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Revista Pesquisa Médica, em 25/02/2011
Abrindo a gaiola
O Brasil ocupa posição de destaque no mercado mundial de medicamentos. É o nono colocado, com movimento estimado em 12 bilhões de dólares, só em medicamentos,segundo o instituto especializado em estatísticas do setor, o IMSHealth. Como o país ainda importa grande parte dos insumos para o setor e com as drogas biológicas que o Sistema Único de Saúde (SUS) consome, por não dominar essas tecnologias, acaba amargando défi cit na balança comercial de saúde de quase 8 bilhões de dólares. Comparado a um país de industrialização recente como a Coreia do Sul, a fragilidade tecnológica brasileira é apreviável, lembra Carlos Morel, diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS), em fase fi nal de construção no campus da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Manguinhos (Rio de Janeiro). “O objetivo principal do CDTS será combater esse Vale da Morte”,declarou ele, em entrevista recente à revista FACTO1, da Associação Brasileira das Indústrias
de Química Fina, Biotecnologias e suas Especialidades (ABIFINA),referindo-se à difi culdade do país de transformar conhecimento em produto e levar para o leito do paciente uma descoberta originada em bancada de laboratório.
A comparação com a Coreia do Sul permite entender melhor o problema. Enquanto os coreanos têm quase 100 mil cientistas e engenheiros produzindo inovação na indústria, o Brasil tem menos de 29 mil. “A baixa quantidade de C&E na indústria brasileira afeta o potencial competitivo das empresas e reduz a capacidade do país em transformar ciência em tecnologia e em riqueza”,escreve Brito e colaboradores2,3, o mesmo autor do relatório de ciência da Unesco-2010, citado
nas páginas anteriores, sobre o Brasil. Os artigos informam, baseados em dados de 2000 em diante, que 73% dos cientistas e engenheiros brasileiros trabalham para instituições de ensino superior, como docentes, em regime de dedicação excluside
va, enquanto apenas 23% trabalham para empresas. “Em todo o mundo, o lugar privilegiado da inovação é a empresa”, escreve Brito. “E isso tem razão de ser”, completa. A transformação do conhecimento em produto de prateleira não é tarefa para a universidade, obviamente. “Mas, por incrível que pareça, falta pessoal técnico para ocupar esse espaço”, diz o farmacologista João Batista Calixto, responsável pela implantação do Centro de Referência em Farmacologia Pré-Clínica, no Sapiens Parque – em Florianópolis (SC),um projeto previsto para ser inaugurado em 2012, que terá de 60 a 80 pesquisadores e 13 empresas incubadas, voltado para as parcerias público- privadas em pesquisa e desenvolvimento de fármacos e medicamentos. Pesquisador nível IA do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científi
co e Tecnológico (CNPq), membro da Academia Brasileira de Ciências, Calixto é referência no desenvolvimento de parcerias com a indústria no país. Já desenvolveu 40 projetos com indústrias farmacêuticas nacionais e internacionais e tem em seu currículo o registro de 18 patentes, além do desenvolvimento de produtos que foram para o mercado, como o anti-infl amatório Achefl an, do Aché. “Falta pessoal técnico, porque os doutores são clones de seus orientadores e estes não estão voltados para o desenvolvimento de tecnologia”, ele declarou à Pesquisa Médica, na véspera de uma viagem aos Estados Unidos, onde visitaria um centro de pesquisa semelhante ao seu e assinaria convênio de intercâmbio de pesquisadores. “Vamos
mandar gente pra lá, fazer treinamento”, ele disse. O centro de referência terá laboratório certificado para o desenvolvimento de linhagens de roedores SPF – sigla do inglês specifi c pathogen free − inicialmente roedores (ratos e camundongos),
e também canil próprio de criação de cães beagles para ensaios de toxicologia.
O gargalo dos biotérios
A infraestrutura de biotérios é indispensável à pesquisa de fármacos e medicamentos e se constitui em um dos gargalos que as políticas atuais de incentivo tentam eliminar. Não existem biotérios privados, no país, por falta de demanda.Cada grupo de pesquisa faz o seu, nas universidades.Resta ao governo financiar a expansão e oferecer às empresas a prestação de serviço.
