Folha de São Paulo, 04/06/2019
Clóvis Rossi
O corte de verbas (ou contingenciamento, se você preferir) para educação e pesquisa não apenas levou às ruas as multidões que se viram duas vezes no mês passado, mas provocou também um êxodo da inteligência brasileira.
É o que conta a publicação digital Ozy em sua edição de segunda-feira (3), sob o título algo alarmista ‘cientistas brasileiras de alto nível fogem dos cortes de Bolsonaro – e se dirigem aos EUA”.
Os números usados na reportagem são de fato assustadores: em abril, o número de vistos americanos para brasileiros com habilidades extraordinárias (eufemismo para acadêmicos top) aumentou 159% em relação a 2018 e 408% na comparação com 2017.
A comunidade acadêmica dá sinais de inquietação, conforme se pode deduzir por duas iniciativas. Uma, da Unicamp (Universidade de Campinas), que começou a mapear a crescente diáspora de cientistas para os Estados Unidos, em projeto financiado pela própria embaixada americana em Brasília.
Outro movimento foi da embaixada brasileira em Londres, que promoveu workshop sobre a diáspora da Ciência, Tecnologia e Inovação no Reino Unido. Objetivo: tentar atrair de volta para o Brasil essa massa de cérebros em fuga.
Shanna Hanbury, jornalista e cientista social brasileira, autora da reportagem, ouviu, entre outros, Antônio José Rodrigues da Silva, diretor do Laboratório Nacional de Luz Síncroton – a mais sofisticada instalação científica do país.
Ele admitiu temer perdas no seu time, como consequência da pressão provocada pelos cortes. Fez uma comparação que dá perfeitamente a medida das perdas eventuais: ‘O conhecimento humano é o mais valioso ativo da ciência. É como um time de futebol perder Pelé. Não são habilidades facilmente substituíveis”.
À Folha Roque da Silva confirmou os temores, por meio da assessoria de imprensa. Informou que o centro que dirige ‘não dispõe de dados que apontem para um movimento excepcional de saída de cérebros devido à crise econômica/política no país”, mas acrescentou: ‘Existe hoje uma preocupação quanto à possibilidade de que isto aconteça, já que pesquisadores e engenheiros ligados ao nosso projeto são procurados com frequência por instituições científicas estrangeiras. Uma eventual fuga de cérebros traria sérios prejuízos ao projeto, tanto no âmbito técnico quanto financeiro”.
A Ozy deixou claro, no texto, que há periódicas ondas de emigração de cérebros, citando alguns marcos: 1964, na esteira do golpe militar que promoveu caça às bruxas nas universidades; 1972, com o ‘crash’ da Bolsa de Valores; e os últimos seis anos de uma crise, que, segundo a publicação, levou um milhão de brasileiros a tentar a vida no exterior.
Tenho exemplo concreto na família: meu filho, especialista em tecnologia da informação, vivia angustiado por aqui até que, em 2018, conseguiu emprego no Reino Unido (Cambridge, mais exatamente) e lá está, feliz da vida, com a mulher e a filha.
O caso dele, portanto, não tem a ver com a ascensão de Bolsonaro, mas a reportagem da Ozy diz que ‘os movimentos de Bolsonaro representam o golpe mais agudo nessa série de tribulações e estão levando para fora do Brasil pesquisadores de alto nível mais rápido do que nunca antes”.
PS – A Ozy se apresenta, usando palavras de um fã, como aquela publicação que ‘pessoas descoladas leem para serem brilhantes e pessoas brilhantes leem para serem descoladas”. Pretensiosa, portanto, mas com boas reportagens.