Jornal da Ciência, 18/09/2014
Grandes instalações científicas tornam-se cada vez mais empreendimentos multinacionais, pois são poucos os países, no atual clima econômico, que podem financiar a construção e sustentar sozinhos a operação de um laboratório que requer investimentos bilionários.
No auge de seu poderio econômico, os Estados Unidos construíram grandes laboratórios nacionais: Lawrence Berkeley e Livermore, Stanford Linear Accelerator, Brookhaven National Laboratory, Fermilab, Oak Ridge, para citar alguns. O primeiro sintoma dos novos tempos foi o encerramento do projeto do Superconducting Super Collider. Sua construção, iniciada no Texas nos anos 80, foi interrompida pelo Congresso americano em 1993, depois de um investimento de 2 bilhões de dólares. Tivesse ido adiante, o bóson de Higgs poderia ter sido descoberto há muitos anos.
O CERN foi o primeiro grande laboratório internacional, surgido no clima de reconciliação europeu do pós-guerra. Sua motivação foi tanto científica quanto política. Naquele momento, até mais política do que científica. Sua história de sucesso é bem conhecida, culminando na recente descoberta do bóson de Higgs. O CERN apontou o caminho para outras iniciativas europeias igualmente importantes, como o European Molecular Biology Laboratory – EMBL, European Synchrotron Radiation Facility – ESRF e European Southern Observatory – ESO (em discussão e buscando parceiros fora da Europa, inclusive o Brasil).
O International Thermonuclear Experimental Reactor – ITER, sediado na França, é uma tentativa de construir um laboratório global, resultado da associação de mais de trinta países. Esse projeto tem tido uma história turbulenta. A expectativa, em 2014, é que atinja seus objetivos em 2027, com 11 anos de atraso em relação ao cronograma original, a um custo de US$ 50 bilhões, cerca de 10 vezes mais do que o orçamento original (editorial da revista Nature, 23/07/2014). Isto, se países como os Estados Unidos não se retirarem do projeto no meio do caminho, assustados com os custos crescentes e o vasto comprometimento financeiro com uma única tecnologia de fusão.
Hoje, a China é um país com recursos para bancar sozinho um grande laboratório. Cientistas chineses anunciaram recentemente planos para colocar em operação em 2028 uma fábrica de bósons de Higgs de 52 km de circunferência. Essa seria uma versão anabolizada do antigo LEP (Large Electron Positron Collider) do CERN, que levaria, no futuro, também a um colisor hadrônico. Lembremos que o Large Hadron Collider do CERN, sucessor do LEP, tem meros 27 km de circunferência. O orçamento do projeto chinês, ainda não aprovado pelo governo, seria de US$ 3 bilhões. Cifra que deve ser tomada com um grande grão de sal. Afinal, trata-se da China, que não peca por excessiva transparência. Contudo, a capacidade financeira do país para tal empreendimento é indubitável. Do ponto de vista técnico, o conhecimento que o país não possui, ele pode facilmente adquirir pelo mundo afora.
O Brasil possui dois projetos bilionários de laboratórios científicos: o Sirius, que substituirá o anel de armazenamento de elétrons do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), já com quase vinte anos de idade, e o Reator Multipropósito que dará ao país uma importante capacitação em engenharia nuclear. Ambos são projetos ambiciosos técnica e financeiramente, que podem levar a pesquisa e a inovação brasileiras a patamares mais elevados.
É difícil ver como esses projetos possam ser internacionalizados, por mais desejável que seja do ponto de vista de uma maior abertura da ciência brasileira para o mundo. Não há, na América do Sul, as condições políticas e científicas de uma Europa pós Segunda Guerra, bem como é difícil imaginar que países desenvolvidos se interessem por uma associação com nossos projetos (ou que sua participação interesse ao Brasil). Por outro lado, é relativamente reduzida a participação de outros estados da Federação nos Laboratórios do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM): o próprio LNLS, o Laboratório Nacional de Biociências, o de Nanotecnologia e o Centro de Tecnologia do Bioetanol.
São Paulo produz aproximadamente a metade dos artigos científicos brasileiros, sendo também a Unidade da Federação na qual tanto o governo estadual, quanto o setor privado local, mais investem em Ciência, Tecnologia e Inovação. O outro lado da moeda, naturalmente, é que o restante do Brasil produz a outra metade da ciência brasileira. De algum modo, isto deveria estar melhor refletido em um grande laboratório nacional e seus projetos.
O Conselho de Administração do CNPEM possui poucos membros de fora do estado de São Paulo. De acordo com o Relatório Anual 2013 (RA 2013) do CNPEM, o Contrato de Gestão não inclui um único indicador “geo-referenciado”, que permita ver com clareza a distribuição nacional e internacional dos usuários. Os indicadores pouco mudaram desde que foram formulados em minha gestão, em caráter experimental, há cerca de 15 anos. O CNPEM reconhece que “permanece o desafio de ampliar a participação relativa de pesquisadores das demais regiões brasileiras para a realização de Propostas de Pesquisa nas instalações abertas do CNPEM” (RA 2013). É bom lembrar, entretanto, como diz a canção, que “é preciso dois para dançar o tango”. Nem toda a dificuldade pode ser debitada na conta do CNPEM. Mas, cabe ao Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação, ao Conselho de Administração e aos gestores do Centro diagnosticar com clareza as razões do problema/desafio e buscar construir incentivos e indicadores adequados. O Centro de Gestão e Estudos Estratégicos (CGEE), por exemplo, poderia ser levado a considerar esta questão.
As iniciativas da FAPESP de apoio ao Sirius e aos outros laboratórios do CNPEM têm sido importantíssimas. Recentemente, a Fundação buscou a FINEP para lançarem juntas um Edital para empresas interessadas em desenvolver tecnologias para o projeto Sirius (https://www.fapesp.br/8922). Entretanto, ele requer, como exigido da FAPESP, que a empresa “tenha sede no Estado de São Paulo e realize a pesquisa no Estado de São Paulo.” Ou seja, o impacto deste Edital, fora de São Paulo será nulo. Esperemos que os investimentos da EMBRAPII no CNPEM, também recentemente anunciados, sejam aproveitados por empresas de fora do estado de São Paulo.
O Brasil perdeu o medo de projetos científicos bilionários. Isto é muito bom e temos de torcer para que continue assim. Mas, é preciso ainda encontrar o caminho para fazer de nossos laboratórios nacionais, financiados por toda a Federação, verdadeiros Laboratórios Nacionais. Se nações conseguem colaborar na construção de grandes instalações científicas internacionais e seus pesquisadores delas fazer uso intenso, mesmo que em solo alheio, como fazer para que outras Unidades da Federação participem mais ativamente no CNPEM e no projeto do Reator? Será uma missão impossível? Espero que não, mas não sei responder. Suspeito, entretanto, que a questão mereça maior estudo. Afinal, astrônomos brasileiros e físicos de altas energias participam de forma mais proporcional às competência regionais na pesquisa em laboratórios internacionais.
Cylon Gonçalves da Silva – Ex-diretor do LNLS e ex-diretor geral da ABTLuS, professor emérito da UNICAMP, pesquisador emérito do CNPq, membro da Academia Brasileira de Ciências.