Jornal da Ciência, em 31/01/2011
“O Brasil está propondo à Argentina uma inserção internacional, calcada na geração e uso intensivo do conhecimento em CT&I, que inclua a América do Sul e a América Latina”
José Monserrat Filho é chefe, demissionário, da Assessoria de Assuntos Internacionais do Ministério de Ciência e Tecnologia. Artigo enviado pelo autor ao “JC e-mail”:
“Com a Argentina queremos uma sociedade na área da tecnologia e inovação”. Esta declaração da presidente Dilma Rousseff, mais a proposta de um protagonismo conjunto para favorecer também as Américas do Sul e Latina, configuram o objetivo estratégico mais ambicioso de seu primeiro encontro com a presidente Cristina Kirchner, em Buenos Aires, nesta segunda-feira (31/1).
As ideias de Dilma, publicadas ontem, com destaque, por três grandes jornais argentinos, não mereceram, no entanto, a mesma atenção pela imprensa brasileira em geral.
Dilma reconheceu algo que precisaria ser dito: “Até agora temos tido uma política que chamamos de conteúdo nacional”. E anunciou a novidade: “Estamos pensando numa política de conteúdo regional, conjunta, com Argentina. Estamos elaborando uma agenda pela qual Argentina e Brasil, como países com grandes recursos alimentícios e também energéticos, possam aumentar a agregação de valor e a geração de empregos na região. Com Argentina queremos uma sociedade na área de tecnologia e inovação e uma sociedade para o uso da tecnologia nuclear com fins pacíficos”.
Ou seja, sai o enfoque tradicional do “juntos, mas cada um por si” e entra a visão de uma cooperação bem mais articulada e avançada, com agenda e ações conjuntas para “aumentar a agregação de valor” em recursos comuns essenciais, visando inclusive “à geração de empregos na região”, o que configura o compromisso dos dois países de trabalharem unidos em benefício também dos demais países da região.
Não por acaso, Dilma enfatizou “a ideia fundamental de uma relação especial e estratégica com Argentina”. Neste sentido, “Brasil e Argentina têm responsabilidades diante do conjunto da América Latina, para fazer com que nossa região tenha cada vez mais presença e ação no cenário internacional. E podem fazê-lo e o farão de modo mais eficaz na medida em que nossas economias se articulem de forma mais estreita, se desenvolvam e criem laços em que ambos os povos ganhem com a proximidade em matéria de desenvolvimento econômico, de desenvolvimento tecnológico e de melhoria das condições de vida dos povos brasileiro e argentino”.
Dilma lembrou que a aliança Brasil-Argentina permite “maior presença nos órgãos de articulação internacional”. Citou o G-20 e o G-77, grupo dos países em desenvolvimento – hoje presidido pela Argentina -, que já reúne 131 dos 192 países das Nações Unidas. “O fato de que, no G-77, a Argentina tenha a posição de liderança, facilitará também a defesa dos interesses dos países do Sul”, disse Dilma. E após recordar que “não tivemos presença” na Conferência de Copenhague sobre Mudança do Clima, explicou que “ter presença significa, hoje, expressar de forma mais efetiva uma parte da visão sobre o desenvolvimento sustentável que impera nesta região”.
A presidente brasileira salientou ainda que “a relação bilateral também é muito importante para o Mercosul e a Unasul [União das Nações Sul-Americanas, criada em 2008]”. A seu ver, desde o Governo Lula, o Brasil assumiu o compromisso, que ela promete aprofundar, de que “o destino do Brasil, de seu desenvolvimento, e a melhoria das condições de vida dos brasileiros devem estar ligados e compartilhados com o resto de nossa América”.
Como ela justifica isso? Assim: “Este é um mundo globalizado. Deixou de ser basicamente um mundo de um ou dois polos, no máximo. É um mundo mais multilateral e exige a formação de blocos regionais”. E mais: “Por isso, a Argentina é o primeiro país que visito. Não estou desvirtuando nenhum outro país [da América do Sul ou Latina], até porque para os outros países é absolutamente importante que Brasil e Argentina estejam juntos”.
Neste contexto, é natural que, entre os 15 documentos a serem firmados nesta visita de Dilma à Buenos Aires, esteja, por exemplo, o Memorando de Entendimento que estabelece a cooperação em luz síncrotron entre Brasil e Argentina, aberto à participação de todos os países da América Latina. O memorando estará sendo assinado pelo ministro brasileiro da C&T, Aloizio Mercadante, e por seu colega argentino Lino Baranão. É um acordo sui generis. Por ele, a parceria Brasil-Argentina em área avançada do CT&I se dispõe a abrir iguais oportunidades a todos os países do continente.
Trata-se de regionalizar ao máximo o Laboratório Nacional de Luz Síncotron (LNLS/MCT), com sede em Campinas – inclusive sua nova fonte de luz muito mais poderosa, cujo projeto já pronto para ser construído nos próximos anos -, colocando todo este patrimônio científico e tecnológico, a partir do eixo Brasil-Argentina, a serviço do desenvolvimento latino-americano.
Nosso Ministério da Ciência e Tecnologia (MCT) tem trabalhado sistematicamente nesta direção. Presidindo o Grupo de CT&I do Conselho de Cultura, Educação, Ciência, Tecnologia e Inovação da Unasul, o Brasil, em ação conjunta entre o Itamaraty e o MCT, marcou o ano de 2010, com três iniciativas valiosas: lançou a primeira publicação da Unasul no setor, com dados básicos sobre os Sistemas Nacionais de Ciência, Tecnologia e Inovação de todos os países membros da organização, reunindo num volume informações sobre as instituições que deverão trabalhar juntas; promoveu o primeiro seminário sobre a definição de políticas comuns de CT&I; e organizou o primeiro encontro de Academias de Ciências da América do Sul, com o apoio da Academia Brasileira de Ciências. Essas realizações concorreram para enriquecer e fortalecer o plano de ação aprovado para ser concretizado neste ano. Duas áreas foram eleitas como prioridades maiores: energias renováveis e biotecnologia, em especial a envolvida com a saúde humana.
Acrescente-se que o MCT prestou total apoio ao Programa Latino-Americano de Física, lançado em dezembro de 2010 pela Sociedade Brasileira de Física, com ampla programação que procura mobilizar os pesquisadores, professores e estudantes de física de todo o continente e aumentar sua base de atuação tanto no campo do ensino e da pesquisa, como no campo da indústria.
Cabe trazer aqui o que escreveu o renomado economista argentino, Aldo Ferrer, em seu mais recente livro, “O futuro de nosso passado”, publicado em 2010 pelo Fundo de Cultura Econômica: “O desenvolvimento da América Latina e do resto do mundo subindustrializado seguirá dependendo essencialmente da qualidade das políticas nacionais e de estratégias de inserção internacional compatíveis com o desenvolvimento de sua capacidade de gerir o conhecimento.”
O Brasil está propondo à Argentina uma inserção internacional, calcada na geração e uso intensivo do conhecimento em CT&I, que inclua a América do Sul e a América Latina.
Não é tarefa fácil, nem é improviso de política imediatista e demagógica. É meta que se projeta no horizonte como pensamento talhado de grandeza, lucidez e responsabilidade social. Mas é um caminho a construir desde já, trabalhando o aqui e agora com olhar inteligente no futuro.