NovaCana, em 9 de fevereiro de 2015
Estudo divulgado esta semana pelo World Resources Institute (WRI), um think tank ambiental norte-americano conhecido por sua posição apartidária e opiniões incisivas em relação ao meio ambiente, causou desconforto e mal-estar entre pesquisadores brasileiros especializados em bioenergia e cana-de-açúcar.
Destaque no caderno de Ciência do The New York Times, o mais importante jornal do mundo, o estudo pede aos governos que reconsiderem o apoio aos biocombustíveis.
Polêmica, a pesquisa faz duras críticas à “limitada” capacidade dos renováveis – entre eles, o etanol brasileiro produzido a partir da cana-de-açúcar – de suprir a demanda mundial de combustíveis e reduzir a emissão de gases de efeito estufa.
Com o apoio financeiro de importantes instituições e governos, como o Ministério de Relações Exteriores da Noruega, o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA) e o Banco Mundial, o documento de 44 páginas contesta a conhecida contribuição dos biocombustíveis para o meio ambiente, uma bandeira amplamente defendida pelo setor de etanol no Brasil.
Em defesa do etanol de cana
Defendido pela Unica como um importante aliado para a redução dos gases de efeito estufa e considerado pelo governo da Califórnia como um combustível avançado de baixo carbono (CI), o etanol de cana brasileiro não ficou incólume às críticas do WRI.
Num trecho específico do documento, o pesquisador da Universidade de Princeton e autor do estudo, Tim Searchinger, lança dúvidas sobre a sustentabilidade do etanol produzido no Brasil.
“O etanol de cana-de-açúcar deveria ser uma exceção à recomendação de evitar a bioenergia que faz o uso dedicado da terra?”, provocou.
E respondeu: “A cana-de-açúcar é uma cultura perene, de alto rendimento, que faz um uso relativamente modesto de nitrogênio. Seus co-produtos são queimados para gerar a energia para fermentar os açúcares e muitas vezes geram excedente de eletricidade. Ainda assim, se a cana-de-açúcar para a produção de etanol transformar diretamente o Cerrado ou a Floresta Amazônica, é provável que ela irá emitir carbono o suficiente para cancelar todas ou muitas de suas vantagens quanto a emissão de gases de efeito estufa por muitos anos”, sugere Searchinger.
Esta e outras sugestivas ilações são contestadas por pesquisadores brasileiros especializados em bioenergia e cana-de-açúcar (veja mais sobre as críticas na reportagem “Think tank analisa etanol no Brasil…”).
O portal novaCana procurou o pesquisador do CTBE (Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol), Manoel Regis, para ouvir sua opinião sobre o trabalho. “Searchinger tem feito estas afirmações sem apresentar dados concretos que as comprovem. Praticamente não existe cana na Amazônia e a expansão no Cerrado tem ocorrido principalmente sobre pastagens, muitas delas degradadas. Existem medições de campo que indicam que nestas situações o balanço de carbono no solo é, na quase totalidade dos casos, positivo representando um sequestro de carbono da atmosfera (emissões negativas de gases de efeito estufa)”, afirmou.
Para Regis, o argumento de Searchinger é, na verdade, a repetição de dados “grosseiramente superestimados” quanto à emissão de biocombustíveis apresentados em 2008, os quais foram amplamente criticados pela academia.
“Esta é a análise de um paper publicado por Searchinger em 2008, a qual foi questionada por vários autores, que mostraram que as projeções dele eram cerca de dez vezes maiores do que os valores que poderiam ser aceitos”, completa o ex-diretor da ANP e consultor de agências das Nações Unidas (FAO, CEPAL, PNUD) em temas energéticos, Luiz Augusto Horta Nogueira.
