Revista Pesquisa FAPESP em Dezembro de 2013
Legenda: (1)Única fonte de luz síncrotron do país, o LNLS, em Campinas, atrai pesquisadores brasileiros e estrangeiros interessados em experimentos ligados às estruturas atômicas de materiais (2)Colocação do porta-amostras para experimento remoto a ser realizado na linha SAXS1, de espalhamento de raios X a baixos ângulos. Nesse tipo de experimento pode-se utilizar o equipamento a distância e realizar análises via internet (3)Porta-amostras para execução de cristalografia de macromoléculas na linha de luz MX2, do LNLS.
A difusão do discurso da inovação no Brasil nos anos 1990 e o ordenamento jurídico-institucional destinado a transformá-la num eixo central da política nacional de ciência e tecnologia que tomou corpo no alvorecer do século XXI são menos fruto da iniciativa do Estado combinada a demandas do setor produtivo e muito mais o resultado do esforço direto dos cientistas brasileiros nesse sentido. Seu trabalho pela inclusão da inovação na política de ciência e tecnologia do país serviu ao fim e ao cabo para legitimar socialmente a própria ciência – suas instituições, discursos e práticas – e fortalecê-la.
Adotar essa visão implica admitir uma força política de dimensões insuspeitadas dos cientistas brasileiros enquanto grupo organizado da sociedade civil que, aliás, viria sendo exercida desde o começo da institucionalização da ciência no país, ainda na primeira metade do século XX. E mais: implica perceber que esse poder tem rostos definidos. Personaliza-se nas lideranças científicas que a cada tempo se fazem os interlocutores fundamentais da burocracia do Estado no traçado dos percursos da institucionalização e do fortalecimento da atividade científica.
Tão provocativas proposições aparecem em Veredas da mudança na ciência brasileira: discurso, institucionalização e práticas no cenário contemporâneo, de Maria Caramez Carlotto, 30 anos, coeditado pela Editora 34, Associação Filosófica Sciencia Studia e FAPESP. Recém-lançado, o livro se originou da dissertação de mestrado da jovem autora no campo da sociologia da ciência, feito entre 2006 e 2008 na Universidade de São Paulo (USP), e surpreende não só pelas conclusões corajosas a que chega quanto pela densidade do estudo, sustentado simultaneamente por consistente reflexão teórica e por uma pesquisa empírica de abrangência e profundidade pouco comuns nesse estágio de formação.
O lugar privilegiado a partir do qual Maria Carlotto decidiu esmiuçar a mudança institucional da ciência brasileira pós-anos 1980 foi o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), com implantação iniciada em 1986 e inaugurado em Campinas em 1997. Para cumprir esse intento, tratou de entrevistar uma dúzia de lideranças do laboratório, entre as quais têm presença destacada integrantes do que a autora chama de “o grupo da Unicamp”, seguindo denominação comum no próprio meio científico.
Às entrevistas, ela somou o envio de um extenso questionário aos 2.480 pesquisadores de diferentes instituições nacionais de pesquisa que, entre 1997 e março de 2008, trabalharam em Campinas com a fonte de luz do laboratório Intitulado “Ciência e tecnologia no Brasil: os usuários do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron”, o questionário foi aplicado nos meses de março e abril de 2008 em parceria com o próprio LNLS.
Maria recebeu de volta as respostas de 211 pesquisadores, ou seja, obteve um retorno de 8,5%, taxa considerada razoável nesse tipo de trabalho. Com esses depoimentos, conseguiu construir um retrato sem precedentes dessa elite de pesquisadores brasileiros. Somado isso às informações das lideranças sobre como se foi conseguindo, passo a passo, formular e construir o LNLS, assegurar apoios, vencer resistências, afastar opositores ou mesmo aliados indesejáveis em alguma esfera do poder político, tem-se um precioso raio-x sociológico do modus operandi de um microcosmo dessa instituição que é a ciência brasileira, em sua fronteira mais avançada.
Alternados esses resultados empíricos com a visão histórica dos movimentos-chave do processo de institucionalização da ciência no país, e explicitadas as matrizes internacionais das inflexões nas políticas nacionais de ciência e tecnologia, Maria Carlotto ilumina a força de um grupo social certamente despercebida nas análises mais convencionais da sociedade civil brasileira.
Importação e naturalização
Maria Caramez Carlotto apresenta uma síntese do contexto internacional da elaboração do conceito de inovação nas políticas estatais de ciência e tecnologia antes de detalhar a nova política brasileira para o setor que se estabelece no governo Fernando Henrique Cardoso. Disposta a mostrar como os novos discursos sobre a ciência transitam “da promoção do conhecimento científico ao incentivo à inovação tecnológica”, ela afirma na introdução do segundo capítulo, baseada na análise de documentos, leis e programas, que o governo brasileiro, sobretudo a partir de 2001, “vem implementando uma nova política de ciência e tecnologia marcada por uma forte ênfase no incentivo à transformação do conhecimento científico em inovação tecnológica como estratégia para aumentar a competitividade das empresas brasileiras e impulsionar o crescimento econômico do país” (p. 59).
