Estadão .Edu em 08/07/2017
Em 2017, o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), o primeiro dos quatro laboratórios de pesquisa e desenvolvimento que integram o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), completou 30 anos. Como parte das comemorações, no dia 7 de julho, CNPEM, fui convidado para uma cerimônia para celebrar essa data. Não podendo comparecer por estar residindo no exterior, recebi a proposta de escrever um texto sobre os primeiros anos do Projeto Síncrotron que seria lido por ocasião das comemorações.
Como o Projeto Síncrotron foi provavelmente a maior realização científico/tecnológica do Brasil no século XX, inclusive pelo lançamento do modelo de laboratório nacional de pesquisas, julguei conveniente divulgar mais amplamente minhas próprias lembranças deste período heroico vivido por um pequeno grupo de idealistas.
A PRÉ HISTÓRIA DO LNLS
Roberto Leal Lobo E Silva Filho
“Agradeço muito o convite para participar desta cerimônia que comemora os trinta anos de instalação do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron-LNLS. Cumprimento todos os presentes e me desculpo por minha ausência, mas estou morando atualmente em Boston, nos EUA, e não teria condições de vir ao Brasil nesse momento.
A Luciana Cintra de Oliveira, secretária de imprensa, entrou em contato comigo e gentilmente propôs minha participação por meio de gravação. A gravação sempre me aflige um pouco, porque não vejo a reação da plateia. Por isso preferi escrever para não deixar de lado fatos e pessoas importantes nessa narrativa.
O título sugerido: A Pré-História do LNLS me fez pensar na minha geração que, com erros e acertos, lutou por um Brasil melhor.
A história do LNLS começa quando, em 1979 foi convidado pelo professor Maurício Matos Peixoto para assumir a diretoria do Centro Brasileiro de Pesquisas Físicas, no Rio de Janeiro, que tinha sido absorvido recentemente pelo CNPq. A proposta era a de recuperar o CBPF como um centro importante de pesquisas em física no Brasil.
Ainda no início de meu mandato, o Maurício foi afastado da presidência do CNPq e, em seu lugar, foi nomeado Lynaldo Cavalcanti de Albuquerque, ex-reitor da Universidade Estadual da Paraíba.
Algum tempo de pois de assumir a presidência, Lynaldo pediu que todos os institutos do CNPq propusessem um plano de desenvolvimento para os anos futuros. Eu, como diretor de CBPF, já vinha pensando nisso há algum tempo e discutido com meus colegas de instituição.
O CBPF estava, então, em fase de reestruturação e, por isso, a discussão sobre o futuro da instituição já estava em pauta. Havia muitas opiniões. Eu achava que tínhamos duas alternativas: o Centro poderia ser apenas teórico, como o IMPA da Matemática, uma espécie de núcleo com poucos pesquisadores altamente qualificados que receberiam visitantes do Brasil e do exterior para incentivar o intercâmbio e ventilar as mais novas ideias na Física contemporânea, ou poderia também acrescentar a isso a criação de um grande laboratório nacional, organização que havia em muitos países desenvolvidos, mas que não existia no Brasil.
Como no CBPF havia muitos grupos experimentais, estes grupos concordaram comigo, lutando pela segunda hipótese. Embora sendo físico teórico, entendia que, em primeiro lugar, o Brasil precisaria ter um projeto científico experimental capaz de atrair nossas competências, científicas e tecnológicas e que, principalmente, entusiasmasse nossa juventude que carecia de equipamentos competitivos, o que os desencorajava: alguns jovens preferiam ir para a Física Teórica, outros, para o exterior. Não podíamos aceitar a falta de meios mínimos para competir com outros países.
Esse equipamento deveria ser fabricado no Brasil, é claro, com uma tecnologia dentro de nossas possibilidades, com um custo aceitável e, mais importante, que o laboratório deveria centrar-se em torno de uma máquina que tivesse amplo espectro de utilização e grande durabilidade. Não podia ser um equipamento voltado a uma experiência mesmo que importante, ou área muito limitada.
Duas pessoas, nessa época, estimularam essa visão: Jacques Danon, pesquisador do CBPF e Roberto Salmeron, físico brasileiro radicado na França, professor da École Polytechnique.
Salmeron trouxe uma sugestão: “Vamos pegar o acelerador que existe no CBPF, que pode funcionar como o injetor de um futuro Síncrotron”.
Fui depois apresentado ao general Argus, engenheiro militar, que construíra esse acelerador. Ele era, no Brasil, a única pessoa que conseguira fazer um acelerador digno desse nome, embora já obsoleto. Conversei com ele, que também mostrou entusiasmo com uma possível adaptação. Tínhamos, portanto, um projeto de modestas dimensões. Mas incluímos a ideia no plano diretor do CBPF.
