Por UOL Tilt em 14/03/2022
Após mais de três décadas colaborando com projetos do Centro Europeu de Pesquisas Nucleares (Cern, na sigla em francês), o Brasil assinou no último dia (3) um acordo para se tornar membro associado de um dos principais institutos científicos do planeta. É a primeira vez que um país do hemisfério sul se filia à organização, palco de descobertas como o bóson de Higgs (“partícula de Deus”) e a World Wide Web (“www”).
O acordo foi assinado numa cerimônia em Meyrin, na fronteira Franco-Suíça —onde o centro está situado—, pelo ministro da Ciência, Tecnologia e Inovações, Marcos Pontes, que deixará o cargo agora em março. Com a adesão, o governo brasileiro espera expandir o intercâmbio de pesquisadores e trazer lucro para o setor produtivo, já que agora empresas nacionais poderão participar de licitações para fornecer equipamentos ao centro europeu.
“É reconfortante ver que o trabalho que começamos lá atrás deu algum fruto, porque o Cern não é qualquer laboratório. É um centro que foi construído após a Segunda Guerra Mundial para agregar a ciência de toda a Europa”, diz o professor Sérgio Novaes, do Instituto de Física Teórica da Unesp (Universidade Estadual Paulista), em São Paulo, que participa de pesquisas do Cern há mais de 30 anos.
“Essa adesão é muito importante para expandir a participação do Brasil na comunidade científica internacional”, completa.
Cientistas brasileiros já colaboram de forma ativa com alguns experimentos do Cern desde a década de 1980. Como membro associado, porém, o Brasil poderá ter, por exemplo, acesso prioritário a postos de direção, estágios científicos de longa duração e cursos de curta duração no laboratório.
A importância do Cern
Fundado em 1954, o Cern é reconhecido pela pesquisa em física de altas energias, área que estuda as interações fundamentais da natureza. Foi lá que os cientistas também criaram a primeira tela sensível ao toque (touch screen, em inglês) e onde foi feita a primeira tomografia computadorizada por emissão de pósitrons (Pet-scan). Ele é detentor do maior acelerador de partículas do mundo.
São mais de 12.200 cientistas de 110 nacionalidades, oriundos de instituições em mais de 70 países, contribuindo com experimentos e análise de dados, segundo informações do próprio centro. Atualmente, o laboratório conta com 23 membros plenos, incluindo Alemanha, Reino Unido, Suíça, Portugal e Israel.
Também há cerca de 50 países não-membros cujos cientistas e universidades cooperam com as pesquisas de forma independente, como Chile, Canadá e China — esse era também o caso do Brasil.
12 anos de espera
A filiação nacional ao Cern era um desejo antigo da comunidade científica brasileira. As negociações para que o país se tornasse um membro associado começaram oficialmente em 2010, quando o laboratório passou a aceitar membros fora da Europa, e o Brasil demonstrou interesse de fazer parte do grupo.
Mas idas e vindas “mais políticas do que científicas”, segundo pesquisadores brasileiros ouvidos por Tilt, impediram o progresso da adesão. A troca de ministros da ciência e tecnologia durante esse período, de 2010 a 2018, por exemplo, ocorreu nove vezes.
A oficialização do acordo agora depende da aprovação do Congresso, uma vez que a filiação é um compromisso que se estende para além de mandatos. O prazo para isso ocorrer, segundo prevê o Cern, é de até um ano.
Deveres do Brasil e contribuições para a ciência
A partir do momento em que um país se torna membro associado, ele passa a ter “deveres e privilégios especiais”, informa o Cern. Isso significa que o país terá de contribuir financeiramente com os custos operacionais do centro e, em contrapartida, poderá ter suas empresas sendo contratadas para prover bens e serviços aos experimentos científicos realizados no local.
A estimativa é de que o governo brasileiro terá de pagar US$ 10 milhões por ano para ajudar com os custos de manutenção do laboratório, valor que seria revertido com as empresas brasileiras sendo contratadas para prestar serviços ao centro europeu. O acordo inclui a participação no mercado de licitações da ordem de US$ 500 milhões anuais.
O físico Marcelo Gameiro Munhoz, professor do IF-USP (Instituto de Física da Universidade de São Paulo), acredita que o acelerador de partículas Sirius, localizado em Campinas, no interior de São Paulo, é um exemplo de que a indústria brasileira também tem capacidade para responder às demandas de alta tecnologia do centro europeu, que vão desde eletroímãs e magnetos a sensores sofisticados.
Munhoz também é um dos coordenadores do chip “Sampa” — dispositivo brasileiro produzido em Taiwan que equipa um dos experimentos do Cern.
