Pesquisadores da USP de São Carlos combinam técnicas de ponta e demonstram que molécula alvo de medicamentos tem comportamento diferente do que era previsto na teoria.
Um grupo de pesquisadores da USP de São Carlos acaba de apresentar resultados de estudos que apontam para um novo entendimento do processo de maturação e a interferência de inibidores sobre a proteína Mpro, essencial para o ciclo de vida do vírus Sars-CoV-2 e alvo de vários esforços para desenvolvimento de medicamentos para tratamento da Covid-19. As descobertas foram descritas no artigo “An in-solution snapshot of SARS-COV-2 main protease maturation process and inhibition”, publicado na renomada Revista Nature Communications. (https://doi.org/10.1038/s41467-023-37035-5).
O nome Mpro, vem do inglês Protease Principal (Main protease) – dada sua importância para o vírus. Atualmente, dois remédios, já disponíveis no mercado, interagem com essa molécula para tratar COVID. Apesar disso, alguns processos da atividade dessa proteína ainda não eram totalmente conhecidos. Esse foi o objeto de estudo dos usuários do Sirius.
Para atuar no ciclo de vida do vírus Sars-CoV-2, a Mpro passa por uma série de modificações até chegar em sua forma final. Parte deste processo já havia sido revelado pelo grupo de São Carlos, comandado pelo Prof. Glaucius Oliva.
Líder desse grupo, o pesquisador André Godoy, foi um dos primeiros usuários externos do Sirius, a fonte de luz sincrotron de última geração do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), organização supervisionada pelo Ministério de Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI).
Em setembro de 2020 ele levou cerca de 200 cristais com proteínas do vírus Sars-CoV-2 para serem analisados na linha de luz, de nome Manacá, projetada para experimentos de cristalografia com difração de raios X. “A linha de luz Manacá foi a primeira estação de pesquisa a ser aberta no Sirius, como resultado de uma força-tarefa esforço do CNPEM para apoiar pesquisas que buscassem elucidar mecanismos moleculares relacionadas à Covid-19. Este trabalho é uma das publicações que resultaram desses esforços”, explica Harry Westfahl, diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS).
Os resultados desse primeiro trabalho, publicados em uma edição especial do Journal of Molecular Biology, já revelavam detalhes relevantes do processo de maturação da principal protease do vírus SARS-CoV-2, entendido até então como uma sequência de etapas bem definidas, mas ainda não totalmente compreendido.
“Naquele primeiro estudo, com os dados de cristalografia obtidos no Sirius, nós visualizamos e compreendemos os três últimos passos da maturação da Mpro, necessários para que essa proteína atinja sua forma final. Contudo, naquela ocasião não conseguimos compreender o primeiro passo da maturação porque ele é muito rápido”, explica André Godoy, pesquisador da USP.
As pesquisas com a protease Mpro prosseguiram e foram aprofundadas, inclusive com colaboração internacional e financiamento do National Institute of Health (NIH,) agência de fomento dos Estados Unido. Também apoiam essa pesquisa: a Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e o fundo inglês Welcome Trust.
Para compreender o processo que leva a proteína da sua forma inativa à ativa, os pesquisadores combinaram técnicas de última geração como espectrometria de massa nativa (native MS), que permite medir peso molecular e identificar seus componentes, a criomicroscopia eletrônica, que produz imagens tridimensionais das moléculas congeladas, além da cristalografia por difração de raios X, que revela a estrutura com resolução atômica.
Até então, os modelos de estudo da Mpro supunham que era necessária a clivagem N-terminal para que essa proteína atingisse seu formato de dímero – importante para sua atividade no ciclo de vida viral. “Nós começamos esse estudo pensando que essa reação seria o primeiro passo da maturação. Com análises realizadas no Sirius, por meio de cristalografia, demonstramos que a proteína consegue atingir seu estado final da maturação, mesmo sem processamento na sua região N terminal. O resultado foi uma surpresa. Além disso, fomos capazes de elucidar uma proteína pequena, com menos de 70 kDa pela técnica de criomicroscopia, e detalhar a interação com o N-terminal em solução”, explica Godoy.
Ainda no Sirius, os pesquisadores analisaram a interação da Mpro com dois diferentes inibidores – um deles já em uso em fármacos contra a COVID-19. Os resultados demonstraram como as drogas funcionam de maneira distinta no nível molecular. O inibidor não covalente impede a dimerização da proteína e, assim, impacta diretamente na maturação da molécula e sua atividade. Já o inibidor covalente induz a conversão de monômeros em dímeros, mesmo com terminais N intactos. “Explicar como a Mpro interage com seus inibidores ocorre impacta diretamente como a gente desenvolve drogas para a COVID-19, mirando nesta proteína”, pontua Gabriela Noske, doutoranda da USP São Carlos e primeira autora do trabalho.
O grupo da USP pretende prosseguir no uso de técnicas combinadas para aprofundar estudos de outros inibidores para outros vírus, considerando o risco de enfrentarmos novas epidemias ou pandemias no futuro. Além disso, atuam no desenvolvimento de novos inibidores para SARS-COV-2 no âmbito do Consórcio COVID Moonshot – um projeto colaborativo de ciência aberta iniciado em março de 2020 com o objetivo de desenvolver um medicamento antiviral oral não patenteado para combater o vírus SARS-CoV-2.
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