A ideia era seguir o exemplo das nações “bem-sucedidas” em relação às suas políticas de inovação e comercialização do conhecimento científico, “especialmente daquele produzido no regime disciplinar por universidades e laboratórios governamentais e financiado com recursos públicos” (p. 60). Esse diagnóstico, segundo a autora, é explicitado na abertura do Livro branco de ciência, tecnologia e inovação, síntese programática da nova política estruturada com base nos debates da Segunda Conferência Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação, de 2001.
Na busca por contextualizar as decisões do governo brasileiro, Maria Carlotto passa pelo esforço dos países centrais para superar nos anos 1980 a separação mais ou menos rígida entre processo de produção e processo de comercialização do conhecimento científico. Um dos pilares centrais das políticas estatais de ciência do pós-guerra, essa separação tem em suas bases conceituais o famoso relatório Science, the endless frontier, elaborado por Vannevar Bush, do Massachusetts Institute of Technology (MIT) e apresentado ao presidente Franklin Roosevelt em 1945. Maria Carlotto lembra que o relatório “tentava justificar por que o governo dos Estados Unidos deveria manter um alto nível de investimento público em pesquisa científica, terminado o esforço de guerra”. E a maior razão, segundo Bush, era que “a ciência – antes mesmo do que a tecnologia – seria essencial para que um país pudesse gerar inovações tecnológicas e, com isso, competir internacionalmente no plano econômico”, prossegue ela (p. 63).
O Brasil bebeu sofregamente dessa fonte nos anos 1950. E seguiu de perto a política que o relatório de Bush inspirou, posteriormente chamada de modelo linear de inovação, e que pressupunha os investimentos do Estado concentrados na “pesquisa básica” e na “formação da mão de obra” científica, enquanto o setor privado deveria se responsabilizar pela comercialização do conhecimento produzido, conforme Maria Carlotto observa. Se a segunda parte não saiu conforme o figurino, culpe-se as especificidades do capitalismo brasileiro.
Mas qual o acontecimento na cena internacional, no começo da década de 1980, que tanto irá afetar a política brasileira de ciência e tecnologia nas duas décadas seguintes? Trata-se da percepção de que está emergindo uma nova economia ou a Economia do Conhecimento. E a pesquisadora vale-se de vários autores para abordar tanto uma dimensão teórica quanto um lado mais prático dessa economia que, digamos, incorpora o conhecimento científico na própria estrutura orgânica do capital e reconhece os impactos da inovação sobre o crescimento econômico.
Ela recorre, por exemplo, ao sociólogo espanhol Manuel Castells, num artigo já de 2002, “O novo paradigma do desenvolvimento e suas instituições”, publicado na revista Desenvolvimento em Debate, organizada por Ana Célia Castro e editada pelo BNDES: “(…) hoje em dia, as forças produtivas não se medem em toneladas de aço nem em quilowatts, como diriam Henry Ford ou Lênin, mas na capacidade inovadora de gerar valor agregado através do conhecimento e da informação. Esse modelo de crescimento econômico baseado no conhecimento é o mesmo em toda parte, como foi a industrialização no paradigma do desenvolvimento” (p. 71, citação da p. 398 do artigo). E observa que a dimensão mais simples e mais operacional dessa nova economia é “o reconhecimento de que o crescimento econômico explica-se, antes de tudo, pela eficiência dos processos nacionais de inovação, de modo que os setores mais dinâmicos da economia seriam aqueles ligados às novas tecnologias, particularmente a bio e a nanotecnologia” (p. 71).
Maria Carlotto passa em revista a construção dos sistemas nacionais de inovação (SNIs) e seus pressupostos teóricos. Aborda o trabalho de agências como a OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico) na promoção da ciência enquanto atividade econômica. Comenta que a inovação, conforme relatório de 2005 da OCDE, “é a implementação de um produto (bem ou serviço) novo ou significativamente melhorado, ou um processo, ou um novo método de marketing, ou um novo método organizacional nas práticas de negócios, na organização do local de trabalho ou nas relações externas (da empresa). Nesse sentido, as atividades inovadoras são etapas científicas, tecnológicas, organizacionais, financeiras e comerciais que conduzem, ou visam a conduzir, à implementação de inovações” (p. 74-75).
