Folha de S.Paulo em 19/10/2016
É como a diferença entre a batalha e a guerra. No início da tarde desta quarta-feira (19), russos e europeus tentarão fazer seu primeiro pouso bem-sucedido em Marte. Esse é o fato do dia. Mas, num horizonte um pouco mais amplo, está em jogo a descoberta das primeiras evidências de que houve, quiçá há, vida em Marte.
A missão se chama ExoMars 2016, e é composta por dois elementos: um é a espaçonave Trace Gas Orbiter, e o outro é o módulo de pouso Schiaparelli.
O dia é crítico para ambos. A partir das 11h04 (horário de Brasília), o orbitador disparará seu motor-foguete e freará o suficiente para ser capturado pela gravidade de Marte, em órbita do planeta vermelho. Dez minutos depois, o sinal de confirmação deverá chegar à Terra.
Acompanhe o pouso ao vivo a partir das 11h no blog Mensageiro Sideral.
Enquanto isso, o módulo de pouso seguirá em sua rota de colisão com aquele mundo, tocando a atmosfera às 12h42. A travessia atmosférica deve durar somente seis minutos e, se tudo correr bem, colocará uma pequena estação meteorológica na região marciana de Meridiani Planum.
A missão é uma parceria entre a ESA (Agência Espacial Europeia) e a Roskosmos (sua contraparte russa). A bordo, tanto do orbitador como do módulo de superfície, viajam instrumentos russos e europeus.
Em caso de sucesso, será a primeira descida bem-sucedida até Marte para as duas agências. Os russos quase chegaram lá, durante a era soviética, quando a sonda Mars-3 tocou o solo e transmitiu telemetria por 20 segundos antes de pifar, em 1971.
Os europeus também tiveram seu “quase”, em 2003, quando o módulo Beagle 2 entrou na atmosfera marciana e, depois disso, não deu mais notícias de seu paradeiro.
Moral da história: até hoje, somente sondas americanas conseguiram produzir ciência em solo marciano, em sete ocasiões (Viking-1 e 2, Pathfinder, Spirit, Opportunity, Phoenix e Curiosity). A escrita pode mudar agora.
Isso se reflete no objetivo primário do próprio Schiaparelli: em essência, provar que ESA e Roskosmos têm a tecnologia para um pouso em Marte. A estação meteorológica é só um bônus e deve funcionar apenas por poucos dias.
O nome de batismo do módulo, entretanto, denota ambições maiores: Giovanni Schiaparelli foi o astrônomo italiano que, em 1877, primeiro disse ter enxergado “canali” (canais, em italiano) em Marte.
As observações criaram um verdadeiro furor sobre vida marciana quando o americano Percival Lowell passou a sugerir que se tratavam de construções artificiais de uma civilização moribunda para irrigar seu planeta desértico.
Nascia ali, de uma forma meio bizarra, a intrigante ideia de que pode haver vida em Marte –questão que finalmente deve começar a ser respondida de forma decisiva pela missão ExoMars.
No fim das contas, os tais “canali” de Schiaparelli e Lowell não só não eram obras de alienígenas como sequer existiam; não passavam de ilusões de óptica, induzidas pela precariedade dos telescópios da época.
Contudo, uma enorme massa de dados produzidas por espaçonaves no último meio século demonstrou que Marte, no passado remoto, de fato teve seus canais naturais.
Durante o primeiro bilhão de anos de sua história, o planeta era mais quente, tinha uma atmosfera densa e grandes quantidades de água líquida –rios, lagos e mares– corriam por sua superfície.
Aos olhos dos astrobiólogos, o planeta vermelho do passado –assim como a Terra_ seria um ótimo candidato a berço do surgimento da vida.
O que os cientistas querem saber: basta ser um candidato para que eventualmente a vida apareça? Houve vida em Marte no passado? É possível que micróbios tenham subsistido até hoje no subsolo marciano, irrigados em água aquecida por energia geotérmica?
UMA BUSCA DESAFIADORA
Já houve uma tentativa anterior de detectar traços de vida em Marte. As sondas americanas Viking-1 e 2, que pousaram por lá em 1976, levaram diversos experimentos cujo objetivo era detectar metabolismo microbiano em solo marciano.
Os resultados são controversos e discutidos até hoje, mas a maioria dos cientistas acredita que foram negativos: a superfície marciana, cheia de materiais que destroem química orgânica e banhada por intensas quantidades de raios ultravioleta, parece inabitável.
O subsolo, contudo, permanece uma opção para formas de vida que, por ventura, tenham resistido ao ressecamento planetário de bilhões de anos atrás.
Para apimentar a discussão, algumas detecções inesperadas foram feitas por observações telescópicas e sondas orbitadoras na década passada, indicando a presença de diminutas quantidades do gás metano na atmosfera de Marte.
Na Terra, a imensa maioria do metano atmosférico é produzida por organismos vivos. Seria o caso também no planeta vizinho?
“Houve muito rebuliço na literatura [científica] por causa disso”, conta Douglas Galante, astrobiólogo do Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, em Campinas (SP). “Muitos modelos surgiram, alguns defendendo a origem biológica do metano marciano, outros a origem geológica, por processos como o da serpentinização, que ocorre quando água líquida interage com algumas rochas no subsolo.”
O Trace Gas Orbiter, se operar como previsto, vai tirar a famosa prova dos noves.
Como o nome sugere, sua finalidade principal será analisar gases-traço (ou seja, presentes em quantidade muito pequena) na atmosfera marciana. Dentre eles, a maior vedete, naturalmente, é o metano.
Além de colocar fim à controvérsia sobre sua presença ou não –visto que seu nível de sensibilidade será mil vezes maior que o de qualquer outro instrumento do tipo já enviado à órbita de Marte–, o TGO será capaz de mapear de onde esse metano está emanando e em que épocas.
Sua mais notável capacidade, entretanto, é a de medir algo que, no jargão científico, é conhecido como a “composição isotópica”.
Na natureza, o único átomo de carbono presente no metano costuma vir em dois “sabores” (isótopos) preferenciais, conhecidos como carbono-12 e 13.
Processos geológicos como a serpentinização não fazem preconceito entre um e outro. A vida, contudo, parece demonstrar uma predileção especial pelo carbono-12.
Ao medir a taxa dos dois tipos de carbono na atmosfera, o orbitador poderá obter a primeira evidência concreta sobre qual processo está a produzir o metano marciano– se biológico ou geológico.
“A pressuposição, talvez óbvia, por trás disso é que o metabolismo dessa hipotética vida marciana seria similar ao da vida na Terra”, assevera Fabio Rodrigues, astrobiólogo do Instituto de Química da USP. Não há, naturalmente, garantias disso.