Folha de S.Paulo, 18/05/2020
Um grupo internacional de pesquisadores, liderado por brasileiros, acaba de desenvolver um método para investigar microfósseis no interior de rochas sem destruí-los, criando uma nanotomografia 3D de sua estrutura. Os cientistas esperam futuramente usar a técnica para a busca por sinais de vida em amostras vindas de Marte.
O trabalho tem como primeira autora Lara Maldanis, pesquisadora do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), órgão do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), localizado em Campinas (SP). Ela atualmente faz pós-doutorado na Universidade de Grenoble, França. O artigo descrevendo os resultados foi publicado na edição desta semana do periódico Scientific Reports.
Os pesquisadores trabalharam com uma amostra da Formação Gunflint, no Canadá. “É um verdadeiro ícone no estudo da vida antiga na Terra”, conta Maldanis. Trata-se de uma das regiões mais bem documentadas de fósseis antigos, remontando a uma época em que a Terra era habitada tão somente por microorganismos simples, como bactérias e arqueias.
A técnica envolve recortar um pequeno pedaço da rocha, contendo as estruturas de interesse, na forma de um tubinho de apenas 25 micrômetros (milésimos de milímetro), e então submetê-lo a uma varredura de raios X gerados por uma fonte de luz síncrotron (os pesquisadores usaram a da SLS, Fonte de Luz Suíça, no Instituto Paul Scherrer, em Viligen).
O resultado é uma nanotomografia computadorizada de raios X que produz uma imagem 3D do que restou de células bacterianas que viveram há bilhões de anos. No caso em questão, 1,88 bilhão de anos. “A técnica nos permite ver a célula por todos os ângulos, e isso é muito importante quando se tenta diferenciar uma bactéria fóssil, que às vezes não passa de uma minúscula esfera ou filamento sem nenhuma ornamentação, de cristais ou simples aglomerados de matéria orgânica”, diz Maldanis.
Até então, a única técnica capaz de produzir algo parecido envolvia microscopia eletrônica de varredura, com um agravante: “Para poder ver o fóssil em 3D, era preciso remover camada por camada, destruindo-o completamente”, destaca a pesquisadora. “Nossa técnica, além de não ser destrutiva, tem o adicional de ter um ótimo contraste para a matéria orgânica das células.”
Pelo lado brasileiro, o trabalho tem financiamento da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) e do Instituto Serrapilheira, no âmbito do projeto de astrobiologia liderado por Douglas Galante, pesquisador do LNLS (CNPEM). E a expectativa, claro, é que esse seja apenas o começo. Com a técnica devidamente demonstrada, os pesquisadores esperam explorar outras amostras e explorar algumas das questões que perturbam os estudiosos dos primeiros passos da vida na Terra.
“Agora temos convicção de que essa técnica poderá contribuir muito em algumas discussões muito interessantes”, diz Maldanis. “Gostaríamos muito de testar, por exemplo, os microfósseis de Apex Chert, na Austrália, descritos como os fósseis mais antigos da Terra, mas que são alvo de discussão e controvérsia há mais de 20 anos!”
E por que parar em amostras terrestres? O grupo tem esperança de aplicar o método, por exemplo, em alguma amostra do famoso meteorito ALH84001, proveniente de Marte. Pesquisadores da Nasa, em 1996, disseram ter identificados nanofósseis de possíveis micróbios marcianos nele. Hoje o consenso científico é de que se tratam de estruturas não biológicas, mas os autores da pesquisa até hoje apostam em sua conclusão original e talvez uma técnica mais sofisticada de imageamento possa colocar ponto final à questão, para um lado ou para o outro. Não é fácil a Nasa emprestar um farelinho que seja do ALH84001, mas os pesquisadores brasileiros ainda não desistiram.
E a perspectiva de estudar rochas marcianas ganha contornos ainda mais interessantes conforme as agência espaciais começam a por em marcha um plano para trazer novas amostras de Marte. O jipe Perseverance, que parte em julho, tem como um de seus objetivos colher amostras de interesse, para futuro envio de volta à Terra. “Queremos mostrar com esse trabalho, e os que ainda virão, que um síncrotron pode ser o melhor lugar para estudá-las”, diz Maldanis. “E quem sabe até, se não for sonhar muito, algumas dessas análises não possam ser feitas no nosso Sirius [novo acelerador de luz síncrotron em construção no LNLS]?”