A expectativa do MCTI é de que as reservas de nióbio do país —uma das maiores do mundo— também sejam úteis à produção dos ímãs utilizados nos experimentos do Cern, já que eles têm como componentes majoritários ligas de nióbio e titânio.
A contratação de empresas brasileiras para o fornecimento de bens ao laboratório europeu também pode aumentar a competitividade da indústria nacional, segundo Luiz Vitor de Souza, pesquisaador do IFSC-USP (Instituto de Física de São Carlos da Universidade de São Paulo) e um dos líderes do CTA (Cherenkov Telescope Array), maior rede de telescópios do mundo — que não tem relação com o Cern.
O acordo também irá beneficiar a formação de novos pesquisadores e estudantes em tecnologias de um modo geral no Brasil, explica Alberto Santoro, professor da UERJ (Universidade do Estado do Rio de Janeiro) e uma das principais referências na física de partículas e altas energias do país.
“O Cern é um laboratório fantástico, um ambiente estimulante onde todo estudante de engenharia, física e assimilados gostariam de ter essa oportunidade num futuro próximo”, diz.
Receio de abandono por aqui
Ao mesmo tempo em que o Brasil se filia ao maior centro mundial de pesquisas na área da física, no entanto, um “buraco negro” nacional preocupa os cientistas: a falta de investimentos para financiar esse campo.
Muitos pesquisadores temem que o acordo não trará resultados efetivos caso o governo brasileiro não invista no setor, aponta Novaes, que também é um dos poucos brasileiros que participaram da descoberta no Cern do bóson de Higgs, partícula responsável pela massa de todas as outras partículas fundamentais.
“Essa verba pode até reverter para a indústria nacional, mas esse acordo só vai fazer sentido no médio e longo prazo se houver um financiamento efetivo da ciência no Brasil”, ressalta.
“Não é uma panaceia que possa nos livrar dos nossos problemas. Claro que ajuda, mas também é preciso ter um empenho do país para fortalecer a indústria do Brasil, a fim de que tenhamos condições de atender a essas possíveis demandas”, completa Sandra Padula, professora do IFT-Unesp (Instituto de Física Teórica) e pesquisadora de íons pesados no Cern. Ela é uma das 50 mulheres protagonistas da ciência brasileira na área de Ciências Exatas e da Terra pelo projeto Open Box da Ciência.
Manter a enorme estrutura de mais de 7 bilhões de euros em funcionamento no Cern não é uma tarefa barata. Por isso, a organização pede anualmente que cada professor doutor que participa das pesquisas contribua com as taxas de manutenção e atualização dos equipamentos. “Isso vai na casa de US$ 10 mil por pesquisador que assina artigo por ano, mais ou menos”, diz o físico Sérgio Novaes, da Unesp.
Não são, naturalmente, os pesquisadores que pagam por essa taxa, mas as instituições em que trabalham e as agências de fomento, como CNPq (Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico) e Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp). O problema é que isso não tem sido suficiente.
Segundo a SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência), só o orçamento para o Capes, órgão responsável por regular e fomentar os programas de pós-graduação no país, teve uma grande redução. Em 2012, era de R$ 5,13 bilhões, e neste ano, 2022, o orçamento é de R$ 3,8 bilhões.
“Todo ano é uma surpresa. O CNPq tem contribuído com uma quantia de forma bastante regular nos últimos anos, mas não é suficiente, aí a gente vai lá e apela para o Ministério de Ciência e Tecnologia. É uma situação muito ruim”, diz Marcelo Munhoz, do IFUSP, que foi ao congresso nacional negociar o pagamento da taxa junto a outros membros da Renafe (Rede Nacional de Física de Altas Energias), cinco anos atrás.
Para Sérgio Novaes, cabe ao ministério criar um mecanismo perene e contínuo, que envolva a contribuição de agências de fomento federais e estaduais, para o financiamento dessas taxas. “Será absolutamente ridículo se o país pagar anualmente a taxa que nos cabe [de US$ 10 milhões] para permanecer membros e, ao mesmo tempo, os pesquisadores não serem financiados à altura para alavancar a ciência”, diz o professor.
A física Sandra Padula, da Unesp, espera que a adesão brasileira ao centro europeu chame a atenção do país para a necessidade do financiamento fixo de taxas necessárias para que os cientistas continuem desenvolvendo suas pesquisas. Mas não só: ela ressalta que é urgente investir e fortalecer os centros nacionais.
Veterano nas pesquisas do Cern, Alberto Santoro concorda. “Temos que primeiro instrumentar os laboratórios brasileiros para depois darmos uma grande contribuição ao Cern. Caso contrário, vamos sempre receber tarefas e não ocuparemos a liderança”, diz.