
No começo de 2016, o economista Caetano Penna se propôs uma tarefa hercúlea – convencer o governo brasileiro de que ele deveria aumentar os investimentos em pesquisa e inovação para vencer a crise econômica. Penna é especialista em política científica e professor de economia industrial na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Em abril, publicou, em parceria com a economista italiana Mariana Mazzucato, um relatório em que analisa o sistema de inovação brasileiro. A análise foi feita a pedido do governo. Entre suas conclusões, há dois destaques: “O Brasil tem um sistema de inovação em que todos os elementos estão presentes”, diz Penna. O país tem boas universidades, formou cientistas em número crescente nos últimos anos e conta com empresas de base tecnológica, companhias capazes de inovar. O problema? Esses muitos atores não sabem trabalhar em grupo.
De acordo com Penna, o governo brasileiro deveria assumir um papel de coordenação: ficaria a cargo do Estado definir os principais desafios com os quais a sociedade brasileira tem de lidar. Melhorar a mobilidade urbana, por exemplo. E ficaria também a cargo do governo criar maneiras de estimular esses agentes inovadores – universidades e empresas privadas – a trabalhar juntos em torno dos desafios propostos. Segundo ele, investir esforço e dinheiro em grandes projetos pode ter reflexos positivos para a economia.
Nesta conversa com ÉPOCA, Penna fala como governos nos Estados Unidos e na Europa seguem esses princípios. E afirma que o Brasil pode dar passos largos em projetos científicos complexos, como o Sirius – um acelerador de partículas, orçado em R$ 1,5 bilhão, em construção em Campinas.
ÉPOCA – O senhor e a economista Mariana Mazzucato fizeram, a pedido de um órgão ligado ao governo brasileiro, uma avaliação do sistema de inovação do país. Aquele formado por instituições de pesquisa, por empresas inovadoras, organizações públicas e privadas. Qual o diagnóstico?
Caetano Penna – Fizemos uma avaliação dos pontos fortes e fracos de nosso sistema. E fizemos recomendações com base nessa avaliação. Um dos pontos fortes do Brasil é ter um sistema de inovação em que todos os elementos estão presentes. Nós temos agências de fomento, como a Fapesp, temos empresas que trabalham na ponta da experiência produtiva. Temos também centros de pesquisa que trabalham na fronteira do conhecimento científico e tecnológico. Além de um mercado enorme de consumo de massa. Todos os elementos estão presentes. O problema é que esse sistema acaba sendo disperso. Falta algo que balize e coordene os esforços de todos esses atores.
ÉPOCA – Como colocar esses atores para trabalhar juntos?
Penna – Com a criação de uma agenda de desenvolvimento. Deveríamos definir grandes desafios, grandes objetivos, que seriam atacados por esses atores. Há problemas importantes para o mundo todo que vão exigir o desenvolvimento de inovações tecnológicas. Mitigar mudanças climáticas, por exemplo. No Brasil, os grandes centros urbanos sofrem com problemas de mobilidade e saneamento. E a ciência poderia pensar em como resolver esses gargalos metropolitanos. O papel dos governos, nessa história, seria o de definir direções. Desenhar programas e políticas específicas para resolver esses desafios. Isso traria benefícios variados para a ciência. Ela ganharia maior legitimidade junto à população, por exemplo. Porque haveria resultados visíveis, tangíveis, do investimento feito em ciência.
ÉPOCA – Que mecanismos os governos têm à disposição para estimular essa integração entre atores públicos, como as universidades, e privados, como as empresas inovadoras?
Penna – Isso pode acontecer de várias formas. Uma delas seria pela criação de chamadas públicas para projetos, exigindo a colaboração entre o setor privado e as instituições de pesquisa públicas. A figura do prêmio de inovação é outra coisa que está muito em voga internacionalmente. Quem concede o prêmio define um desafio e chama institutos de pesquisa e empresas a participar – propor uma solução para o desafio. Há um comitê que avalia os projetos inscritos e define um vencedor. Existem várias formas de estimular essa interação entre agentes públicos e privados. Elas precisam ser escolhidas caso a caso. O governo, ao definir um problema que acha importante resolver, precisa fazer um diagnóstico detalhado do problema em si, da situação atual, e de onde quer chegar. Avaliar qual a base empresarial que nós temos, ver qual nossa base de ciência e tecnologia. Ver quais são os instrumentos e políticas públicas de que dispomos. Talvez o governo perceba que o Brasil sofre com um problema, mas não possui base empresarial bem estabelecida para resolvê-lo. Seria preciso incentivar a criação dessa base empresarial. Pode ser que o Brasil não tenha a base científica para resolver esse desafio. E a solução talvez passe, então, pela atração de cientistas internacionais que poderiam contribuir para esse projeto.