Fui visitar laboratórios Síncrotron nos Estados Unidos e na Europa. Quando comparei o que estávamos planejando no Brasil com o que havia lá fora, me convenci que o nosso projeto jamais atrairia gente jovem. Pensei comigo: “O porte tem que ser outro, bem maior, para valer a pena”.
Voltei da viagem e transmiti aos colegas estas minhas conclusões. Encarreguei Alberto Passos Guimarães, um físico experimental do Centro, de apresentar a nova ideia à comunidade, numa reunião da Sociedade Brasileira de Física. A plateia ficou histérica, segundo relato do Alberto Passos. Quase matam ele.
Disseram que aquilo era uma loucura, que iríamos tirar dinheiro dos grupos existentes, que o laboratório seria uma espécie de Maracanã, jamais chegaria ao fim.
Mesmo assim, propus formalmente à presidência do CNPq a montagem no Brasil de um Síncrotron de porte competitivo com as máquinas internacionais. Sugeri uma comissão de pessoas do CBPF/CNPq e da comunidade científica, presidida por mim, para discutir a questão.
Participavam médicos, químicos, físicos, engenheiros. Várias pessoas que trabalham ou trabalharam no Síncrotron eram, num primeiro momento, contrárias à ideia.
O engenheiro e físico Ricardo Rodrigues, que viria a ser o grande responsável pela construção da máquina, foi uma das pessoas que se opuseram no princípio. Disse que o custo da energia elétrica seria uma loucura, que não havia quem mantivesse esse equipamento. Cylon Gonçalves da Silva, que viria a ser, por muitos anos, diretor do laboratório, telefonou-me dizendo que era radicalmente contra o projeto. Depois pediu para eu explicar porque eu tinha proposto o projeto. Disse a ele: ”Se você já é contra, não há o que explicar a menos que você me ouça primeiro para decidir se é contra depois”. Ele disse que queria ouvir minha explicação. Marcamos um almoço e, de fato, ele começou a se entusiasmar, porque ele era também um idealista. Assim, pouco a pouco, foi-se vencendo a reação inicial.
Trouxemos estrangeiros para ajudar em nossa cruzada, que se iniciava na conceituação do projeto. Trouxemos o Helmut Wiedeman, alemão que trabalhava com aceleradores em Stanford e o Yves Petroff, diretor do LURE, Síncrotron francês. Eles fizeram palestras para a comunidade do CBPF.
O projeto foi tomando tal porte que não caberia mais no CBPF! Ainda mais a comunidade interna também não aderia. Nas palestras havia mais gente de fora do que do Centro. Eu queria que o Síncrotron ficasse na mão de gente moça, que fizesse do projeto sua razão de vida profissional. Era um projeto de longo prazo, ia precisava de fôlego e comprometimento por muitos anos.
O Clodovaldo Pavan, presidente da SBPC, não via o projeto com bons olhos. Achava a proposta megalomaníaca. E fazia parte da nossa comissão. Disse-me em uma ocasião que tinha ido à França e que o “pessoal” havia desaconselhado a montagem do laboratório. “São brasileiros famosos que trabalham na França…”, ele argumentou. Retruquei: “Brasileiros famosos na França, nessa área, eu só conheço o Salmeron e o Jean Meyer. Não recebi deles nenhuma crítica. O Salmeron foi a pessoa que sugeriu construirmos um Síncrotron”. Pavan: “Mas não desse porte”. Insisti: “Tem que ser deste porte, tem que ser uma máquina competitiva e não um presépio”.
Começamos a discutir custos. O pessoal da Universidade Estadual do Rio de Janeiro, da área de Química, tomou gosto pela ideia. Gente da UNICAMP e da Federal de São Carlos, também. A proposta foi ganhando alento cada vez maior. O pessoal da Sociedade Brasileira de Cristalografia tomou posição favorável. Começamos a programar reuniões internacionais, trazendo mais gente de fora. Durante três anos fizemos muitos estudos, discussões, seminários e viagens.
Fui chamado a falar do Síncrotron em vários lugares. Na PUC, tive um debate duro com o Moisés Nussenzveig e o Nicim Zaguri. Estive em São Paulo, Recife, viajei muito explicando o projeto.
Em setembro de 1982 completei três anos na direção do CBPF. Fui a Brasília e entreguei o cargo. Lynaldo quase morreu de susto. Perguntou-me: “Por que você está saindo, houve algum aborrecimento? ”. Respondi que cumprira exatamente os três anos na direção do CBPF, como já havia avisado que pretendia ficar. Ele falou: ”Mas não tem mandato…”. Argumentei que eu próprio me havia atribuído esse prazo: “Já fiz o que podia fazer, vou voltar para São Carlos”.
