Revista Pesquisa FAPESP em outubro de 2016
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O professor Gonçalo Pereira, do Instituto de Biologia (IB), preserva a conta do restaurante da Fundação de Desenvolvimento da Unicamp (Funcamp), com o verso riscado por ele em 2011, como um símbolo da capacidade da universidade de conectar sua produção científica à demanda pública e privada por inovações em energia. O papel em questão conceitua o roteiro de avanços técnicos necessários para a produção comercial do etanol de segunda geração, o E2G, a partir de biomassa de novas variedades de cana-de-açúcar com maior conteúdo energético, assim como do bagaço e da palha da cana.
Pesquisas realizadas nos laboratórios da Unicamp buscam aperfeiçoar a biomassa utilizada no E2G. A partir de 1975, especialistas da universidade participaram do Programa Nacional do Álcool, o Proálcool, iniciativa do governo federal que visava diminuir a dependência do petróleo e incentivar o desenvolvimento de motores a etanol. Hoje, pesquisadores da instituição desenvolvem novas variedades de cana, como é o caso de Anete Pereira de Souza, do Centro de Biologia Molecular e Engenharia Genética (CBMeg), além de tecnologias de mecanização da lavoura, de pré-tratamento da biomassa, da hidrólise, fermentação e destilação do E2G. Os estudos abrangem o uso do etanol na indústria química e na investigação de motores mais eficientes. O esforço para o avanço energético do país vale para outros biocombustíveis como o butanol, o biodiesel e o bioquerosene. Além disso, também se investe no hidrogênio veicular e em tecnologias para ampliar a vida útil e elevar a produção de poços petrolíferos.
“Em 1973 e 1979, o mundo viveu duas crises na oferta de petróleo. Mesmo jovem, a Unicamp respondeu à demanda do país por desenvolvimento científico e tecnológico e geração de conhecimento na área de energia”, diz Rubens Maciel Filho, professor da Faculdade de Engenharia Química (FEQ). A Unicamp é hoje um reduto de desenvolvimento de combustíveis de fontes renováveis e referência em sustentabilidade energética.
A posição da universidade nessa área tem participação no interesse que levou os empresários Bernardo Gradin e Alan Hiltner à mesa do refeitório da Funcamp em 2011, para uma conversa com o professor Gonçalo Pereira. O resultado foi a fundação da GranBio, empresa brasileira voltada à produção do E2G. Outro exemplo atual dessa parceria são as pesquisas realizadas no Laboratório de Genômica e Expressão (LGE) do IB. Lá é gerada a base científica para apoiar o desenvolvimento na empresa de um novo tipo de cana com maior densidade energética, a cana-energia, com potencial de produção entre 250 e 300 toneladas (t) por hectare, enquanto a tradicional gera cerca de 100 t.
Entre os principais desafios para a viabilidade da produção do E2G está o desenvolvimento de leveduras produtoras de enzimas capazes de processar a xilose – tipo de açúcar presente na hemicelulose – contida na biomassa e, desse modo, disponibilizar maior quantidade de açúcares à produção do etanol. Pesquisas realizadas no final da última década pelo LGE sobre o genoma da leveduraSaccharomyces cerevisiae, chamada de Pedra 2, permitiram ao centro de pesquisas BioCelere, spin-off da GranBio, chegar a uma levedura geneticamente modificada. A primeira usina de E2G do país, a Bioflex 1, em Alagoas, foi inaugurada em 2014 e teve sua produção interrompida para ajustes da tecnologia. Está prevista para voltar a produzir no final de 2016.
Além das pesquisas de Gonçalo Pereira, há numerosas contribuições na Unicamp para o desenvolvimento do E2G, como resultado de um convênio entre a FEQ e a Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA) com o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE), órgão federal de pesquisa localizado em Campinas. Um dos trabalhos sob a coordenação de Rubens Maciel é um processo de pré-tratamento hidrotérmico da biomassa de cana. A ideia é reduzir a quantidade de água utilizada e tornar o processo mais sustentável. Em outras frentes de trabalho, busca-se desenvolver novos coquetéis enzimáticos para melhorar a hidrólise e os procedimentos de fermentação.
Butanol do bragaço
Rubens Maciel também coordena um grupo que pesquisa butanol – um tipo de álcool que pode ter uso como combustível – e outro que procura desenvolver bioquerosene para aviação. “O butanol possui características mais próximas da gasolina do que o etanol”, explica. No momento, o foco é o aprimoramento de um processo de fermentação a vácuo mais eficiente em relação à fermentação convencional e o uso do bagaço da cana para produção de butanol mais competitivo. Sobre o bioquerosene para aviação, Maciel diz que foi desenvolvido na Unicamp um processo flexível, compatível com matérias-primas de diferentes regiões do país ou do exterior. Entre os insumos possíveis estão óleos de soja e de palma, gordura animal, óleo de açúcar ou etanol. Segundo o pesquisador, o bioquerosene desperta interesse global, uma vez que a aviação comercial internacional assumiu o compromisso de cortar suas emissões de carbono pela metade até 2050, tendo como base os índices de 2005.
