Revista Pesquisa FAPESP, em Abril/17
Cultura em ambiente tridimensional permite observar estruturas desconhecidas e ampliar compreensão sobre o desenvolvimento cerebral
Se as células do seu nariz possuem a mesma informação genética das dos seus dedos, por que você não sente o cheiro destas páginas no simples ato de folheá-las? Foi com questionamentos similares, sobre como células com o mesmo material genético assumem formas e executam funções tão diferentes, que a bioquímica irano-americana Mina J. Bissell, do Laboratório Nacional Lawrence Berkeley, nos Estados Unidos, resolveu “pensar fora da célula” há mais de três décadas. Em vez de estudar os genes para desvendar os mistérios do câncer, concentrou-se na matriz extracelular, formada por elementos fluidos e fibrosos que fornecem as condições para o crescimento e a diferenciação das células. Após uma série de descobertas que validaram e ampliaram a empreitada, Bissell e sua equipe obtiveram imagens inéditas que confirmam a existência de filamentos de proteína que conectam diretamente o núcleo da célula e o ambiente extracelular. “Ver isso pela primeira vez é animador”, disse por telefone à Pesquisa FAPESP.
A razão da animação é que a descoberta de uma conexão direta do núcleo com o microambiente da célula pode levar a novos entendimentos sobre as influências do meio externo no comportamento celular. A caracterização dessas estruturas foi apresentada em janeiro na revista Journal of Cell Science.
Localizado na porção mais interna das células e, acreditava-se, isolado fisicamente do mundo externo, o núcleo guarda os genes e se comunica com o organismo por vias químicas – moléculas atravessam as barreiras das membranas e chegam ao material nuclear ou ativam cadeias de reações químicas que influenciam seu funcionamento.
“Enquanto estamos aqui conversando, nossos 70 trilhões de células estão em um constante diálogo com o que as cerca – a matriz extracelular –, trocando sinais entre o núcleo e o microambiente”, contou Bissell, referindo-se ao que envolve a célula no organismo vivo. Já se sabia que essa conversa entre núcleo e matriz se dá por meio de interações entre moléculas, que podem reprogramar a célula ou mudar seu comportamento. A novidade está na conexão física.
Os pesquisadores – entre eles, o brasileiro Alexandre Bruni-Cardoso, do Instituto de Química da Universidade de São Paulo (IQ-USP) – conseguiram ver esses filamentos porque combinaram diferentes técnicas de microscopia de luz e eletrônica e mais de 15 mil imagens de diferentes pontos de células mamárias, registrando em detalhes o núcleo celular permeado por túneis. Dentro deles, filamentos de proteínas se estendem até a membrana da célula, ancorada na matriz extracelular. “Esses cabos do citoesqueleto conectam a parte externa da célula ao núcleo”, diz Bruni-Cardoso, que em 2014 encerrou um estágio de pós-douto-rado no laboratório de Bissell.
Para caracterizar em detalhes os filamentos, eles também lançaram mão de uma técnica ainda pouco explorada, mas que permite investigar as relações da célula com o meio que a cerca: a cultura tridimensional (3D) de células.
Conexão direta
Em uma placa de Petri, o recipiente achatado utilizado para culturas de microrganismos e de células, o cientista pode não conseguir avançar muito no cultivo das células além de sua proliferação. Isso porque, nessa estrutura bidimensional, elas formam uma camada plana como a própria placa – e significativamente diferente do que ocorre no organismo. “A vida é em 3D e também assim é a biologia. Para reproduzir a arquitetura das células, cuja importância fica ainda mais evidente diante da descoberta de que há ligações físicas entre a informação genética no núcleo celular e o microambiente, é preciso mais”, defende Bruni-Cardoso.
Essa conexão de proteínas que formam filamentos e ligam a parte de fora da célula à de dentro já havia sido proposta por Bissell na década de 1980, quando ela cunhou o termo “reciprocidade dinâmica”: a célula é influenciada por sinais externos e, por sua vez, afeta o meio à sua volta. Uma das pioneiras no cultivo 3D de células, ela defendia que a forma que o tecido adquire (sua arquitetura) também é fonte de informação e um componente do microambiente.
Na pesquisa em colaboração com Bissell, Bruni-Cardoso trabalhou com células da glândula mamária humana em cultivo 3D. Em vez de dispostas sobre uma placa, elas crescem dentro de um gel rico em laminina, uma molécula de adesão celular presente no microambiente do organismo vivo. Por estarem suspensas e envoltas por estruturas que mimetizam o microambiente celular, as células são capazes de se dividir, organizando-se em uma estrutura que se assemelha muito aos ácinos, unidades funcionais das glândulas mamárias responsáveis pela produção do leite durante a lactação.
É observando o que ocorre dentro desse gel, ocupado por células organizadas à semelhança do tecido vivo, que os pesquisadores pretendem compreender o papel dos filamentos nas interações entre o núcleo celular e o microambiente.
A cultura 3D deve muito aos trabalhos que antecederam a descoberta dos filamentos no Laboratório Nacional Lawrence Berkeley. Em meados dos anos 1980, Mina Bissell fez com que células mamárias em cultura se diferenciassem e produzissem leite. “Olhamos para o funcionamento da glândula mamária e toda a harmonia que há entre a forma e a função e pensamos: ‘Que estrutura linda! Como as células se organizam dessa forma para produzir o leite e fazer com que jorre até os mamilos, de onde o bebê irá sugá-lo?’”, lembrou.
Os pesquisadores, então, documentaram com um microscópio eletrônico a glândula mamária de uma fêmea de camundongo no início da gravidez. Estava tudo lá: durante a lactação, o leite é produzido pelas células dos alvéolos e se acumula nas cavidades dessas estruturas e dentro dos ductos galactóforos – toda uma arquitetura dedicada à produção e distribuição dessa secreção nutritiva.