Regressei do Rio e, no CBPF, anunciei a decisão. Foi uma surpresa enorme, porque ninguém esperava que eu fosse sair por vontade própria.
Voltei para São Carlos e, no ano seguinte, recebi um telefonema do Lynaldo, ainda presidente do CNPq: “Lobo, preciso novamente de você”. Eu falei: “Pára com isso, cheguei aqui outro dia…”. Ele insistiu que precisava de um diretor no CNPq para fazer uma ponte com a comunidade científica. Disse francamente que estava sem interlocução. Acabei aceitando. Passava dois dias por semana em Brasília. Atuava junto aos comitês assessores.
Discutindo bastante com a comunidade científica ajudei a montar alguns pilares da ponte sonhada por Lynaldo, como, por exemplo, a nova estrutura dos Conselhos Técnicos e a Comissão dos Presidentes dos Comitês Assessores, que inda existe. Continuei, durante todo esse tempo, como coordenador do Projeto Síncrotron, nomeado pelo CNPq.
Em 1984, surgiu uma proposta internacional. Os franceses queriam desativar um Síncrotron e passar para o Brasil. Esse equipamento até que poderia funcionar a curto prazo, mas para mim não era o que mais convinha a nosso país. Queríamos usar um Síncrotron moderno e participar do seu desenvolvimento. A máquina francesa estava ultrapassada, nem fora concebida como fonte de luz, era um anel de colisão de partículas.
Discutimos muito isso com a delegação francesa que veio ao Brasil. Convidaram-me para ir examinar o Síncrotron na França, por conta deles. Eu disse ao presidente do CNPq: “Estou negociando, não quero viajar pago pela França, Só vou se o Brasil assumir minhas despesas”. Lynaldo concordou comigo. Viajei com absoluta independência. Fui como observador, não como hóspede. Na Embaixada Brasileira Em Paris, contei sobre minha viagem e as condições que tinha exigido. “É bom saber que alguém chega com independência para negociar. Geralmente os brasileiros chegam pagos pela França, e ainda penduram uísque na conta, que os franceses não pagam e ainda cai nas nossas costas”.
Na volta ao Brasil combati mais convictamente a proposta de trazer o Síncrotron antiquado da França. Com esse equipamento arquivaríamos o desafio de criar novas competências e recursos humanos para desenvolver o projeto. Queríamos um projeto moderno e desenvolvido por nós. Queríamos decidir sobre o tipo de imã e o tipo de anel.
O Ricardo Rodrigues, já totalmente convertido ao projeto, seguiu para os Estados Unidos para trabalhar com o Wiedeman. Passou três meses e voltou com o primeiro esboço do nosso Síncrotron. Trouxe o software para cá. Aqui se desenvolveram outros softwares e, por isso, tivemos no Brasil uma equipe capaz de projetar aceleradores.
Voltando a 1984: finalmente foi aprovada pelo CNPq a criação de um grande laboratório nacional. Os focos de resistência, em sua maioria, tinham sido desarmados. A nova questão era: onde localizar o laboratório?
Fizemos o que se faz na Europa, que é quase uma licitação: o CNPq anunciou que estava montando um laboratório nacional e que localidades interessadas em sediá-lo deveriam apresentar suas condições. Constitui-se um comitê decisório formado por mim, Aldo Craievich, Cylon Gonçalves da Silva e Ricardo Rodrigues.
O professor Antônio Guimarães Ferri era reitor da Universidade Federal de São Carlos, nomeado pelo ministro da Educação. Um reitor com sérios conflitos com a comunidade, porque não fora eleito e era visto como interventor do MEC. Ele trouxe a proposta da UFSCar, que pretendia sediar o Síncrotron, mas seu Conselho Universitário vetou a pretensão. Argumentaram com o risco de radiação na cidade, mas na verdade foi uma decisão política, que desprezou uma oportunidade interessante.
A Universidade Estadual do Rio de Janeiro informou na sua proposta que o governador Brizola doaria o terreno, mas não se mostrou organizado enquanto comunidade científica. A prefeitura de Campinas também encaminhou a sua. O prefeito José Roberto Magalhães Teixeira me chamou, disse que estava animado, mas queria entender melhor a ideia. Passei uma tarde com ele, explicando o projeto.
Fizemos a votação no comitê e Campinas ganhou. Encaminhei a decisão à presidência do CNPq. Foi uma surpresa para o Lynaldo. Ele achava que iríamos escolher São Carlos, porque eu era de lá e a USP também tinha seu campus na cidade e era a minha universidade. O pessoal de São Carlos ficou aborrecido. Mas Campinas era maior, bem mais próxima de São Paulo e dos aeroportos, e também tinha uma importante universidade, a UNICAMP.