A Unicamp está inserida nas pesquisas do biodiesel no Brasil desde 1978, quando o então vice-presidente, Aureliano Chaves, convocou um grupo de pesquisadores para criar o Pró-Óleo. Especialista em catálise de óleos vegetais, Ulf Friedrich Schuchardt, professor do Instituto de Química (IQ), comprovou a viabilidade do bio-óleo, um combustível altamente oxigenado obtido a partir de materiais celulósicos – na ocasião, o bagaço de cana. Em 1982, o pesquisador empenhou-se por desenvolver o diesel a partir de óleos vegetais. “Por falta de constância de recursos, o Brasil perdeu o pioneirismo mundial do biodiesel, mas a retomada dos investimentos nos últimos anos foi importante”, diz o agora aposentado Schuchardt.
No Núcleo Interdisciplinar de Planejamento Energético (Nipe), coordenado pela engenheira bioquímica Telma Teixeira Franco, pesquisadores da FEQ e da FEM avaliam o potencial energético de microalgas marinhas como fonte de biodiesel. Trabalhos realizados pela equipe do Laboratório de Engenharia Bioquímica, Biorrefino e Produtos de Origem Renovável (Lebbpor), da FEQ, demonstraram que o biodiesel feito a partir da microalga atende às principais especificações da Agência Nacional de Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP). Segundo Telma, que coordenou os estudos, o combustível ainda não tem viabilidade comercial. Espera-se maior eficiência energética a partir de altas concentrações de microalgas alimentadas com resíduos agroindustriais.
O Nipe foi criado em 1992 com o objetivo de organizar e apoiar as pesquisas de energia da Unicamp. Em 1998 estabeleceu um convênio com a Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) para desenvolver pesquisas na área de regulação do setor elétrico onde trabalharam pesquisadores do Instituto de Física (IFGW), do Instituto de Economia (IE) e da FEM. Em 2002, um projeto de produção por pirólise (decomposição por calor) de bio-óleo combustível destinado à geração de energia elétrica e para uso na indústria química deu origem a empresa Bioware. No cardápio de pesquisa atual do Nipe, um dos destaques é o Projeto Resíduos, que faz um inventário do potencial energético de lixões e aterros sanitários para a produção de bioenergia e biocombustível.
Hidrogênio no motor
O Nipe agora se prepara para abrigar o Laboratório de Hidrogênio, o LH2. O laboratório foi criado em 1975 também com o objetivo de buscar alternativas à gasolina. Ainda nos anos 1970, adaptou dois veículos para hidrogênio, uma camionete Toyota Bandeirante e uma Kombi, o primeiro originalmente com motor a diesel e o segundo, a gasolina. Nos anos 1980 o preço do petróleo baixou, e com ele o interesse por combustíveis alternativos e os recursos para pesquisa no setor. Ennio Peres da Silva, coordenador do LH2, relata que a manutenção das atividades do laboratório veio da produção de hidrogênio ultrapurificado para uso na análise cromatográfica e na produção de semicondutores e fibras ópticas, em parceria com o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento da Telebras, o antecessor da atual Fundação Centro de Pesquisa e Desenvolvimento de Telecomunicações (CPqD).
Na década seguinte, com o ressurgimento do interesse global pelos veículos a hidrogênio, um grupo multidisciplinar formado por pesquisadores do IFGW, da FEM e da Faculdade de Engenharia Elétrica (FEEC) foi formado para pensar o futuro do carro a hidrogênio. Hoje, o desenvolvimento dos veículos a hidrogênio está basicamente nas mãos da indústria automobilística. Por enquanto, o carro a hidrogênio custa o dobro do elétrico, que por sua vez é quase o dobro de um carro médio comum a gasolina. “A produção em escala nivelará os preços”, prevê Ennio Peres. Para o pesquisador, o hidrogênio é o futuro. “Um veículo a hidrogênio tem autonomia de 500 quilômetros e é abastecido em pouco mais de três minutos. Os elétricos estão longe de chegar a esse desempenho.” Segundo Peres, o LH2 poderá ter um papel importante desenvolvendo tecnologias para a produção de hidrogênio em postos de abastecimento, como o reformador, um equipamento que obtém hidrogênio a partir do etanol, da gasolina ou da glicerina, um subproduto do biodiesel.
A Unicamp também desenvolve estudos sobre o petróleo, a principal fonte de energia para veículos no mundo atual. A principal interlocução da universidade com a indústria petrolífera ocorre por meio do Centro de Estudos de Petróleo (Cepetro), criado em 1987 e abrigado na FEM como resultado de uma parceria com a Petrobras. “Até então a Unicamp tinha uma presença pequena e isolada no setor. Hoje somos uma das principais universidades do país nessa área. Temos projetos em parceria com a maioria das grandes empresas de petróleo que atuam em exploração e produção no país e participamos de várias redes de pesquisa da Petrobras”, diz Denis José Schiozer, diretor do centro.
Entre os projetos do Cepetro estão os relacionados com o gerenciamento de reservatórios e o desenvolvimento de técnicas capazes de aumentar a vida útil dos campos de petróleo. Em 1990, a parceria entre a Petrobras e a Unicamp resultou no primeiro programa no mundo de mestrado em geoengenharia de reservatórios de petróleo, unindo experiências de geólogos e engenheiros. Na mesma década, desenvolveu linhas de pesquisa sobre gerenciamento de reservatórios e sobre explotação, a técnica de perfurar, estimular e bombear o petróleo, área em que o Cepetro se tornou referência mundial.