“O TIM SEARCHINGER É UMA VOZ SOLITÁRIA EM NÃO RECONHECER QUE OS BENEFÍCIOS AMBIENTAIS DA PRODUÇÃO DO ETANOL DE CANA SÃO EXPRESSIVOS E RECONHECIDOS”
Nogueira e Regis referem-se a um artigo em que Searchinger e outros autores afirmam que o uso do etanol de milho, ao invés de reduzir em cerca de 20% as emissões, como geralmente aceito, dobraria as emissões no período inicial de 30 anos na mesma área, prosseguindo com emissões positivas por 167 anos. Para o etanol de cana brasileiro, a conclusão foi que, após quatro anos, as emissões passariam a ser menos que aquelas da gasolina.
“É lógico que, se você expande e desmata uma floresta para a produção de biocombustíveis, os benefícios ambientais associados à sua produção vão levar anos para cobrir aquilo que você fez. Mas eu não acho que seja necessário desmatar florestas. O zoneamento agroecológico feito no Brasil mostrou que nós temos 65 milhões de hectares para expandir a produção de bioenergia sem tirar áreas de indígenas e quilombolas, e sem desmatar florestas”, diz Nogueira.
Um conhecido crítico do etanol nos Estados Unidos e um defensor do chamado impacto da mudança no uso indireto da terra (ILUC, na sigla em inglês), Searchinger voltar a ponderar, no estudo publicado esta semana, se a conversão de pastagens para a produção de cana-de-açúcar encorajaria a conversão de florestas em outros locais para pastos, seja no Cerrado, na Amazônia, ou mesmo em outros países.
“O grande equívoco das análises que se apresentam de ILUC é não levar em conta os ganhos expressivos de produtividade que vêm sendo conseguidos na agricultura e principalmente na pecuária. O Brasil tem hoje 200 milhões de hectares com pastagens cultivadas e nativas. Se eu obtiver 1% de eficiência nisso, com a forrageira e o manejo adequado, eu terei 2 milhões de hectares. Isso é quase metade da área que estou usando para produzir cana para fins energéticos, que é de 5 milhões de hectares”, contrapõe Nogueira.
“SÃO INACEITÁVEIS COMENTÁRIOS SOBRE A IMPRECISÃO DOS MÉTODOS, PORQUE OS MÉTODOS PARA A AVALIAÇÃO DAS EMISSÕES SÃO BASTANTE TRANSPARENTES, ESTÃO CONSOLIDADOS E SÃO APLICADOS EM MUITOS CENTROS DE PESQUISA AO REDOR DO MUNDO”
Em uma das salas do Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), onde desenvolve estudos e projetos sobre bioenergia e eficiência energética, Nogueira deixa claro o descontentamento, não só dele, mas também de outros pares no Brasil, quanto às ideias do pesquisador da Universidade de Princeton, repetidas na pesquisa divulgada esta semana.
“O Tim Searchinger é uma voz solitária em não reconhecer que os benefícios ambientais da produção do etanol de cana são expressivos e reconhecidos”, dispara Nogueira.
“São inaceitáveis comentários sobre a imprecisão dos métodos, porque os métodos para a avaliação das emissões são bastante transparentes, estão consolidados e são aplicados em muitos centros de pesquisa ao redor do mundo”, defende o pesquisador brasileiro.
Segundo Regis, estudos “sérios” da EPA e da Comissão Europeia (EC) mostram que existem biocombustíveis viáveis, como o etanol de cana do Brasil, e outros inviáveis, como o etanol de milho em qualquer parte do mundo.
“A EPA fez uma análise muito detalhada do ciclo de vida das emissões de GEE para o etanol de cana-de-açúcar, considerando inclusive os efeitos indiretos (ILUC) e o etanol brasileiro de cana indicou uma redução de 61% das emissões de GEE quando substitui a gasolina nos Estados Unidos. Para a substituição da gasolina no Brasil, esta redução é ainda maior, pois não inclui o transporte internacional necessário para levar o etanol até o continente norte-americano”, compara Regis.
Nova roupagem
O texto publicado esta semana sugere, ainda, que a produção de combustíveis a partir das chamadas “food crops”, como o milho e a cana-de-açúcar, “intensificam a competição global por terras” e são um “entrave aos esforços para combater as mudanças climáticas e alcançar um futuro alimentar sustentável”.