Pesou, também, para mim, o fato de que haveria uma transição de governo no início de 1985 e o Rogério Cerqueira Leite que estava bastante próximo do projeto e de Lynaldo, tinha boas relações com o futuro governo e o Síncrotron iria precisar de apoio político para sobreviver à transição.
Começamos, então, a desenvolver o Projeto em Campinas. A mudança de governo trouxe ao Ministério de Ciência e Tecnologia o Almirante Renato Archer. Desde logo senti um grande distanciamento e uma deliberada manifestação de que eu não era pessoa com quem quisesse colaborar. Luciano Coutinho era chefe de gabinete e Rogério Cerqueira Leite seu conselheiro de confiança. Mesmo assim, eu estava sem interlocução e sem verba.
Em 1986, fui indicado pelo Conselho Universitário da USP ne lista sêxtupla para o cargo de Vice-reitor, com o apoio do Reitor José Goldemberg. O governador Montoro me indicou em seguida. Não poderia acumular a Vice-reitoria com o Síncrotron e pedi para sair de sua coordenação. Deve ter sido um alívio para o Renato Archer.
O Cylon, que era professor da Unicamp e muito próximo do Rogério Cerqueira Leite assumiu a direção do Síncrotron. Embora gostasse muito do Cylon, eu defendia a tese de que o Diretor do Síncrotron não deveria ser da região onde o equipamento se instalara, para garantir o caráter aberto e nacional do laboratório, como era a regra na Europa. A bem da verdade, Cylon foi um excelente diretor.
Nessa ocasião foi que o Cylon, que acabara de ser convidado para ser o futuro diretor do Síncrotron, me telefonou e disse que estava aflito porque, aceitando o convite, interromperia o seu trabalho de pesquisa. Eu disse a ele: “Olha Cylon, entre os bons cientistas do Brasil eu vejo dois tipos: o que está trabalhando e, quando começa a pingar uma goteira, puxa a mesa de lado para continuar o trabalho, e o que vai reclamar da goteira. O que vai reclamar da goteira vira administrador na área científica. Nós somos do segundo tipo e devemos seguir nosso destino”.
Fez-se a regulamentação, oficializou-se o Síncrotron como um laboratório nacional. Foi criado um Conselho Diretor, capitaneado pelo Rogério Cerqueira Leite. Participavam o Salmeron, Jean Meier, que moravam na França, o Pelúcio e o Leite Lopes, do Rio, alguns empresários e eu.
Aos poucos, meu trabalho na Vice-reitoria – e mais ainda depois de ser eleito como Reitor da USP – foi me afastando do dia-a-dia do LNLS, embora sempre mantivesse relações de amizade com a equipe inicial do Projeto.
Escrevi essa pequena contribuição lembrando que esses fatos ocorreram há mais de trinta anos e o meu relato baseia-se na minha memória e em anotações e documentos que guardei ao longo daquele período. Fatos são fatos e espero ter sido fiel a eles.
O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron é um sucesso científico e tecnológico no Brasil, mostrando o acerto da decisão de levar a ideia à frente. Mostra, também, que felizmente eu já não fazia falta, quando me afastei para assumir a vice-reitoria da USP, porque a pequena equipe se transformou em uma grande equipe, mas manteve o espírito dos pioneiros.
O LNLS foi o primeiro do Hemisfério Sul, desenhado e construído com tecnologia brasileira com instalações abertas para a comunidade científica e empresarial em todo o país e no exterior. Sei que quando saí do Brasil, em 2015, as instalações do Síncrotron estavam sendo utilizadas por cerca de 2.700 pesquisadores brasileiros e estrangeiros anualmente, comprometidos com mais de 500 estudos que resultavam em cerca de 250 artigos publicados em revistas científicas e 20% desses estudos propostos por estrangeiros.
Hoje, na comemoração dos trinta anos de funcionamento do LNLS, quero cumprimentar com todo o carinho todos aqueles que tem contribuído para que o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron seja um orgulho para o Brasil. É um enorme orgulho para mim também e um dos projetos mais importantes que tive a honra de liderar.
Quero deixar meu abraço e minha admiração para o trio inicial que trabalhou comigo: Ricardo Rodrigues, Aldo Craievich e Cylon Gonçalves da Silva e ao Rogério Cerqueira Leite os parabéns por sua atuação em defesa do laboratório.
Agradeço muito a atenção de todos e espero que o Brasil saiba cuidar desse grande legado.”