A iniciativa de desenvolvimento de um laboratório de modificação do genoma no Laboratório Nacional de Biociências, em Campinas, com o estatuto de uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), atende a essa proposta atual de agregar valor à pesquisa biológica, sem burocracias como licitações, e contribuir para a transferência de tecnologia à indústria.”Em outros países, as técnicas de modifi cação do genoma estão muito bem estabelecidas. Com
elas, é possível produzir animais transgênicos e estudar modelos de doenças, reproduzindo em camundongos a mesma mutação que ocorre em seres humanos”, explica o pesquisador encarregado de criar e manter o biotério de transgênicos
do LNBio, José Xavier Neto, que vem de experiências de trabalho anteriores no biotério da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da mesma instituição, onde estudou a produção dos transgênicos. “Esse procedimento já foi bastante utilizado para compreender doenças cardíacas. Uma vez identificado no corpo humano o nucleotídeo alterado por determinada doença genética, é possível trazer essa
mutação para um camundongo, fazendo com que ele expresse a proteína defeituosa e sirva de modelo para o estudo da doença”, diz o pesquisador.
Demanda reprimida
O LNBio pretende produzir e fornecer animais gratuitamente para pesquisadores do Brasil e da América Latina e realizar parcerias com o setor privado, que possam estimular o desenvolvimento tecnológico nacional. Segundo dados coletados na plataforma Lattes, 1.200 pessoas, relacionadas a um universo potencial de seis mil pesquisadores, que investigam temas adjacentes, estão trabalhando com animais transgênicos no Brasil. Além disso, Xavier estima que 642 empresas podem se
benefi ciar de estudos com animais transgênicos − fornecedores de material odontológico, equipamentos médicos, hospitalares e laboratoriais (372), empresas relacionadas à medicina veterinária (101) e empresas farmoquímicas e de biotecnologia (169).
A produção dos camundongos transgênicos seguirá as principais técnicas de manipulação genética utilizadas mundialmente: o método clássico de injeção do DNA selecionado no prónúcleo, por quimera e lentivírus. O método clássico tem eficiência máxima de 21% − em geral, sua efi cácia oscila entre 8% e 10%, explica Xavier. Mas o tempo necessário para desenvolver animais a partir dele é menor, em relação aos demais. Quimeras são animais criados para estudar a infl uência de um determinado gene. São os chamados camundongos knock-out (com um gene
inativado) e knock-in (com algum gene acrescentado substituindo um original). “Para entender a função de um determinado gene, não existe melhor experimento do que anular esse gene”, observa o pesquisador. “O lentivírus é um vírus da família do HIV, modifi cado para servir de vetor de um determinado DNA. A vantagem do lentivírus
é a região em que atua. Basta inseri-lo no espaço que envolve o embrião. Não é preciso injetá-lo no pró-núcleo do embrião”, comenta Xavier, destacando a alta efi ciência do lentivírus.
Xavier Neto ressalta que embora esses procedimentos sejam “quase rotina” em outros países, no Brasil eles ainda não ocorrem de forma regular. “A pesquisa nacional acabou se resignando a não fazer uso desses animais, por serem difíceis de obter.” Eram importados, morriam na burocracia da alfândega, devido à lentidão dos trâmites para liberação. Os pesquisadores se acostumaram a utilizar células in vitro, pois eram mais acessíveis e rápidas de trabalhar, comparativamente. Habituados
a esse tipo de estudo, acabaram esquecendo que poderiam usar animais transgênicos e agregar maior valor à sua pesquisa.”
Infraestrutura para estudos moleculares
O termo Laboratório Nacional, embutido na sigla LNBio, não está ali por fantasia. Traduz o conceito de laboratório aberto para usuários do país inteiro, com instrumental e pessoal altamente sofisticado para estimular o desenvolvimento
de pesquisa e tecnologia para a indústria. Esta é a razão de ser do LNBio, que foi criado em dezembro de 2009, formalmente, mas já operava há dez anos dentro do Centro de Biologia Molecular e Estrutural (CeBiMe), em Campinas (SP), que
treinou dezenas de pesquisadores em biologia estrutural, na última década. Hoje, ele faz parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais (CNPEM), junto com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE). Cada um tem suas próprias linhas de
pesquisa. O LNLS, por ser uma facility, trabalha de acordo com a demanda dos usuários. A área de biotecnologia, por exemplo, tem duas linhas do LNLS, a MX1 e a MX2, utilizadas para análise de cristais de proteínas, obtidos da cristalização por
ressonância magnética. São estudos que baseiam provas de conceito de funcionamento de uma nova molécula, como os realizados pelo pesquisador
Kleber Franchini, que conseguiu demonstrar os mecanismos de ação de seu objeto de estudo, inibidores da enzima adenosina kinase (AK), na insuficiência cardíaca.
