O Globo, 05/11/2020
Análise do sedimento sugere que há fluxo de rejeito de minério atingindo a região; poluente se move na direção do arquipélago de Abrolhos
Cinco anos após o acidente da mineradora Samarco em Mariana (MG), que matou 19 pessoas, poluiu o leito do rio Doce e a costa capixaba, a concentração do rejeito do minério não diminuiu. Uma análise do sedimento coletado onde o rio encontra o mar sugere que ainda há fluxo de rejeito de minério chegando à região, e o poluente continua se movendo, aos poucos, na direção do arquipélago de Abrolhos.
A conclusão é de um estudo da Universidade Federal do Espírito Santo (Ufes), que analisou o material coletado nas instalações do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), em Campinas. Em estudo publicado em outubro na revista científica Chemosphere, os pesquisadores descrevem uma situação preocupante.
Por conduzir uma pesquisa na costa capixaba para investigar a presença de arsênio, a oceanógrafa Valéria Quaresma tinha amostras de sedimento colhidas na boca do rio em 2012, e conseguiu compará-las com outras coletadas nos anos que se seguiram à tragédia, para analisar outros elementos. Em parceria com o físico Marcos D’Azeredo Orlando, também da Ufes, o grupo da cientista conseguiu analisar o material usando o UVX, o acelerador de partículas para produção de luz “síncrotron”, feixes de radiação concentrada e intensa usados para análise de material.
O trabalho foi um dos últimos a serem conduzidos no UVX, que foi descomissionado em 2019 para dar lugar ao Sirius, máquina com objetivo similar, mas mais potente. Com a luz síncrotron usada em uma técnica chamada de difração de raios X, os cientistas conseguiram analisar a assinatura do ferro contido no sedimento marinho. Além de ter aumentado em concentração, o ferro encontrado ali tinha características similares ao do ferro medido no rejeito da barragem, formando estruturas cristalinas mais próximas aos do minério da Samarco do que o do ferro residual presente no leito marinho capixaba.
Segundo Orlando, a análise mostrou que pelo menos até julho de 2019 a concentração do poluente não diminuiu na boca do rio, e provavelmente ainda está preocupante em 2020.
“É inquestionável que existe o rejeito e que ele não cedeu ainda”, disse o cientista ao GLOBO. — Não existe o efeito de dissipação previsto.
No artigo da revista Chemosphere, o pesquisador e seus coautores passam um recado pessimista: “No estágio atual, é impossível prever quão longa a presença dos rejeitos no sedimento vai persistir no ambiente marinho”.
Ameaça a Abrolhos
A permanência dos poluentes minerais no litoral capixaba é uma má notícia para a Fundação Renova, criada pela Samarco e pela Vale, sua empresa controladora, para administrar as indenizações a vítimas e reparos ambientais. A pesca na região afetada tem restrições até hoje. Apesar de ter sido uma tragédia humana de escala melhor que o acidente de Brumadinho, em 2019, a ruptura da barragem de Mariana teve consequências ambientais muito mais nocivas.
Um dos problemas detectados pelos cientistas é justamente um sinal de que a assinatura dos rejeitos é encontrada cada vez mais no leito oceânico na direção do Parque Nacional de Abrolhos, uma unidade de conservação marinha.
“Temos indícios fortes de que, após grandes chuvas e tempestades no mar, a lama com rejeito sofre ‘ressuspensão’ na coluna d’água, no rio e no mar, e é transportada”, explicam Orlando e seus coautores, num documento de apoio ao estudo publicado em outubro.
“Uma parte desse material é tão fino, um ‘coloide’, que praticamente não se deposita quando suspenso. Isso indica que ainda existe material se movimentando e que necessitamos continuar o monitoramento”, dizem os pesquisadores.
Para Orlando, a publicação e o reconhecimento do estudo por revisão independente devem influenciar negociações de reparação com as empresas responsáveis pelo desastre.
“Sob o ponto de vista de sedimento, isso foi arrebatador até para a própria Renova, que reconheceu que as medidas são precisas e inequívocas”, diz Orlando.
Procurada pelo GLOBO, a Fundação Renova afirmou que “os monitoramentos sistemáticos de qualidade de água, sedimentos e de biodiversidade têm apontado para a progressiva melhora das condições ambientais após o rompimento”. “Diversos estudos científicos evidenciam que a presença de metais, como o ferro, alumínio e manganês, já é registrada em níveis elevados historicamente na região, previamente ao rompimento.”
Ainda segundo a Renova, estudo desenvolvido por ela com a UFRJ mostrou que “a ocorrência de concentrações de rejeito com potencial de causar alterações significativas na qualidade da água ficaram restritas a poucos quilômetros da embocadura do rio Doce” e que “não houve condicionantes físicas suficientes para carrear quantidades significativas de rejeito persistentemente para o norte, e muito menos até Abrolhos/BA, que fica cerca de 220 km para o norte da foz”.