Revista FAPESP em março/2017
Dois trabalhos recentes de grupos com pesquisadores brasileiros forneceram mais evidências de que haveria uma janela de tempo durante a qual a infecção pelo zika em grávidas produziria danos severos nos fetos, levando à microcefalia nos casos mais graves. Passado esse intervalo crítico, que compreenderia grosso modo o primeiro trimestre da gestação, os riscos se reduziriam consideravelmente para os filhos de mulheres contaminadas pelo vírus, embora não seja possível afirmar que as infecções mais tardias sejam inócuas.
Em artigo publicado em 13 de fevereiro na revista científica PNAS, uma equipe internacional, com a participação do bioquímico brasileiro Sergio Verjovski-Almeida, do Instituto Butantan e do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP), diz que a placenta humana é mais sensível à infecção pelo vírus nos três primeiros meses de gravidez. Nessa fase, a placenta (que carrega o material genético do feto) ainda não apresenta todas a defesas imunológicas e produz proteínas que estimulam a adesão e a entrada do agente infeccioso nas células do bebê em formação.
Outro estudo, coordenado pelo médico José Xavier-Neto, do Laboratório Nacional de Biologia (LNBio), de Campinas, indica que a infecção por zika só produz anormalidades graves em filhotes de camundongos quando suas mães são expostas ao patógeno entre o quinto e o 12º dia depois da fecundação. Em seres humanos, esse intervalo de tempo equivale ao período entre a segunda e a quinta semana de gestação. Nos roedores, a infecção por zika após o 12º dia do ato sexual não levou a malformações significativas nos filhotes. O trabalho ganhou as páginas eletrônicas do periódico digital Plos Neglected Tropical Diseases no dia 23 de fevereiro.
Placenta madura e resistente
O primeiro estudo buscou uma explicação para a evidência de que os fetos de mulheres infectadas pelo zika durante os três meses iniciais de gestação apresentam risco maior de nascer com problemas de saúde, como a microcefalia, do que os bebês de mães que entraram em contato com o patógeno em fases posteriores da gravidez. De acordo com o artigo na PNAS, a placenta madura, ao final da gravidez, é bem mais resistente à infecção pelo vírus do que a placenta primitiva, presente até o terceiro mês de gestação. Nessa fase inicial da gestação, o órgão de comunicação entre a mãe e o feto produz proteínas – os chamados receptores de ligação – que estimulam a adesão e a entrada do agente infeccioso nas células do bebê em formação. Tais células, afirmam os autores do trabalho, ainda não dispõem de defesas imunológicas totalmente constituídas para barrar a penetração do zika.
Com o passar do tempo, a placenta mais madura cria um cenário totalmente diferente, adverso ao avanço do vírus materno rumo ao feto. “As células da placenta no final da gravidez são resistentes à infecção pelo vírus, pois não expressam os genes que codificam as proteínas responsáveis por promover a ligação e a entrada do vírus no tecido do feto, e, ao mesmo tempo, ativam vários genes associados à defesa antiviral”, explica Verjovski-Almeida.
Um então aluno de doutorado do bioquímico do IQ, o biólogo russo Dinar Yunusov, fez no ano passado as análises de expressão gênica em células de placentas maduras e em um modelo experimental, composto de células-tronco embrionárias reprogramadas, que mimetiza a placenta do primeiro trimestre da gestação. “O zika parece realmente precisar da presença desses receptores de ligação para atacar as células do feto”, comenta Yunusov, hoje fazendo estágio de pós-doutorado nos Estados Unidos.
Diante desse indício de que a placenta seria mais vulnerável ao zika no primeiro trimestre da gravidez, Verjovski-Almeida diz que poderia ser útil desenvolver alguma forma de reforçar as defesas biológicas desse órgão, como a criação de um soro para ser administrado em mulheres infectadas pelo vírus no início da gestação. “Mas precisamos pesquisar isso com cautela porque é muito delicado prescrever algo para as mulheres nos primeiros meses de gestação”, pondera o bioquímico. Em paralelo a essa linha de estudo, Verjovski-Almeida pretende averiguar se o padrão de ativação dos genes que controlam a produção de receptores virais na placenta imatura pode variar entre os indivíduos de uma população e ser utilizado como um teste sinalizador de maior ou menor vulnerabilidade do órgão ao ataque do zika.