O médico já patenteou a molécula capaz de inibir a ação dessa enzima, que em condições adversas, como, por exemplo, infl amação, estimula a proliferação
das células do músculo liso, levando à hipertrofia do coração, típica da insufi ciência cardíaca. “Pense num sistema hidráulico. O coração funciona como uma bomba, conectada a um sistema de vasos elásticos, por meio da aorta. A cada minuto
cinco litros de sangue são bombeados pelo coração nesse sistema hidráulico. Evidentemente, lá na ponta encontra uma certa resistência. A hipertensão
arterial é uma doença que causa aumento nessa resistência. Não é uma doença do coração.” Franchini terá apoio da indústria para avançar nas pesquisas de viabilidade e estudos pré-clínicos.
Do laboratório à prática clínica A proposta de parceria do laboratório nacional para as empresas prevê várias modalidades, inclusive o investimento em novos equipamentos. A biologia estrutural é o denominador comum das pesquisas realizadas. Entre os programas próprios do LNBio se destacam as linhas de pesquisa
em doenças cardiovasculares, câncer, doenças negligenciadas, plantas e microrganismos. Mas as instalações estão disponíveis para quem tiver um projeto bem estruturado e souber utilizar as plataformas tecnológicas oferecidas. “O usuário
acadêmico não paga, mas deve mencionar em sua publicação que utilizou o laboratório”, lembra o diretor-geral do LNBio.
Não é de hoje que se sabe da necessidade de aproximar a pesquisa brasileira da indústria, para favorecer o desenvolvimento de medicamentos e tecnologia para a saúde. A médica e pesquisadora Regina Scivoletto, ex-professora de Farmacologia do Instituto de Biociências da Universidade de São Paulo e uma das principais
experts nessa área, destaca iniciativas que facilitaram a retomada atual das parcerias, como a Agência de Gestão de Inovação Farmacêutica (AGIF), criada em 2002 por empresários e exreitores de universidades para aproximar pesquisadores
e empresas e atender especificamente à demanda por inovações relacionadas à criação de fármacos. A pesquisa do Dr. Kleber Franchini foi o primeiro projeto abraçado pela AGIF, diz Regina Scivoletto, que dirigiu por um tempo a AGIF. A cientista trabalhou depois disso, um bom tempo, no governo federal, no departamento responsável por analisar pedidos de registro de medicamentos antes da criação da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa). Sabe tudo sobre os marcos regulatórios, protocolos, provas de conceito. “Por isso, depois de algum
tempo fora do governo, algumas empresas começaram a me chamar para que as ajudasse com o desenvolvimento e a questão de patentes”, diz ela, ao explicar que foi assim que se tornou consultora do laboratório Cristália, uma das empresas
mais atuantes na pesquisa em parceria com a universidade. Segundo Regina Scivoletto, a Cristália emprega 60 pesquisadores e mantém 30 projetos em parceria com universidades e facilidades públicas. No LNBio, por exemplo, financia com bolsas de pós-doutorado projetos que não têm prazo fixo de conclusão e publicação, o que
permite manter o sigilo até o registro eventual da descoberta. “Esse tipo de ambiente é que deve ser criado e multiplicado no país, pois ele empurra a pesquisa de ponta na direção do desenvolvimento de produtos.”
Para lembrar a importância do domínio da cadeia de desenvolvimento em fármacos, o farmacologista João Calixto repete, em suas palestras,que, antes de virar remédio, uma droga já foi pesquisa básica, na universidade ou na indústria.”O Brasil perdeu o bonde da primeira revolução da indústria farmacêutica, com foco na bioquímica,
quando foram desenvolvidos os primeiros anti-hipertensivos, tranquilizantes, antiarrítmicos, não entramos nessa época”, ele acrescenta à revista Pesquisa Médica. “Mas tem chance de voltar, agora, atuando em alguns nichos, como, por
exemplo, da inovação incremental de fármacos conhecidos e de produtos de biotecnologia.”