El País em 08/11/2021
No dia 8 de outubro, o presidente Jair Bolsonaro visitou o Projeto Sirius, em Campinas, no interior de São Paulo. Foi a segunda vez que percorreu a maior e mais complexa infraestrutura científica já construída no Brasil. O Sirius usa aceleradores de partículas para produzir um tipo especial de luz, chamada de luz síncrotron, que funciona como um super raio-X capaz de investigar a composição e a estrutura da matéria em suas mais variadas formas. O presidente parabenizou os cientistas que colocaram o nome do país na fronteira do conhecimento tecnológico. “Sou apaixonado por isso aqui”, disse. Sem máscara, tirou fotos e discursou. Saiu sem falar com a imprensa. A paixão de Bolsonaro pela ciência, contudo, evaporou rapidamente, em cerca de uma hora, o tempo que levou percorrendo a estrutura circular do laboratório. Neste mesmo dia, o Governo anunciou um corte de 600 milhões de reais em créditos suplementares previstos para o Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovações (MCTI). Foi o mais recente dos diversos ataques coordenados contra a área, que já asfixiam de bolsas de estudos até a operação do super laboratório.
O Sirius é um dos três aceleradores de partículas de quarta geração em funcionamento no mundo ―Suécia e França detém os outros. O Brasil saiu na frente na corrida por essa tecnologia. O equipamento poderá ter até 38 estações de pesquisa simultâneas nas mais diferentes áreas. Por exemplo, na agricultura, a luz de síncotron é capaz de revelar como átomos e moléculas de nutrientes ou mesmo de poluentes “caminham” e interagem com outras moléculas no solo. Conhecer melhor esses processos poderá contribuir para uma produção agrícola mais eficiente e menos agressiva ao meio ambiente.
Já na saúde, a luz síncrotron contribui no estudo de nanopartículas, o que pode levar à descoberta de novos métodos para o tratamento do câncer, por exemplo, para o combate a bactérias resistentes, vírus e muitas outras novas formas inovadoras de tratamento. De forma emergencial, o laboratório abriu em setembro do ano passado uma linha de pesquisa para atender projetos sobre o vírus SARS-CoV-2, causador da covid-19. Atualmente, conta com seis linhas de pesquisa abertas para a comunidade científica brasileira e internacional, do setor público ou da iniciativa privada. “É um equipamento pensado para o futuro, que não se tornará obsoleto rapidamente”, explica o físico Antonio José Roque da Silva, diretor geral do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização social que está à frente do Projeto Sirius.
O pesquisador explica que para o país extrair o melhor do potencial científico do Sirius é preciso um “sistema de ciência e tecnologia forte e bem estruturado, por meio da continuidade de investimentos ao longo dos anos”. Não é o que está acontecendo. “Temos observado uma tendência contrária, com interrupções de financiamento que são extremamente prejudiciais para o sistema”, afirma.
O recente corte nos créditos suplementares aprovados no Congresso para o MCTI atinge principalmente o repasse de recursos do Fundo Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (FNDCT), responsável por irrigar todo o sistema de ciência, tecnologia e inovação. O FNDCT foi contingenciado pelo Governo em 2020 para atingir a meta fiscal do ano, ficando com mais de 5 bilhões parados em caixa, dos quais 655,4 milhões iriam para o MCTI. Um projeto de lei do Congresso (PLN 16/21) abriu, então, um crédito suplementar de 690 milhões para as ciências, dinheiro que iria patrocinar diversos projetos e bolsas de estudo do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPQ). Mas o ministro da Economia, Paulo Guedes, tinha outros planos para o recurso. Ele pediu mudanças no projeto de lei, com o argumento de que o texto precisava ser aprovado com urgência para que se direcionasse verba para a produção de radiofármacos usados no diagnóstico de câncer, em falta devido aos cortes, e acabou distribuindo parte da verba para atender a demanda da agropecuária, saneamento básico, infraestrutura, dentre outras áreas, que também sofrem com o aperto no cinto. O Governo está fazendo diversos rearranjos para diminuir o furo no teto de gastos e conseguir bancar o novo programa Auxílio Brasil, que substituirá em ano de eleição o Bolsa Família. E também distribuindo recursos para ajudar os caminhoneiros diante da alta dos preços dos combustíveis.
Ao final, restaram apenas 89,9 milhões de reais do recurso complementar para o MCTI, ou seja, 13% do valor aprovado pelo Congresso. Desse montante, só 7,2 milhões são para investimento em pesquisa e inovação. O restante foi reservado para a Comissão Nacional de Energia Nuclear (CNEN), sendo a maioria parte, 63 milhões de reais, voltado para atender a crise na produção de radiofármacos. O argumento de “urgência” usado por Guedes foi interpretado como “chantagem” para justificar a aprovação das mudanças pedidas no texto do projeto. “Falta dinheiro para o Instituto de Pesquisas Energéticas e Nucleares porque o Governo cortou”, disse o deputado Arlindo Chinaglia (PT-SP) no dia 7 de outubro, um dia antes do anúncio dos cortes pelo Governo.
