A pesquisa publicada no Journal of Biological Chemistry analisou polimorfismos em um dos principais alvos farmacológicos de antivirais para a Covid-19
A American Society for Biochemistry and Molecular Biology (ASBMB) anunciou Gabriela Noske, atual pesquisadora do grupo de criomicroscopia do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano), como uma das ganhadoras do Herbert Tabor Early Career Investigator Awards, promovido pelo Journal of Biological Chemistry.
No artigo publicado no periódico em março de 2023, ela e seus colegas usaram medidas realizadas na linha de luz Manacá para caracterizar diferentes polimorfismos na protease (Mpro) do vírus da COVID-19 e sua relação com a efetividade de antivirais desenvolvidos durante a pandemia. A pesquisa foi parte do doutorado de Gabriela no Instituto de Física de São Carlos, na Universidade de São Paulo (USP).
“O sentimento é de realização. Ver seu trabalho ser reconhecido é ver que todo o esforço até agora valeu a pena. Espero que seja o começo de uma longa carreira científica. Além disso, é muito gratificante ver a ciência brasileira sendo mundialmente reconhecida.”, destaca Gabriela.
A pesquisa e as medidas realizadas na Manacá
Tratar infecções virais com medicamentos é um enorme desafio. Vírus se escondem dentro das células dos organismos que infectam e tomam controle de suas estruturas para criar cópias de si mesmo e assim se espalhar e infectar outros indivíduos.
Usar medicamentos para afetar algo que se esconde dentro das células do nosso corpo, como é o caso do vírus da COVID-19, é bastante complicado. Assim como o HIV, o SARS-CoV-2 depende de um tipo de enzima chamada protease para processar proteínas essenciais para a replicação viral. Essa enzima do vírus causador da COVID-19, chamada de Mpro ou “protease principal”, é um ótimo alvo farmacológico por conta de sua grande importância no ciclo de vida do vírus.
Encontrar uma molécula capaz de inibir sua função foi o objetivo de muitos cientistas desde o começo da pandemia. E o nirmatrelvir e o ensitrelvir são dois dos chamados “inibidores de protease” desenvolvidos durante estes esforços. O nirmatrelvir, fabricado pela Pfizer e administrado sob o nome de “Paxlovid”, foi aprovado para venda no Brasil pela Anvisa em novembro de 2022. Já o ensitrelvir, fabricado pela farmacêutica japonesa Shionogi em parceria com a Universidade de Hokkaido, foi aprovado para uso no Japão.
Infelizmente, o amplo uso de antivirais está frequentemente associado ao aparecimento de resistência a estes medicamentos. Identificar possíveis mutações que afetem a ação destas moléculas e quantificar seu efeito na eficácia delas em se ligar à protease principal do SARS-CoV-2 é uma ferramenta essencial para o monitoramento e combate ao vírus.
E foi com estes objetivos que a pesquisa publicada no Journal of Biological Chemistry nasceu. Os pesquisadores usaram dados de sequenciamento genético coletados sobre o SARS-CoV-2 para encontrar variantes com pequenas diferenças nas regiões da protease principal em que os medicamentos em questão se ligam para cumprirem seu papel e inibirem a função da enzima. Eles identificaram 15 mutações diferentes que potencialmente poderiam afetar a ação do nirmatrelvir. Duas dessas demonstraram alta redução da ação de inibição.
Para o elsitrelvir, 13 mutações diferentes foram selecionadas e três dessas demonstraram alta redução da ação de inibição. As proteínas com essas mutações foram cristalizadas e os pesquisadores puderam usar a linha de luz Manacá do Sirius, no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), para caracterizar a estrutura dos polimorfismos usando cristalografia de raios X.
A redução na ação de inibição observada nas mutações escolhidas não significa necessariamente que elas serão selecionadas e farão parte de uma nova variante de preocupação do SARS-CoV-2. Além do uso amplo destes medicamentos, também é preciso que tais mutações não sejam prejudiciais para o ciclo de vida do vírus ou sejam acompanhadas de outras mutações benéficas compensatórias.
De qualquer forma, estudos como este são essenciais para monitorar o surgimento de variantes que potencialmente escapem dos tratamentos disponíveis. E caso uma ou mais delas sejam identificadas em uma nova variante do vírus que comece a circular com mais afinco, os cientistas saberão que ela pode potencialmente reduzir a eficácia destes medicamentos. E antes disso acontecer, outras equipes de cientistas podem usar as informações como as coletadas por este estudo para desenvolver uma nova geração de inibidores de protease.
“A coleta dos dados na Manacá foi algo que me marcou muito, tanto como pesquisadora quanto como pessoa. Num momento como uma pandemia, foi incrível se ver no papel de quem tem as ferramentas necessárias para ajudar a sociedade a enfrentar estas situações e estar ali fazendo algo concreto. Ao mesmo tempo, toda a pressão exigiu muito mentalmente e fisicamente de todos os que estavam envolvidos no projeto. Certamente será algo que nunca esquecerei”, relata a pesquisadora.
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