Nessa forma de definir a inovação, segundo a autora, há “uma dupla aproximação entre economia e ciência. Por um lado, o progresso tecnocientífico ‘invade’ a economia na medida em que a mudança tecnológica transforma-se no principal fator explicativo do crescimento econômico, o que torna a inovação objeto privilegiado da ação estatal. Por outro, a economia ‘invade’ a atividade científica e tecnológica quando se torna base para a criação de um instrumental capaz de medir o desempenho da inovação em termos de eficiência, possibilitando a sua gestão em termos econômicos” (p. 75).
Cumprido esse percurso, a pesquisadora detalha “a emergência da inovação como foco da política científica brasileira”. Segundo ela, “o processo de reconfiguração da política brasileira de ciência e tecnologia, a partir de 2001, incorporou, praticamente sem mediação, o ‘modelo’ de política de inovação” dos países centrais. “Nesse sentido, a Nova Política Nacional de Ciência, Tecnologia e Inovação confere um caráter prioritário à consolidação do sistema nacional de inovação, ao aumento da eficiência da inovação e à reforma do regime disciplinar/estatal de produção e reprodução do conhecimento, com especial ênfase ao incentivo à propriedade intelectual” (p. 97).
Essa política é uma construção do segundo mandato de Fernando Henrique Cardoso, desde que o embaixador Ronaldo Sardenberg assume o Ministério da Ciência e Tecnologia (1999 a 2002). E o primeiro e fundamental instrumento de tal política é o projeto “Diretrizes estratégicas para a ciência, a tecnologia e a inovação”, não por acaso posto sob a direção do físico Cylon Gonçalves da Silva, professor da Unicamp e coordenador da implantação do LNLS entre 1986 e 1997, (ver Pesquisa FAPESP, edição 129). A propósito, Cylon observou em entrevista concedida a Maria Carlotto que até onde sabe a palavra inovação apareceu pela primeira vez num documento oficial do governo federal no Livro verde de ciência e tecnologia, de 2001, que orientou o conteúdo das discussões da Segunda Conferência, ambos, registre-se, coordenados por ele (p. 97).
Mas é a Lei da Inovação “a peça mais importante da reforma jurídico-institucional do sistema científico nacional em curso no país”. Proposta na Segunda Conferência e depois colocada em consulta pública pelo MCT, a lei só seria aprovada em dezembro de 2004, no segundo ano do governo de Luís Inácio Lula da Silva. “É possível dizer, portanto, que o ‘discurso da inovação’ é um dos pontos de continuidade entre os dois governos – formados por partidos cujos ideários são não só distintos mas, em muitos pontos, opostos –, o que torna a compreensão da dinâmica da sua produção social um problema ainda mais interessante”, comenta a autora (p. 108).
A reflexão da pesquisadora segue sustentada pelos dados de investimento de P&D no país e pelo consumo de tecnologia, pelas informações sobre inovação nas empresas brasileiras, até a conclusão de que “não existe uma demanda consistente, por parte das empresas nacionais, para que a ciência brasileira se envolva em processos de comercialização de conhecimento”. Surge daí a pergunta inevitável: “Como explicar, então, a emergência da nova política de ciência e tecnologia que tem, como foco central, o incentivo à inovação tecnológica? Em outras palavras, a quem interessa a reforma institucional da ciência atualmente em curso no país?” (p. 127).
Depois do exame de novos dados, inclusive a constatação de que entre 2000 e 2010 “o número de pesquisadores trabalhando em tempo integral em empresas, ao contrário do esperado, decaiu” de 44.183 para 41.317 pessoas, enquanto no ensino superior, no mesmo período, esse número passou de 77.465 para 188 mil, Maria Carlotto esboça um começo de resposta: “Parece evidente (…) que o regime estatal/disciplinar – representado, em larga escala, pelas universidades de pesquisa do país – foi o grande favorecido pelo processo de reorientação da política científica nacional no sentido da valorização da inovação” (p. 129). O que fortalece a hipótese central de seu trabalho, ou seja, que no Brasil “o discurso da inovação e as alterações políticas a ele correspondentes podem ser mais bem compreendidos se vistos como parte da estratégia de cientistas engajados na institucionalização do regime disciplinar/estatal brasileiro para legitimar o investimento público em ciência no contexto pós-ditadura” (p. 129).
Os cientistas engajados
A partir desse ponto, o que se oferece ao leitor é uma história fascinante de como o LNLS atualiza e repõe padrões tradicionais de institucionalização da ciência nacional. Da Escola de Minas de Ouro Preto, institutos agronômicos e institutos de pesquisa bacteriológica e sanitária do final do século XIX, passando pela USP em 1934 e pela Unicamp em 1965, até praticamente o presente, o que a autora de Veredas da mudança na ciência brasileira vai flagrar como um dos padrões predominantes de institucionalização da ciência no Brasil é “a negociação direta com o Estado, feita por homens de prestígio e boas relações pessoais, chamados, por vezes, de heróis institucionalizadores da ciência” (p. 142).