A manobra pegou a todos da área científica de surpresa. “O impacto psicológico é grande. Depois de anos de dificuldades, havia uma expectativa de melhora na situação”, completou físico Luiz Davidovich, presidente da Academia Brasileira de Ciências (ABC). Desde 2015, com a crise econômica acirrada pelo impeachment de Dilma Rousseff, o setor enfrenta uma redução drástica de seu orçamento. A pasta perdeu quase 60% de seus recursos desde então, corte agravado pela pandemia do coronavírus. Neste ano, o Orçamento do MCTI é de 2,7 bilhões para investimento em pesquisa, o que “é insuficiente” para atender os projetos atuais, explicou o ministro da pasta, Marcos Pontes em apresentação na Comissão de Ciência e Tecnologia da Câmara, em abril deste ano. Pontes acabou sendo culpado por Guedes pela crise e chamado de “burro” por ter usado mal os recursos da pasta, o que ele negou.
Blitzkrieg contra a ciência brasileira
A esperança dos cientistas para salvar o ano está na liberação de cerca de 2 bilhões do FNDCT, que foram contingenciados durante a crise sanitária. Mas o Governo vem travando uma guerra para manter controle sobre os recursos. O Congresso chegou a aprovar uma lei no começo do ano proibindo o contingenciamento do dinheiro do fundo. Bolsonaro vetou. O Congresso revidou, derrubando o veto. Não satisfeito, o Ministério da Economia transformou a liberação de 50% dos recursos em crédito reembolsável, uma espécie de empréstimo para empresas, mudando arbitrariamente a função do recurso, que deveria ser utilizado no fomento à pesquisa. A verba restante, de cerca de 2 bilhões de reais, continua congelada.
Davidovich afirma que o Governo Bolsonaro “está construindo uma teia de projetos, leis e emendas constitucionais” com o objetivo de minar os recursos destinados à ciência. “Essas ações acontecem com tal velocidade que não sabemos se a lei está sendo cumprida. É um blitzkrieg contra a ciência brasileira”, afirma, citando a tática militar alemã de guerra-relâmpago utilizada na Segunda Guerra Mundial, que consiste em fazer ataques rápidos e de surpresa, evitando assim que o inimigo consiga organizar sua defesa. “É ridículo o desgaste que está sendo feito por uma quantia irrisória”, afirma.
O presidente da ABC lembra que o recurso em disputa daria cerca de 500 milhões de dólares, um valor irrisório perto dos 100 bilhões que os EUA aplicaram na National Science Foundation na pandemia. “Europa e a China também estão investindo bilhões. Não estamos nem na segunda divisão. O Brasil é time de amadores, destinado a ficar com uma economia baseada em commodity, como ferro e soja, cujo preço é regulado no exterior”, lamenta.
Se não houver mudança, segundo Davidovich, os investimentos do país na ciência voltarão ao patamar de 2009. Essa informação tem como base um levantamento feito pela economista Fernanda De Negri, do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), que mostra que depois de mais de uma década de um ciclo relativamente consistente, os investimentos em C&T caíram cerca de 37% entre 2013 e 2020, chegando em 2020 a um nível inferior ao observado em 2009. “Espero que o Congresso se sensibilize da situação ou o próprio TCU [Tribunal de Contas da União] faça uma análise do que está acontecendo”, afirma. Ele alerta que o que está em jogo são anos de investimentos na construção do sistema de ciência e tecnologia do país. “Construir o sistema de C&T é um longo processo, mas destruir é rápido e reconstruir é difícil”, afirma.
Ciência em “modo de sobrevivência”
O Sirius é um dos projetos que aguardam a liberação do dinheiro parado no fundo. “Sem os recursos [do FNDCT], entramos em modo de sobrevivência”, afirma Silva. Isso porque o laboratório ainda está sem saber qual seu Orçamento para 2021. Os recursos extras que viriam do FNDCT serviriam de um alento para dar continuidade ao projeto que ainda está em fase de construção. Os recursos previstos inicialmente para o Sirius na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LOA) eram de 92 milhões de reais, mas ao longo do ano esse valor foi reduzido para apenas 27 milhões, o que corresponde a um corte de 71%, valor insuficiente para arcar com os custos de pessoal do projeto. “Sabemos que o Ministério da Ciência tem empenhado esforços para buscar uma solução alternativa. Entretanto, caso essa recomposição orçamentária não ocorra, seja via FNDCT, seja via Orçamento do tesouro, o projeto estará em uma situação muito difícil. Isso ocorrerá também para a operação regular do CNPEM, que teve também cortes de 32%, já em um Orçamento extremamente comprimido pelos cortes ao longo dos últimos anos”, afirma Silva.
A reportagem consultou o MCTI sobre como estão as negociações para tentar reverter o corte de investimentos, inclusive sobre a situação do Sirius, porém, não recebeu resposta.
Por enquanto, o Brasil continua “à frente de outros países” na exploração da luz de síncotron. Mas não há garantias que vai se manter assim. “Precisamos de ideias, de pesquisadores”, lembra o diretor do laboratório Sirius. De acordo com Silva, há um assédio internacional pelos cientistas brasileiros. “Temos regularmente perda de pessoal aqui”, diz. São profissionais que acabam atraídos por melhores perspectivas de trabalho de longo prazo no exterior. “Formar um pesquisador leva décadas. São 10, 12 anos para uma pessoa começar a contribuir de forma substancial”, diz. E os cortes nas bolsas de fomento à pesquisa criam um hiato nessa formação. O resultado será visto lá na frente. “Se alguém acha que liberar cerca de 3 bilhões para a ciência é muito caro, pergunto qual o preço do desmonte da área de C&T para o Brasil?”, diz o pesquisador.