Estudo publicado no final do ano passado no Journal of the American Medical Association indicou que a ocorrência de microcefalia e outras anormalidades cerebrais em bebês nascidos de 442 mulheres norte-americanas infectadas pelo zika foi de 5,9%, mas nenhuma anomalia se manifestou entre os filhos de gestantes que tiveram contato com o vírus a partir do segundo trimestre de gestação. “Há evidências científicas mostrando que a placenta imatura é mais permissível a outros vírus, como o da rubéola”, comenta o pesquisador R. Michael Roberts, da Universidade de Missouri, coordenador da equipe que fez os experimentos com placentas maduras e imaturas e o zika, publicado na PNAS.
Um dado interessante que também aparece nesse artigo diz respeito a uma questão evolutiva do patógeno. Em experimentos feitos em laboratório, a cepa original do zika, oriunda de Uganda, na África, infectou mais rapidamente e de forma mais danosa o modelo de placenta imatura do que a variedade da Ásia, que chegou às Américas e é semelhante à que circula no Brasil e causa microcefalia. Os pesquisadores concluíram que a variedade africana é tão agressiva que pode destruir a placenta durante o primeiro semestre da gestação. Nesse caso, uma infecção pelo zika africano no início da gravidez poderia levar à não implantação do feto no útero. Em outras palavras, ao aborto. “Essa agressividade do zika africano poderia ser a explicação para não existir o registro de casos de microcefalia na África”, conjectura Verjovski-Almeida. “Os fetos infectados nem chegariam a nascer. Seriam abortados antes.”
Hidrocefalia e microcefalia
O trabalho da equipe do LNBio envolveu a criação de um modelo animal da infecção por zika que fosse similar ao que ocorre em humanos. Em duas linhagens selvagens de camundongos, com um sistema imunológico apto a combater infecções, os pesquisadores injetaram o vírus na veia jugular de fêmeas grávidas em diferentes momentos da gestação, entre 5,5 e 19,5 dias após a fecundação. Dessa forma, puderam ver a sequência de problemas que o vírus causa nos filhotes de roedores em função do estágio da gravidez em que houve o contato com o zika. “Queríamos mapear a janela crítica em que a infecção na gravidez produz malformações congênitas”, explica José Xavier-Neto.
Filhotes de fêmeas que foram contaminados cinco dias após a fecundação apresentaram uma série de problemas de desenvolvimento: fechamento incompleto do tubo neural (disrafia), hidrocefalia (acumulação de líquido cefalorraquidiano no cérebro, levando ao aumento de tamanho e inchaço do crânio), atraso no crescimento do embrião, além de outras severas malformações. “Em humanos, a hidrocefalia é um prenúncio de que vai haver microcefalia”, comenta Xavier-Neto. Quando a infecção ocorria entre 7,5 e 9,5 dias depois da fecundação, os filhotes exibiam um quadro clínico que não se limitava à microcefalia. Eles também tinham hemorragia no interior da bolsa amniótica, edema generalizado e pouca vascularização, sobretudo na região cerebral. Alguns embriões chegaram mesmo a morrer no útero depois da infecção. Segundo o pesquisador, o modelo animal de zika desenvolvido no LNBio é o único a mostrar disrafia, hidrocefalia e artrogripose (contração congênita das articulações, que leva à formação de mãos e pés tortos ou curvados).
Infecções induzidas após o 12º dia de fecundação não provocaram danos maiores nos fetos de roedores. Embora ausente dos tecidos cerebrais dos embriões que se encontravam nessa fase da gestação, o genoma do zika foi detectado em células do baço, do fígado e dos rins dos camundongos em formação. “Não podemos dizer que há um período seguro da gravidez para a ocorrência de uma infecção por zika”, explica o cardiologista Kleber Franchini, do LNBio, outro autor do estudo.
Há uma quantidade razoável de pesquisas indicando que o aparecimento das anomalias congênitas associadas ao zika depende do momento da gravidez em que houve a infecção. Alguns trabalhos também sugerem que outros fatores, como a virulência da cepa do vírus e particularidades genéticas de uma população, também são relevantes para favorecer desfechos mais ou menos graves da infecção por zika. Em artigo publicado em 11 de maio do ano passado na revista Nature, pesquisadores da Universidade da Califórnia em San Diego (UCSD) e da USP relataram um experimento que ilustra essa situação.