É assim que surgem nas páginas seguintes, ainda nos anos 1950, os físicos José Leite Lopes e Cesar Lattes em meio às negociações com o almirante Álvaro Alberto de Santiago Dantas, presidente do recém-criado CNPq, para a construção de um Sincrocíclotron, e, três décadas depois, o físico Rogério Cerqueira Leite discutindo com o ministro da Ciência e Tecnologia, Renato Archer, a criação do Síncrotron.
“O projeto de construção do ‘grande Sincrocíclotron’ exemplifica bem como funcionava (…) a negociação da institucionalização da ciência (…)Pelo padrão dominante, cientistas organizados em pequenos grupos e dotados de grande prestígio social negociavam diretamente com a burocracia do Estado o apoio aos grandes empreendimentos científicos. O sucesso dessa ação dependia, por sua vez, da sensibilidade de membros da burocracia científica e de seu poder de intervenção quase pessoal junto aos que decidiam as prioridades orçamentárias do Estado” (p. 165).
Vale a pena ler um relato de Cerqueira Leite, envolvido desde 1985 nas negociações do LNLS, para refletir sobre o quanto esse padrão persistiu no país:
“A ideia de construção do laboratório Síncrotron começou no Rio de Janeiro com o professor [Roberto] Lobo, que montou um grupo (…) que começou a conduzir o projeto. Mas logo houve uma mudança de governo e, aparentemente, o projeto estava com problemas. Foi nesse contexto que o Cylon, que era membro do grupo, me procurou e pediu para que eu ajudasse. Eu convidei os membros do conselho – o Lobo, o [José] Pelúcio, enfim, todos os que estavam envolvidos no projeto – para fazermos uma primeira reunião. Em seguida, houve uma reunião um pouco mais formal em Campinas e ficou claro que era preciso decidir o lugar [onde o laboratório seria construído]. Eu não fazia parte do Conselho, mas estava discutindo com eles e ficou mais ou menos claro que o melhor lugar seria São Paulo, não a USP, mas São Carlos ou Campinas, por razões de natureza técnica, não políticas em um primeiro momento (…). Tempo depois, quando o Renato Archer assumiu, eu fui conversar com ele. Nessa conversa ficou decidido que ele faria o favor de dar um ‘presente’ para o estado de São Paulo e a gente decidiu, então, que o laboratório seria construído aqui em Campinas. Porém, o ministro não queria o Roberto Lobo [na direção] porque não gostava dele. Eu não sei por que, mas o Archer não gostava dele pessoalmente. Eu até levei o Lobo até o MCT para que eles conversassem e desfizessem algum mal-entendido (…) mas eu senti que havia uma certa restrição ao nome do Lobo, talvez porque ele fosse parte do antigo governo e estivesse ligado ao pessoal do CNPq e havia algumas restrições a esse pessoal” (p. 177-178).
Por fim, vale destacar alguns dados a respeito dos pesquisadores externos do LNLS, ligados a instituições nacionais, que responderam ao questionário de Maria Carlotto, dividido em cinco partes (dados pessoais, trajetória acadêmica, trajetória profissional, pesquisa em curso do respondente, padrões de avaliação da ciência): 82% deles atuavam em universidades públicas, 11% em instituições estatais de pesquisa, 1,4% em empresas e 1,4% em universidades ou faculdades privadas.
Em relação à graduação, 33% dos pesquisadores eram formados em física, 28% em química, 19% em engenharias, 9% em ciências biológicas, 4% em ciências agrárias e 4% em farmácia e bioquímica, restando 3% para “outros cursos de graduação”.
Em termos de qualificação, com 48,7% dos pesquisadores em período de formação e 51,3% profissonalizados, torna-se relevante a informação de que 28,9% do total tinham concluído o doutorado e 32,2% o pós-doutorado. “Comparando esse percentual com os dados do Censo Escolar de 2003”, segundo o qual 21% dos docentes de ensino superior no Brasil tinham doutorado completo, “fica explícito que os pesquisadores do LNLS compõem a elite do ensino superior brasileiro, particularmente nas áreas de física, química, engenharia e ciências biológicas. Considerando ainda que a nano e a biotecnologia são áreas prioritárias para o governo brasileiro, trata-se de uma elite ‘estratégica’ para a política nacional de ciência e inovação”, comenta a autora (p. 246). Por fim, essa elite é jovem (cerca de 70% tinham entre 30 e 50 anos de idade) e predominantemente masculina (66% são homens).