O trabalho realizado no Centro busca suprir demanda nacional interna, tanto de testes de toxicidade de fármacos e cosméticos como opção alternativa aos testes com animais, quanto de produção própria de curativos com células humanas, que não podem ser importados.
Em publicação recente na revista científica Lab on a Chip, foi feita a descrição de um sistema fisiológico em dispositivo com três mini-órgãos – fígado, pele e intestino- que podem receber substâncias, tóxicas ou não, e indicar como esses órgãos responderiam a elas no organismo humano. A pesquisa é resultante da parceria entre o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) e a Natura. A empresa de cosméticos já colocou em uso o método, desenvolvido em conjunto com o Centro, em sua rotina de testes de controle de qualidade e de toxicidade das matérias-primas utilizadas nos produtos, como alternativa aos testes em animais.
Ana Carolina Figueira, pesquisadora à frente da Plataforma de Engenharia de Tecidos e Microfluídica do CNPEM desde 2020, explica que o sistema de órgãos em chip existe há apenas cerca de uma década, sendo o Centro um pioneiro dessa tecnologia no Brasil, que tem despontado no mundo por diversas razões. “Por um lado, há uma demanda forte internacional por métodos alternativos que façam boas previsões dos efeitos de compostos químicos no organismo humano nas pesquisas de diversas áreas. E, por outro, há também a demanda nacional para desenvolvimento próprio no país da metodologia. Outro exemplo é o da medicina regenerativa, da qual fazem parte os curativos dermatológicos, pois o desenvolvimento está em uma fase muito embrionária e, embora alguns países do Norte Global produzam este tipo de tratamento, eles não podem ser importados” afirma Figueira sobre as pressões e a importância da engenharia de tecidos no país, ao explicar algumas dessas razões.
A afirmação vem ainda no embalo da resolução publicada no Diário Oficial da União em fevereiro deste ano, que proíbe o uso de animais em pesquisa científica e no desenvolvimento ou controle de produtos de higiene pessoal, cosméticos e perfumes, com compostos que já tenham tido segurança e eficácia comprovadas. A medida visou entrar em compasso com a tendência mundial e, ainda que esteja longe de tornar ilegal todas as formas de teste de cosmético com animais, evidencia a necessidade dos integrantes da indústria em caminhar e convergir para soluções alternativas.
A União Européia tem hoje a legislação mais rígida nesse sentido para o setor de cosméticos. Os testes em animais com ingredientes ou com o produto final são ilegais na maior parte dos procedimentos desde 2013 em todos os países membros. No Brasil, o LNBio (Laboratório Nacional de Biociências) do CNPEM é um dos três únicos Laboratórios Centrais da Renama (Rede Nacional de Métodos Alternativos). A Renama é uma iniciativa do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, que fomenta a implementação, desenvolvimento e validação de métodos que não utilizam animais. A Natura, que por iniciativa própria não aceita desde 2006 nenhum tipo de teste com animais, tanto no desenvolvimento próprio de matérias-primas para seus produtos quanto nos ingredientes obtidos por fornecedores, também faz parte da Rede Nacional, como Laboratório Associado.
Os curativos regenerativos dermatológicos são adesivos de tecidos biofabricados com células da pele (cutícula, epiderme, derme e hipoderme) e células-tronco, que funcionam como um enxerto restaurador em lesões como as de queimaduras graves. Esses adesivos não são importados para o Brasil por uma série de questões alfandegárias e características inerentes do tecido biológico. Além disso, o CNPEM vem pesquisando também o desenvolvimento de tecido cardíaco bioimpresso para regeneração de infartados, o que implicaria no uso de células do próprio paciente, dada a maior taxa de rejeição desse órgão. Para a coordenadora do projeto, isso representa um desafio em comparação com a fabricação de pele, além da atribuição de flexibilidade de movimentação no curativo, própria do tecido do coração.
Como funciona o cultivo de órgãos e sua integração aos chips
A produção de tecidos e órgãos de maneira artificial é uma evolução do cultivo de células isoladas in vitro e tem cumprido o papel do que a pesquisadora Ana Carolina Figueira chama de “elo perdido” em um dilema dos testes pré-clínicos. “O modelo in vitro é humano (genes e proteínas humanos) mas não é sistêmico, isto é, não há integração como nos órgãos do organismo como um todo, e por isso muitas vezes as pesquisas de algum medicamento vão bem nos testes in vitro, porém infelizmente não avançam nas etapas seguintes. E o modelo animal é sistêmico, mas não humano! Isto é, não são bons preditivos da resposta do organismo humano pela falta de proximidade genética, apesar de serem um organismo real”, explica a pesquisadora, que coloca a Engenharia de tecidos e mini-órgãos, portanto, como uma solução mais robusta para o dilema.
