Revista Veja, 28 junho 2019
Jennifer Ann Thomas
Com investimentos da ordem de 1,8 bilhão de reais, acelerador de partículas ajudará a jogar luz sobre várias áreas do conhecimento
Quando se contempla, a olho nu, o céu, límpido, à noite, o brilho mais intenso — capaz de sequestrar, inapelavelmente, nossa visão — é o que vem da estrela Sirius. Não por acaso ela chamou a atenção de poetas como o latino Horácio (65 a.C.-8 a.C.), monumento literário da Antiguidade. Não por acaso ela empresta seu nome ao extraordinário acelerador de partículas que entra em operação em 2020 e constitui um dos mais ambiciosos empreendimentos da ciência brasileira. Com investimentos da ordem de 1,8 bilhão de reais, o Sirius ajudará a jogar luz sobre várias áreas do conhecimento. Suas primeiras aplicações serão no campo da medicina.
Situado em Campinas (SP), no Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) — uma organização da sociedade civil que recebe recursos federais —, o Sirius será utilizado para ajudar em quebra-cabeças cuja resolução possibilitará o desenvolvimento de medicamentos com princípios ativos descobertos em meio à biodiversidade brasileira. Para tanto, o projeto Brazilian Biodiversity Molecular Power House (MPH) — batizado em inglês para facilitar sua inserção global — dedica-se a desvendar e analisar a estrutura de moléculas naturais de plantas, ervas etc. oriundas de várias regiões do país. Como fonte da chamada “luz síncrotron”, que permite enxergar substâncias em escala de átomos (veja detalhes na ilustração ao lado), o Sirius vai se alinhar entre os mais avançados equipamentos do gênero em todo o planeta — só a Suécia possui hoje algo similar.
A fim de dar curso a pesquisas que possam levar à produção de remédios realmente efetivos contra doenças ainda sem cura, como Alzheimer e Parkinson, o MPH trabalhará com parcerias, como a que firmou com a empresa nacional Phytobios, responsável pela realização de expedições regulares de bioprospecção a quatro biomas brasileiros: Amazônia, Cerrado, Caatinga e Mata Atlântica. Anualmente, entre três e cinco viagens são feitas para a coleta de material. A biblioteca de amostras da empreitada já tem mais de 600 espécies — e a tendência é aumentar. O Brasil, a nação mais biodiversa do mundo, figura como o laboratório vivo com maior potencial para despontar nessa área. Segundo Cristina Ropke, CEO da Phytobios, a opção pelos negócios sustentáveis é um modo estratégico de valorizar a floresta. “Com a extração de recursos naturais de forma controlada e responsável, podemos dar valor à natureza sem desmatar. Em vez de derrubarmos para criar pastos, vamos manejar para encontrar fármacos”, diz ela.
O laboratório farmacêutico nacional Aché foi o primeiro a apostar nos resultados do projeto iluminado pelo Sirius — ainda em 2017 ele firmou um contrato para o desenvolvimento de dois medicamentos. Com investimento inicial de 10 milhões de reais, o grupo espera encontrar resultados positivos para tratamentos oncológicos e para problemas de pele (nesse caso, com a produção de um fármaco ou mesmo de um cosmético). Até que um novo produto chegue ao mercado, o que deve ocorrer em treze anos, o investimento poderá alcançar 200 milhões de dólares. De acordo com o diretor de inovação e novos negócios da Aché, Stephani Saverio, são poucas as drogas genuinamente baseadas em matérias-primas nativas do país — cenário que poderá se transformar de modo expressivo a partir das pesquisas com o Sirius. Entre as substâncias já aproveitadas pela indústria farmacêutica está a tubocurarina, um alcaloide venenoso que é o principal constituinte do curare, usado pelos índios sul-americanos em flechas para caça, e apresenta propriedades de relaxante muscular. Outra descoberta brasileira foi o peptídeo bradicinina, isolado do veneno da jararaca, importante para a terapia da hipertensão. Como exemplo se poderia citar ainda a pilocarpina, encontrada no jaborandi e usada para tratamento de glaucoma e de xerostomia, um efeito adverso de boca seca provocado pela radioterapia em pacientes com câncer.
Por enquanto, o MPH vem conduzindo suas pesquisas no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, dentro do CNPEM, valendo-se de uma versão de acelerador anterior ao Sirius, chamada UVX, que está em operação há mais de vinte anos. Uma das diferenças entre as duas gerações desses equipamentos é a qualidade na resolução das imagens obtidas. Com um brilho maior e mais potente, o Sirius permitirá ver, e de forma mais rápida, detalhes que o UVX não tem potência para decodificar.
Para além do uso no desenvolvimento de fármacos, o Sirius será empregado, segundo o diretor-geral do CNPEM, Antonio José Roque da Silva, em áreas tão distintas quanto a exploração de petróleo e a paleontologia. “Temos o melhor instrumento. Para utilizá-lo adequadamente, precisamos de um investimento forte em ciência e tecnologia como política de governo. Sem a formação de cientistas e universidades consolidadas, não teremos as pesquisas de altíssimo nível que farão bom uso do Sirius”, enfatizou Roque da Silva. Nenhum país avança quando fecha os olhos para o firmamento científico.