Direto da Ciência, 31 de agosto/2017
Alguns equívocos do comentarista econômico da GloboNews ao falar sobre os recursos necessários para a pesquisa no Brasil
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MAURÍCIO TUFFANI,
Editor
É necessário desfazer uma interpretação equivocada e recorrente sobre a realidade do investimento em ciência e tecnologia nos países desenvolvidos. De acordo com essa visão, praticamente toda a pesquisa nas universidades e centros de pesquisa nesses países seria financiada por recursos privados. Um exemplo dessa compreensão errônea foi um comentário do jornalista Carlos Sardenberg, no Jornal das Dez, da GloboNews, na quarta-feira (29), após a reportagem “Corte de 44% no orçamento do governo pode interromper pesquisas científicas”.
Concordo plenamente com a primeira parte da fala do comentarista econômico, que transcrevo a seguir. (Confira a partir de 2min no vídeo da GloboNews.)
As universidades federais e os centros de pesquisa têm que passar por uma reforma estrutural, por um modo diferente de ver as coisas, e tratar de procurar: um, mais eficiência em seu funcionamento e, segundo e mais importante, buscar outras fontes de financiamento que não o tesouro.
Na sequência, ele acrescenta a interpretação enganosa.
Como, por exemplo, as universidades americanas, as universidades europeias, que vão buscar recursos no setor privado, vendem pesquisas, obtêm financiamento privado para pesquisa e etcetera. Com se faz, por exemplo, em Israel, que é um centro tecnológico muito avançado e que seus institutos vivem de dinheiro privado doado ou financiado de algum modo.”
Uma coisa é uma coisa
É verdade que nos países mais ricos e em alguns emergentes a maior parte do investimento na atividade conhecida como pesquisa e desenvolvimento (P&D) vem da iniciativa privada, como mostra o relatório da Unesco de março deste ano “Global Investments in R&D” (P&D em inglês). Na Europa, por exemplo, em mais da metade dos países, pelo menos 40% dos recursos para P&D são da iniciativa privada, como mostra o seguinte quadro desse estudo (pág. 5).
O relatório indica para o Brasil 40% de participação do setor privado em investimentos em P&D em 2014 (pág. 4). No caso de Israel, país apontado como exemplo por Sardenberg, o documento indica cerca de 37% de participação da iniciativa privada, e de pouco menos de 80% para Japão, China e Coreia do Sul (pág. 6).*
Assim como os “Main Science and Technology Indicators” da Organização Para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) – que indicam 37,05% de participação privada em investimentos nacionais em P&D em 2013 como dado mais recente de Israel –**, esses indicadores econômicos do Instituto para Estatística da Unesco estão entre as referências mais confiáveis sobre os investimentos a que Sardenberg se refere.
Pesquisas de empresas
No entanto, esses dados não englobam apenas os recursos para a pesquisa desenvolvida por universidades e instituições de pesquisa. Eles incluem também, e predominantemente em alguns países, os investimentos para a P&D realizada pelas próprias instituições privadas – atividade que aqui no no Brasil ainda é muito restrita – e que, aliás, para isso contratam pesquisadores, inclusive com doutorado, pós-doutorado e outras titulações.
No caso dos Estados Unidos, por exemplo, cerca de 61% do investimento em P&D em 2014 foi da iniciativa privada. No entanto, essa atividade envolveu também a pesquisa realizada por pelo chamado complexo industrial-militar. E, diga-se de passagem, para gerar produtos que, no final das contas, acabarão sendo comprados pelo governo federal.
Dinheiro público
Outro exemplo de grande investimento privado nos EUA em P&D é o da indústria farmacêutica. No entanto, grande parte da pesquisa em medicina e saúde desenvolvida em universidades privadas nos Estados Unidos é custeada a fundo perdido pelos Institutos Nacionais de Saúde (NIH), do governo federal, sem o qual não teriam sido possíveis grandes iniciativas, como o Projeto Genoma Humano durante as duas décadas finais do século 20.
Por falar nas universidades particulares dos EUA, é importante deixar claro que os recursos obtidos por essas instituições por meio de cobrança de mensalidades de alunos não são nem de longe suficientes para bancar pesquisas. Nem mesmo com doações de ex-alunos milionários seria possível para universidades como Harvard, Yale, Princeton, Stanford e outras custearem suas pesquisas.
Pesquisa básica
Outro aspecto importante da atividade de P&D financiada por instituições privadas é que ela é essencialmente voltada para aplicações tecnológicas e não envolve uma parte muito grande da pesquisa básica. Essa é uma atividade que abrange desde trabalhos que dispensam laboratórios, como na matemática pura, a estudos que dependem de estruturas de grande porte, como fazendas experimentais, centros espaciais e outras, inclusive o Grande Colisor de Hádrons (LHC), na Suíça, que custou R$ 10,3 bilhões e levou mais de 20 anos para ser construído.
No Brasil, entre as grandes iniciativas de C&T ameaçadas pelo corte de recursos está a maior obra da ciência do país, o Projeto Sirius, do Centro Nacional de Pesquisas em Energia e Materiais (CNPEM). A própria existência dessa instituição também está em risco. É o que destacou a reportagem “Crise ameaça maior obra da ciência brasileira”, também de Herton Escobar, no Estadão, que afirmou:
O prejuízo disso seria tremendo para a ciência brasileira. O CNPEM é um conglomerado de quatro importantes laboratórios nacionais — de Biociências (LNBio), Bioenergia (CTBE), Nanotecnologia (LNNano) e Luz Síncrotron (LNLS) —, e todos eles funcionam como “facilities”. Ou seja, são laboratórios dotados de equipamentos caríssimos, de alta tecnologia, que servem a toda a comunidade científica brasileira, e também à indústria nacional, para diversas aplicações científicas e tecnológicas. Centenas de projetos e milhares de cientistas seriam prejudicados com a paralisação.