Os mini-órgãos podem ser confeccionados manualmente ou com a ajuda de uma impressora 3D de tecidos biológicos (bioimpressão), que usa como “biotinta” um combinado de diversas células e substâncias, como colágeno, células-tronco e células reais do órgão que terá seu equivalente impresso, configurando uma miniatura que mimetiza as funções originais. Quando inseridos ou biofabricados nos chips, estruturas com câmaras separadas para cada cultivo, os mini-órgãos contam com irrigação que simula a circulação sanguínea, o que cria um ambiente mais integrador e estabiliza um minissistema. Quando há mais de um órgão no mesmo sistema, banhados pelo mesmo fluido circulatório, o dispositivo passa a se chamar Human on a Chip (em português, “Humano em um chip”).
Além das testagens pré-clínicas com Organs on a Chip e Human on a Chip e dos estudos para o desenvolvimento de curativos de medicina regenerativa, os pesquisadores do CNPEM dessa relativamente nova e promissora linha de investigação acadêmica também vêm avançado nas pesquisas dos efeitos de doenças crônicas e infecções virais nos tecidos, como doença hepática gordurosa, e impactos do vírus da febre amarela no fígado, evidenciando a versatilidade do método.
Em adição, está sendo criado no Centro um Biobanco – um banco de células humanas estocadas em uma estrutura própria que permite fornecer o material necessário na fabricação dos cultivos, além da disponibilização do material a toda comunidade científica.
Próximos passos
No estudo publicado recentemente, o grupo de pesquisadores do CNPEM e da Natura fez um delicado processo de validar os ensaios de órgãos, calibrando-os entre as funções normais daquele órgão e as funções de resposta a situações anormais. Isso foi feito, respectivamente, através de testes que mostrassem que os minissistemas são capazes de produzir moléculas típicas daquele órgão (como por exemplo a bile, para o fígado) e através da exposição a compostos com reconhecida toxicidade ou carcinogenicidade (como, por exemplo, formol – com efeitos danosos, tal qual os tecidos reais teriam). Segundo os pesquisadores, esse procedimento confirma que os modelos são bons representantes de seu órgão equivalente, pois respondem da mesma forma em situação normal e em situação de toxicidade, o que aumenta a predição no momento dos testes dos ingredientes dos produtos.
Kelen Fabíola Arroteia, coordenadora do estudo pela frente da Natura explica que a escolha dos 3 órgãos- pele, barreira intestinal e fígado- correspondem à duas das três principais vias de entrada de substâncias no organismo: a absorção oral e a absorção tópica. Arroteia fala que a importância de testes assim é a de poder, dependendo dos resultados, liberar com segurança doses mais altas da matérias-primas o que acaba implicando na valorização dos ingredientes de origem da biodiversidade amazônica e das comunidades envolvidas. Quanto à absorção de moléculas dissipadas no ar, a outra das principais vias de entrada de substâncias no organismo, o CNPEM vem desenvolvendo também a bioimpressão de tecidos do pulmão, projeto que ainda está em andamento.
A pesquisadora Ana Carolina Figueira reforça que o amplo leque de possibilidades da tecnologia de engenharia de tecidos depende diretamente de um ambiente multidisciplinar, pois, para realizar a caracterização e validação dos ensaios dos órgãos, assim como o desenvolvimento de protótipos de chips é necessária articulação entre diversas áreas do conhecimento, como microscopia eletrônica, microtomografia, espectrometria de massas e testes de expressão gênica – “tem que juntar quem entenda da engenharia dos tecidos, de microfluídica, da biologia… fora o material”. A exigência da multidisciplinaridade pode ser encarada como um desafio para o avanço da linha de pesquisa. Por outro lado, instituições como o CNPEM promovem esse ambiente e troca como princípio de base, pela presença dos diversos laboratórios em temas distintos, porém próximos um do outro e com interação constante, e por estarem abertos a vinda de pesquisadores externos e a parcerias com os setores público e privado.
Sobre o CNPEM
Ambiente sofisticado e efervescente de pesquisa e desenvolvimento, único no Brasil e presente em poucos centros científicos do mundo, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) é uma organização privada sem fins lucrativos, sob a supervisão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O Centro opera quatro Laboratórios Nacionais e é o berço do projeto mais complexo da ciência brasileira – Sirius – uma das fontes de luz síncrotron mais avançadas do mundo. O CNPEM reúne equipes multitemáticas altamente especializadas, infraestruturas laboratoriais globalmente competitivas e abertas à comunidade científica, linhas estratégicas de investigação, projetos inovadores em parceria com o setor produtivo e formação de investigadores e estudantes. O Centro é um ambiente impulsionado pela pesquisa de soluções com impacto nas áreas de Saúde, Energia e Materiais Renováveis, Agroambiental, Tecnologias Quânticas. Por meio da plataforma CNPEM 360 é possível explorar, de forma virtual e imersiva, ambientes de todos os laboratórios instalados em Campinas (SP) e também obter informações sobre trabalhos realizados e recursos disponibilizados para a comunidade científica e empresas. A partir de 2022, com o apoio do Ministério da Educação (MEC), o CNPEM expandiu suas atividades com a abertura da Ilum Escola de Ciência. O curso superior interdisciplinar em Ciência, Tecnologia e Inovação adota propostas inovadoras com o objetivo de oferecer formação de excelência, gratuita, em período integral e com imersão no ambiente de pesquisa do CNPEM.