Diário do Comércio, em 13/01/2015
A tecnologia envolvida na produção do combustível pode aumentar em até 50% a produtividade por hectare de cana. Vantagem que tem atraído investimentos bilionários.
O etanol que você encontra no posto de combustível é relativamente fácil de se produzir. Simplificando, trata-se de um fermentado de açúcares, assim como a cerveja ou o vinho. Independentemente da destinação dada a estes produtos – seja regar um banquete ou mover o táxi que o levará até ele – outro ponto em comum entre esses fermentados é o “desperdício” existente em seus processos produtivos.
Especialmente no caso do etanol, a quantidade de resíduos gerada é enorme em comparação com o volume final produzido. Com uma tonelada de cana se obtém pouco mais de 150 quilos de açúcar, que resultarão em 90 litros de etanol. Em peso, sobram 85% da planta (o bagaço e as folhas).
Mas esse resíduo é um material valioso. Ainda que as usinas o queimem para gerar energia para suas unidades, ao fazer isso elas também acabam jogando fora litros e litros de etanol em potencial. Isso porque há muito açúcar para ser transformado em álcool escondido no bagaço e folhas da cana. Só que é difícil extraí-lo.
É difícil, mas não impossível. Há atualmente um enorme esforço mundial para o desenvolvimento de tecnologias que possibilitam “espremer” até a última gota de etanol da cana – ou de qualquer outro vegetal. São processos que estão conduzindo ao chamado etanol de segunda geração (2G).
Produzi-lo ainda é caro, ao menos 25% a mais do que o etanol convencional, de primeira geração. Obter cada litro de etanol convencional no Brasil custa cerca de R$ 1,10 ante R$ 1,40 com o idêntico volume de etanol 2G.
Mas se os preços ainda não compensam a comercialização dessa evolução do etanol, como explicar os pesados investimentos que estão sendo feitos por gigantes como a Raízen, joint venture entre a Cosan e Shell, que deve injetar R$ 2,5 bilhões nos próximos cinco anos no Brasil para erguer sete plantas de produção?
É que o etanol 2G traz vantagens competitivas para as usinas e, por tabela, para o consumidor final. Como esse combustível é feito aproveitando tudo da cana, será possível ampliar em até 50% a produção de etanol por hectare plantado. Esse aumento de produtividade tende a baratear o preço do combustível, o que elevaria seu consumo.
As pesquisas e tecnologias que estão sendo desenvolvidas para esse segmento levam os especialistas a crerem que entre três e cinco anos será possível produzir etanol 2G ao custo do etanol de primeira geração.
COQUETEL DE ENZIMAS
O etanol convencional é obtido ao se esmagar a cana até se chegar a um caldo açucarado que depois será fermentado por leveduras. Já para extrair etanol 2G do bagaço e folhas que sobram do processo anterior é necessário utilizar um coquetel com 50 tipos de enzimas que irão decompor todas essas partes sólidas em um líquido mais fácil de fermentar.
São poucas as empresas que conseguiram sucesso em desenvolver coquetéis enzimáticos eficientes a um custo viável. E aquelas com capacidade comercial são ainda menos numerosas. O fornecimento desses coquetéis é praticamente um monopólio da dinamarquesa Novozymes -um dos principais fatores que encarecem a produção do etanol 2G.
Para o professor Carlos Alberto Labate, do departamento de genética da Esalq, da USP, baratear a produção do etanol 2G no Brasil passa necessariamente pela produção local de enzimas eficientes. Algo que ainda acontece de maneira pontual.
O CTBE – Laboratório Nacional de Ciência Tecnológica do Bioetanol – de Campinas é um dos únicos representante no país com pesquisas avançadas nessa linha. Em novembro passado, o laboratório anunciou que conseguiu produzir coquetéis de enzimas ao custo de US$ 0,10 por litro de etanol, algo que já tornaria seu uso economicamente viável. Mas ainda precisam ser realizados testes em escala industrial.
BRASIL: ARÁBIA SAUDITA DO ETANOL 2G?
Etanol rentável é o de cana-de-açúcar, isso é consenso. Vantagem para o Brasil, que é referência no manejo dessa cultura. Um hectare plantado de cana rende mais que o dobro de etanol obtido de um hectare de milho, seu maior concorrente. E ainda que o etanol 2G possa ser obtido com base em qualquer tipo de vegetal, ainda não há um substituto à altura da cana em termos de rendimento por área plantada.
Além disso, toda a tecnologia empregada nas usinas considera o processamento da cana ou do milho. Ou seja, a possibilidade de o Brasil assumir a liderança na produção de etanol 2G é grande. Não é à toa que gigantes mundiais do setor de combustíveis estejam usando o país como plataforma para seus projetos nesse segmento.