Eles injetaram o zika na cauda de duas linhagens de camundongos – uma delas distinta das variedades de roedores selvagens usadas no experimento do LNBio – entre o 10º e o 12º dia de gestação. Uma delas apresentou uma série de malformações, inclusive microcefalia, associadas à infecção pelo vírus. A outra gerou filhotes resistentes à infecção. “O momento em que ocorre a infecção por zika é, sem dúvida, importante para determinar a gravidade das lesões, mas a resposta imunológica de cada indivíduo também parece ser crucial ”, comenta o neuroimunologista Jean Pierre Peron, do Instituto de Ciências Biomédicas (ICB) da USP, um dos autores do estudo publicado em 2016. “A parte mais interessante do trabalho da equipe do LNBio é mostrar a ocorrência da artrogripose em um modelo animal, algo que ainda não tinha sido constatado.”
Surto multiplica trabalhos científicos
Em dois anos, número de artigos sobre o vírus aumenta 20 vezes; Brasil é o segundo maior produtor de trabalhos sobre a doença
Levantamento bibliométrico feito por uma equipe da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) e da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) indica que houve um aumento de cerca de 20 vezes na produção de artigos científicos sobre o vírus zika após a associação do patógeno a casos de microcefalia no Brasil ter sido confirmada e a doença se tornado uma preocupação de saúde internacional. Depois dos norte-americanos, os autores com endereço de trabalho localizado no Brasil foram os que mais produziram papers sobre o vírus, ficando à frente dos pesquisadores britânicos. O trabalho foi publicado na revista científica PLOS Neglected Tropical Diseases em 19 de janeiro.
De 1952, quando o vírus foi isolado pela primeira vez em Uganda, a 2013, ano em que houve um surto de zika na Polinésia Francesa, os pesquisadores contabilizaram 44 trabalhos na base de dados Scopus e 28 na Web of Science cujo título continha as palavras “zika virus” em inglês. De janeiro de 2014 a agosto de 2016, a quantidade de artigos nas duas bases com esses dois termos ficou na casa dos 1.300 papers (ver gráfico). No Google Academics, a comparação da produção científica indexada pelo mecanismo de busca com os termos “zika virus” apontou números semelhantes: foram 47 papers entre 1952 e 2013 e cerca de 1.600 entre 2014 e 2016.
Tanto na Scopus como na Web of Science, a maior parte da produção de artigos científicos sobre o zika foi feita por cientistas de 18 países. Os americanos responderam por cerca de 31% dos trabalhos e os brasileiros, por 12%. Os britânicos, terceiros no ranking de papers, foram autores de 9% dos estudos. “Precisamos reconhecer que a eficiência dos cientistas brasileiros foi realmente louvável, apesar das inúmeras dificuldades logísticas e de financiamento”, comenta o farmacêutico Marcio L. Rodrigues, vice-coordenador-geral do Centro de Desenvolvimento Tecnológico da Fiocruz e professor associado do Instituto de Microbiologia da UFRJ, autor do trabalho ao lado de Priscila Albuquerque. O esforço científico em torno do tema zika ainda está concentrado na pesquisa básica. O levantamento não encontrou alteração significativa no número de patentes relacionadas à doença no mundo.
Projetos
1. Caracterização dos mecanismos de ação de RNAs longos não codificadores envolvidos nos programas de ativação gênica em células humanas (nº 14/03620-2); Modalidade Projeto Temático; Pesquisador responsável Sergio Verjovski-Almeida (USP); Investimento R$ 2.149.830,50.
2. Functional characterization of long non-coding RNA transcribed from the antisense strand in the VEGFA gene locus (nº 10/51152-7); Modalidade Bolsa de Doutorado direto; Pesquisador responsável Sergio Verjovski-Almeida (USP); Bolsista Dinar Iunusov; Investimento R$ 212.228,31.
3. Origem evolutiva das redes regulatórias da segmentação cardíaca em câmaras de influxo e efluxo (nº 13/22695-0); Modalidade Auxílio à Pesquisa – Regular; Pesquisador responsável José Xavier-Neto (LNBio); Investimento R$ 690.098,30.
Artigos científicos
SHERIDAN, M. A. et al. Vulnerability of primitive human placental trophoblast to Zika vírus. PNAS. 13 fev. 2016.
XAVIER-NETO, J. et al. Hydrocephalus and arthrogryposis in an immunocompetent mouse model of ZIKA teratogeny: A developmental study. Plos Neglected Tropical Diseases. 23 fev. 2017.