Bissell e sua equipe tentaram cultivar as células da glândula mamária em placas de Petri. Depositadas sobre a superfície plana, elas são incapazes de assumir a morfologia observada in vivo e, mesmo recebendo os hormônios que induzem a produção do leite, em três dias perdem a função. A pesquisadora experimentou, então, cultivar as células em um material viscoso que impedia seu contato com a superfície. Para conseguir isso, acrescentou à cultura aquilo que observara nas fotografias e que, até aquele momento, se acreditava ser apenas um suporte da estrutura celular: a matriz. “Em aproximadamente quatro dias, pudemos repetir o bordão de uma propaganda governamental então famosa nos Estados Unidos: ‘Yes, we have milk’ [sim, temos leite].”
Dimensões in vitro
Ponto para a tridimensionalidade do ambiente em que as células foram cultivadas. “Olhando para a histologia da glândula mamária se vê claramente que há muita coisa do lado de fora e que a matriz extracelular compreende boa parte do órgão”, diz Bruni-Cardoso. Numa cultura bidimensional, praticamente 50% da superfície da célula está em contato com o plástico ou vidro da placa de Petri e a outra metade com o meio de cultura –- o líquido com os nutrientes e todos os elementos de que ela precisa para proliferar e ficar viva. “Já no modelo 3D, a maior parte da superfície de uma célula está em contato com outras células e com a matriz”, explica o pesquisador.
Foi a busca por modelos que simulem de forma mais próxima a situação in vivo que levou ao desenvolvimento de organoides obtidos a partir de células reprogramadas de pacientes com diferentes distúrbios cerebrais. As pesquisas com os chamados minicérebros criados em laboratório, também suspensos em uma matriz rica em laminina, estimularam uma série de avanços na compreensão de diferentes aspectos do funcionamento do cérebro humano – entre eles, a recente descrição minuciosa da composição química e da distribuição de micronutrientes e minerais durante o desenvolvimento fetal. O trabalho, publicado em fevereiro na revista PeerJ, foi realizado no Instituto D’Or de Pesquisa e Ensino (Idor) em colaboração com os institutos de Ciências Biomédicas e de Física da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), em Campinas.
Antes, os minicérebros ganharam destaque por terem contribuído à compreensão da relação entre a infecção pelo vírus zika e a microcefalia (ver Pesquisa FAPESP nº 252). Cientistas do Idor e da UFRJ infectaram essas estruturas com o vírus e atestaram que ele foi capaz de infectar e matar células-tronco neurais, provocando alterações drásticas no desenvolvimento dos organoides cerebrais e comprovando a relação direta entre a infecção e a malformação.
Até o cultivo dos minicérebros, a investigação de nutrientes cerebrais era feita em tecido cerebral humano post-mortem. Com a cultura 3D dos organoides cerebrais mimetizando diferentes estágios da formação do cérebro, foi possível compreender a dinâmica dos nutrientes durante o desenvolvimento neurológico. Os resultados mostram que a concentração e a distribuição de micronutrientes estão diretamente relacionadas ao estágio de desenvolvimento. Os autores as descreveram em dois momentos distintos: um inicial, de intensa proliferação celular, durante os primeiros 30 dias, e um segundo, quando as células começam a se tornar neurônios e se organizam em camadas (45º dia).
“Trata-se de um exemplo de organização tridimensional que só é observado no tecido humano e em nenhum outro tipo de cultura que não seja o organoide”, diz Stevens Rehen, pesquisador do Instituto de Ciências Biomédicas da UFRJ e do Idor. A combinação desse modelo de cultura com a radiação síncrotron, que permite descrever micronutrientes até os átomos que os compõem, possibilitou compreender em profundidade importantes aspectos do desenvolvimento e caracterizar melhor o processo de formação desses organoides cerebrais, já que eles possuem conexões que obedecem a anatomia natural.
Os nutrientes observados pelos pesquisadores são essenciais para a formação adequada do cérebro. A falta de alguns deles durante o desenvolvimento pré-natal está relacionada a déficits de memória e distúrbios psiquiátricos, como a esquizofrenia. De acordo com Rehen, o objetivo agora é utilizar os minicérebros para compreender sua dinâmica em casos de distúrbios cujas alterações de nutrientes já foram descritas.
Para Mina Bissell, trata-se de um mundo novo a ser desbravado. “Sequenciamos o genoma humano, sabemos muito sobre os genes, sua linguagem e seu alfabeto, mas ainda conhecemos muito pouco ou quase nada da forma – a não ser que forma e função interagem de maneira dinâmica e recíproca. Uma não prescinde da outra e nós, cientistas, não podemos considerar uma sem a outra.”
Ela cita um poema do irlandês William Butler Yeats (1865-1939) para ilustrar o raciocínio que a levou a estabelecer o método importante para compreensão da vida em sua unidade mais elementar. “Ó corpo embalado à musica / Ó vislumbre cativante/ Como separar da dança o dançante?”, diz o poema. “Enquanto um dançarino dança, ele é o dançarino e a própria dança; no instante em que ele para, não temos nenhum dos dois. Assim acontece com a forma e a função. Assim é a vida desde sua parte mais básica.”
Artigos científicos
JORGENS, D. M. et al. Deep nuclear invaginations are linked to cytoskeletal filaments – integrated bioimaging of epithelial cells in 3D culture. Journal of Cell Science. 130, n. 1, p. 177-89. 1º jan. 2017.
SARTORE, R. C. et al. Trace elements during primordial plexiform network formation in human cerebral organoids. PeerJ. 8 fev. 2017.