Com os investimentos programados, a Raízen atingir na próxima década capacidade produtiva de um bilhão de litros de etanol 2G ao ano. Seu projeto envolve sete unidades, sendo que a primeira acabou de entrar em operação em Piracicaba, interior de São Paulo, com capacidade de produzir 40 milhões de litros a cada ano.
A Raízen não é a única nesta corrida. A GranBio inaugurou, em setembro passado, uma planta em Alagoas que produzirá 84 milhões de litros por ano de etanol 2G. Foi a primeira unidade no hemisfério sul a alcançar uma escala industrial. Até 2020 a GranBio planeja investir R$ 4 bilhões em 10 novas unidades, para também chegar a um bilhão de litros.
Com as duas unidades ativas da GranBio e Raízen o Brasil hoje tem capacidade para produzir 124 milhões de litros de etanol 2G por ano, equivalente a pouco mais de 1/5 da capacidade -cerca de 500 milhões de litros-, que está concentrada nos Estados Unidos.
Mas esse mercado ainda é incipiente. Como comparação, a produção brasileira de etanol de primeira geração foi estimada em 28 bilhões de litros no ano passado. Ou seja, há muito espaço para o país, que tem potencial para ultrapassar os Estados Unidos assumindo a liderança no fornecimento do etanol 2G. Resta saber se o governo não irá repetir erros do passado.
POLÍTICAS EQUIVOCADAS
Em uma palestra realizada na sede da Associação Comercial de São Paulo, no final do ano passado, o engenheiro agrônomo Luiz Carlos Corrêa Carvalho, sócio-diretor da Canaplan, argumentou que a produção em escala do etanol 2G deveria ser vista como uma questão estratégica para o Brasil. Segundo afirmou, o potencial desse combustível é tão estratégico que poderá livrar o país da necessidade de importação de derivados do petróleo (gasolina e diesel).
Por mais contraditório que possa parecer, o país que com o Proálcool foi pioneiro no uso em escala do etanol com combustível – na década de 1980 cerca de 90% dos carros novos eram movidos a álcool –, hoje depende da gasolina.
O Brasil produz atualmente cerca de 30 bilhões de litros de gasolina, mais do que volume de etanol. Ainda assim, no ano passado, importou 2,5 bilhões de litros do derivado do petróleo para dar conta da demanda.
Essa distorção ocorreu em parte porque o governo federal, que detém o monopólio do petróleo no país por meio da Petrobras, manteve baixo os preços da gasolina e do diesel, com o propósito de manter a inflação sob controle, uma vez que o preço do combustível influencia os preços de toda a cadeia produtiva e logística.
A questão é que hoje 80% dos carros fabricados são da modalidade Flex. É o consumidor que escolhe se vai abastecer com etanol ou gasolina. Para não perder mercado, os produtores do etanol precisam manter seus preços abaixo do da gasolina (que estava artificialmente reduzido pelo governo), o que nem sempre foi possível. Como resultado, nos últimos cinco anos, enquanto a produção de gasolina dobrou, a de etanol ficou estagnada.
Agora, com a promessa do etanol 2G ampliar em até 50% o volume de combustível produzido por hectare de cana, talvez seja possível reverter essa dependência atual da gasolina, já que esse aumento da oferta de etanol tende a influenciar seu preço. Segundo a GranBio, quando suas 10 unidades estiverem operando em pleno vapor (não há prazo para isso), seu custo de produção será 20% inferior ao do etanol de primeira geração.
REINVENTANDO O SETOR
O etanol 2G traz outras vantagens estratégicas para o setor sucroalcooleiro. Hoje, as usinas trabalham por oito meses e interrompem a produção nas entressafras. Porém, de acordo com Labate, como a tecnologia do 2G permite extrair etanol de qualquer vegetal, outras culturas, como o sorgo e o eucalipto, podem ser processados durante as entressafras.
De maneira mais ampla, o professor da Esalq defende que as usinas ganhem outra roupagem, transformando-se em “biorefinarias”. Segundo ele, as novas unidades a serem implementadas no país e no mundo serão mais eficientes, com capacidade de produzir, além do etanol e do açúcar, produtos de maior valor agregado, hoje concentrados na indústria petroquímica, como o plástico, insumos para as indústrias farmacêutica e cosmética, solventes, entre outros. Só que tudo à base de fibras de celulose, carregando o apelo do ecologicamente correto.
“É precioso diversificar para fazer o negócio economicamente viável. E seguir o exemplo das refinarias de petróleo, ter o desempenho do setor petroquímico como parâmetro, é um bom começo para o setor sucroalcooleiro”, comenta Labate.