ÉPOCA – Mas a ideia, então, é concentrar esforços na ciência com perspectivas de aplicação mais imediata? Investir menos em ciência básica e mais em ciência aplicada?
Penna – Não. Essa escolha, de investir em pesquisa básica ou aplicada, não deve existir. O governo deve investir em ambas. Principalmente porque a pesquisa básica é negligenciada pelo setor privado. Justamente porque os resultados não são imediatos. Na pesquisa básica, você gera um novo conhecimento. Esse novo conhecimento se torna um bem público. Você não consegue se apropriar dele imediatamente, nem consegue impedir que outras pessoas o utilizem. Pode, no máximo, cobrar royalties se alguém usar sua descoberta. Por isso, o setor privado investe pouco nesse campo. O Estado tem um papel importante no financiamento da pesquisa básica.
ÉPOCA – Há casos de países que foram bem-sucedidos nessa tentativa de delinear grandes objetivos para estreitar laços entre empresas e universidades?
Penna – Os Estados Unidos são um caso clássico. Essa ideia de políticas públicas orientadas por missões existe por lá desde o pós-guerra. O primeiro caso foi o projeto Manhattan, que desenvolveu a bomba atômica. Ele envolveu diferentes setores, diferentes cientistas de áreas totalmente dispersas e, com isso, foi possível dominar a energia nuclear para desenvolver a bomba atômica. Outro programa capitaneado pelo governo foi o projeto Apollo, que colocou o homem na Lua. A partir desses dois programas, desenvolveu-se nos Estados Unidos essa ideia de definir grandes missões. Hoje, por lá, o setor militar é que baliza esses esforços. O setor de defesa dos Estados Unidos é que define quais os principais desafios para a ciência do país. Diferentes tecnologias surgiram disso. Temos a internet, o GPS, tudo o que equipa nossos smartphones – todas essas tecnologias derivaram desses esforços. Além do setor de defesa, o setor de energia americano também apoia a ciência por meio de objetivos específicos.
A Alemanha faz algo parecido – um dos objetivos do país é mudar a matriz energética, para abandonar o carvão mineral e crescer em energia renovável.
ÉPOCA – O projeto mais ambicioso da ciência brasileira, atualmente, é o Sirius, um acelerador de partículas em construção em Campinas, que vai custar R$ 1,5 bilhão. Um projeto como esse, sobretudo em tempos de crise econômica, faz sentido?
Penna – O Sirius pode trazer resultados bastante concretos para a ciência brasileira. Ele é um projeto de ponta, que pode, por exemplo, estimular a internacionalização da pesquisa feita por aqui. Por meio da colaboração com grupos de pesquisa de outros países. Além disso, o Sirius é uma tecnologia de propósito geral – pesquisadores de várias áreas podem usá-lo para resolver problemas de diferentes setores. E essas soluções podem resultar em aumento de produtividade. O setor de petróleo, por exemplo, pode pesquisar as propriedades de certos materiais. E aquilo que deveria ser uma pesquisa básica acaba adquirindo aplicação mais imediata. O Sirius pode ajudar, sim, no progresso econômico brasileiro. Além disso, acho importante o Brasil ter projetos ambiciosos.
ÉPOCA – Ao apostar no Sirius, o governo segue essa recomendação de traçar grandes objetivos e colocar agentes públicos e privados para trabalhar em conjunto?
Penna – Ele segue nessa direção, mas com uma diferença crucial: o Sirius não é um problema social a ser resolvido. Ele é muito mais um desafio científico e tecnológico. Projetos históricos, como os programas Manhattan e Apollo, também seguiam nessa linha. Seus objetivos eram dominar a tecnologia nuclear, colocar o homem no espaço. E eles se mostraram capazes de estimular a inovação. Construir o acelerador é algo complexo. Para construir a máquina é necessária a colaboração de empresas de diferentes setores. E essas empresas têm de desenvolver soluções específicas para fabricar peças que vão equipar um projeto que exige qualidade total. Há um imenso potencial para desenvolver inovação privada. Haverá um aprendizado muito grande para as empresas envolvidas.