P&D não é tudo
Como bem esclareceu a economista Maria Margareth Negrão Pinto em 2001, em sua dissertação de mestrado na Universidade de Brasília,
É de extrema importância o estabelecimento da diferença entre indicadores de C&T e indicadores de P&D (…). C&T engloba, além de P&D, todas as demais atividades que, embora não possam ser classificadas como pesquisa, são imprescindíveis para a sua realização. Pode-se dizer assim que C&T = P&D+ACT, sendo C&T = Ciência e Tecnologia, P&D = Pesquisa e Desenvolvimento e ACT = Atividades Científicas e Técnicas.*
Ainda assim…
Na verdade, mesmo nesses países onde a iniciativa privada já responde por grande parte dos dispêndios financeiros em P&D, tem crescido nos últimos anos a convicção da necessidade de aumentar a participação do poder público nesses investimentos, como mostra o recente “Science|Business Report”, publicado em junho pelo programa Horizonte 2020 da União Europeia. Referindo-se à P&D como pesquisa e inovação (P&I), o documento afirma (pág. 4):
A P&I financiada pelo governo também promove para a Europa vários objetivos desejáveis, embora menos quantificáveis. Permite mudanças estruturais para uma economia e uma sociedade mais intensivas em conhecimento, aumentando a competitividade internacional e o crescimento da produtividade e gerando empregos de alta qualidade. Isso promove padrões de vida mais elevados e contribui para o progresso de sociedades democráticas e abertas. Promove a cooperação internacional para reunir recursos e para conectar e alinhar a ação em direção aos objetivos da UE. Ela melhora a resiliência global e a sustentabilidade, fornecendo novas ferramentas para proteger o meio ambiente, melhorar a saúde e promover o bem-estar social no próprio país e no exterior.
Voltando o filme
Não vou aqui alongar a conversa com detalhes sobre o fato já amplamente divulgado de que justamente momentos de crise países desenvolvidos têm aumentado seus investimentos em P&D.
Vale destacar ainda outro equívoco relacionado à interpretação de Sardenberg. Sua fala aconteceu em um quadro, dirigido pela âncora Renata Loprete e com a participação de outro comentarista econômico, o jornalista João Borges. Logo após descrever o cenário geral referente às contas do governo federal para este ano, com o previsível déficit primário da ordem de R$ 159 bilhões, e imediatamente antes de dizer o que já foi mostrado acima, Sardenberg afirmou (confira a partir de 1min40s no mesmo vídeo da GloboNews):
Esses centros de pesquisa, as universidades federais, essa reação deles de pedir mais dinheiro pra Brasília não vai dar em nada porque não tem dinheiro. O dinheiro “tá” acabando. “Tá” acabando porque está indo todo para essa parte obrigatória do orçamento que é benefícios, previdência e pessoal.
Economia burra…
Não há dúvida de que o dinheiro está acabando e não dá para cobrir tudo. No entanto, é preciso deixar claro que o recurso solicitado para C&T não é “mais dinheiro”, mas cerca de 44% do que já havia sido previsto para o Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC) para 2017. E que a dotação total do MCTIC corresponde a apenas 0,72% da Lei Orçamentária para toda a União, já descontadas as transferências para estados e municípios, as operações de crédito e o refinanciamento da dívida pública.
É por essa razão de escala que o próprio presidente da Financiadora de Estudos e Projetos (Finep), o economista Marcos Cintra, afirmou que “o contingenciamento está sendo feito da forma mais burra possível”, acrescentando que “ciência e tecnologia são o substrato de qualquer desenvolvimento econômico”, como informou a reportagem “Cortar recursos da ciência é economia ‘burra’, diz presidente da Finep”, de Herton Escobar, no Estadão.
… e criminosa
No que diz respeito ao MCTIC, “mais dinheiro” significa pouco menos de R$ 2,2 bilhões, os tais 44% congelados. No entanto, para impedir a autorização legislativa para a instauração de processo por corrupção passiva contra o presidente Michel Temer, o governo distribuiu R$ 15 bilhões em programas e emendas em meio à barganha para compra de votos de deputados.
No final das contas, como eu já havia dito neste site, não passam de conversa fiada todas as alegações governamentais sobre dificuldades do atual momento da economia para desbloquear o mínimo necessário de recursos para evitar o caos nas instituições de pesquisa.
Em tempo: já que a Organização Mundial do Comércio (OMC) condenou os incentivos fiscais para desoneração de alguns setores da indústria, por que o governo não começa a aplicar recursos para P&D para essas empresas?
* Parágrafo acrescentado às 22h, omitido no texto original for falha de edição.
** Aposto entre travessões acrescentado em 1º/set às 3h59.
** Citado por Claudemir Gonçalves Liberal em “Indicadores de ciência e tecnologia: conceitos e elementos históricos” (Ciência & Opinião. Curitiba, v. 2, n. 1/2, jan./dez. 2005, p. 139).