“O que é segurança alimentar?”, questiona Nogueira, ex-consultor da FAO para assuntos energéticos.
“O conceito de food security pode ser resumido em quatro pontos: acesso, continuidade, qualidade e condições de preparar e armazenar estes alimentos”, conceitua.
“Nós não temos um problema crescente de fome na humanidade. Há um crescimento importante da demanda, mas da demanda qualificada. É necessário reduzir o desperdício de alimentos, melhorar a produtividade, obter eficiência nos processos de bioenergia, mas dizer, de uma forma apriorística, com pouca fundamentação, que não há benefícios ambientais e sociais na produção de biocombustíveis é desconhecer a realidade”, insiste Nogueira.
“Os maiores produtores de etanol no mundo – os Estados Unidos e Brasil – são também os maiores produtores e exportadores de alimentos. Não existe falta de terras no mundo para produzir alimentos. Existe, sim, falta de recursos para se comprar alimentos. Estudos da FAO indicam que o problema da fome no mundo é mais um caso de falta de acesso (dinheiro para comprar) do que de disponibilidade”, completa o pesquisador do CTBE.
Considerando a “enorme capacidade” do país de alavancar a produção de carne, alimento que poderia ajudar a reduzir a fome no mundo, o estudo chega a sugerir que o país dedique mais terras à produção de gado de corte do que à fabricação de biocombustíveis como o etanol.
“Seria, então, mais socialmente e ambientalmente valioso para Brasil contribuir mais do que um quinto da necessidade adicional de carne [do planeta] do que desviar pastagens potencialmente produtivas para a bioenergia”, aponta o think tank norte-americano.
“O Brasil está numa posição diferenciada para ajudar a alimentar o mundo, e numa perspectiva global, este é o uso mais vantajoso de seus enormes recursos naturais e agrícolas”, propõe o documento.
Incomodado com a declaração de Searchinger, Nogueira provoca: “Os alemães produzem 600 mil hectares de milho e sorgo, alimentos de alto valor proteico, para alimentar patos, porcos ou mesmo seres humanos? Não. Eles moem estes alimentos e os colocam em biodigestores para produzir gás, o qual é injetado na rede de gasoduto”.
“O Searchinger faria uma grande contribuição se avaliasse o caso da Alemanha, onde o milho está sendo utilizado sem qualquer aplicação alimentar para abastecer biodigestores”, completa.
Para o engenheiro agrônomo e mestre em Entomologia, Décio Gazzoni, embora a expansão da produção de matéria-prima para biocombustíveis seja, muitas vezes, considerada uma grande ameaça para a produção de alimentos e uma importante fonte de mudança no uso da terra e de disponibilidade de biomassa que, no limite, conduziria ao desmatamento, estudos recentes revelam que o impacto prático da expansão dos biocombustíveis sobre o uso da terra tem sido muito limitado, quando não é nulo.
“Um aumento de 14 milhões de hectares (Mha) foi observado nos 34 países principais produtores de biocombustíveis, entre 2000 e 2010. Durante o mesmo período, o aumento da intensidade de cultivo permitiu colher mais de 42 Mha por cultivos sucessivos, na mesma área e no mesmo ano agrícola, o que corresponde a três vezes a área de expansão dos biocombustíveis”, escreveu o pesquisador da Embrapa, em artigo que analisa o impacto do uso da terra na sustentabilidade dos biocombustíveis.
“Nessa mesma década, apesar da produção recorde de biocombustíveis, foi observada uma redução global de 47,8 Mha na área agrícola global, embora a produção agrícola total mantivesse a mesma taxa de crescimento de anos anteriores, devido a um aumento de 91,5 Mha no Índice de Cultivo Múltiplo [MCI, na sigla em inglês], além dos ganhos de produtividade do período”, finalizou.
Leonardo Siqueira – novaCana.com