Revista ComCiência, 4/4/2018
Por Marcelo Knobel e Sandra Murriello
Dedicamos este artigo a Jorge Wagensberg, que sempre nos inspirou e nos inspira com a sua magia com as palavras e com os conceitos. Dele aprendemos que um verdadeiro museu de ciências deve sonhar em ser uma “realidade concentrada”. Este artigo é adaptação de relato publicado originalmente pelos mesmos autores no livro Instrucciones para contagiar la ciencia, Editorial Universitária de la Universidad de Guadalajara, Ed. Juan Nepote e Diego Golombeck, 2016.
Apesar de a criação de um espaço interativo lúdico e educacional, como um museu ou centro de ciências, surgir como uma ideia sem claros opositores, viabilizá-la na América Latina não é nada fácil. Como podemos garantir que um projeto seja viável e que tenha uma gestão administrativa e acadêmica que permita a sua sobrevivência por um longo período? Tentaremos aqui, de modo absolutamente informal, tecer alguns comentários sobre esse tema complexo a partir da experiência da criação da primeira exposição do Museu Exploratório de Ciências da Unicamp, a NanoAventura. Nossas memórias, subjetivas certamente, são um bom exemplo de certa ousadia inconsciente…
Aproximadamente em 2002, um grupo de professores da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) começou a se reunir de modo informal para conversar sobre divulgação científica e sobre a possível criação de um embrião de um museu de ciências na universidade. Apesar de ter sido pioneira no país com a criação do Museu Dinâmico de Ciências nos anos 1980 (uma colaboração entre a Unicamp e a prefeitura de Campinas), a cidade de Campinas, que tem mais de um milhão de habitantes, não possui suficientes espaços educativos e de lazer. Dessa maneira, a criação de um museu de ciências na universidade aparecia como uma oportunidade de gerar um novo espaço cultural para a comunidade local e regional.
No ano seguinte, a ideia desse grupo inicial foi acolhida pela administração da universidade, e o trabalho de implantação do museu de ciências foi institucionalizado através de grupos de trabalho específicos[1], que estudaram a sua viabilidade, propondo durante dois anos diferentes espaços[2] e estratégias que levaram ao estágio atual (ver www.mc.unicamp.br). Durante esse período foi estabelecido contato com diversas pessoas e instituições ligadas ao tema, incluindo a visitação de centros e museus, e também foram organizados encontros, oficinas e seminários com especialistas[3].
Como início do processo de implantação e consolidação do projeto foi idealizado o museu que queríamos criar, o que permitiu ter uma ideia preliminar dos custos, da equipe de trabalho a ser formada, e das metas a serem alcançadas. A estratégia para viabilizar o museu foi começar trabalhando em projetos menores, que não dependessem de uma sede física, mas que servissem para ir configurando o museu: formar uma equipe, realizar avaliações preliminares, trabalhar com situações reais, analisar a resposta do público, e servir como um verdadeiro “cartão de visitas” do futuro museu para a comunidade e potenciais parceiros e patrocinadores. Vale lembrar que ninguém na equipe inicial tinha qualquer experiência prévia na área. Desse modo foram iniciados os dois projetos pioneiros do museu: a NanoAventura, inaugurada em abril de 2005, e a Oficina Desafio, inaugurada em julho de 2006.
A ideia da NanoAventura foi ganhando força a partir do workshop realizado com David Ellis, onde definimos que o primeiro projeto do museu tinha que ser de alto impacto, inovador em nível nacional e internacional, e que também deveria tratar de um tema atual de ciência e tecnologia. A nanotecnologia apareceu assim como a temática apropriada, pois a Unicamp já tinha vários grupos de pesquisa na área, bem como uma relação bem próxima com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que fica vizinho à universidade. Começamos a procurar parceiros para realizar o projeto. Como o museu ainda não tinha espaço próprio, pensamos em montar uma tenda (de fato, o primeiro nome imaginado foi NanoCircus), que pudesse viajar pelo Brasil. Conseguimos encontrar um parceiro potencial e, após diversas reuniões e ideias, chegamos a um acordo preliminar e a um orçamento impactante: precisávamos de aproximadamente US$ 1,8 milhão para realizar o projeto e garantir os primeiros meses de sua operação. O projeto foi apresentado à Fundação Vitae, única organização que financiava projetos de divulgação de ciências no país[4]. Durante vários meses conversamos com a Fundação, que se propôs a buscar parceiros para a iniciativa.
Em meados de novembro de 2004 a Fundação Vitae nos anunciou que haviam assinado um acordo de cooperação com a Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp) para realizar chamadas conjuntas na área de divulgação científica. Tivemos a boa notícia que o nosso projeto havia passado por diversos assessores, e que tinha sido aprovado no mérito, mas havia uma condição para o financiamento: a NanoAventura deveria ser inaugurada no IV Congresso Mundial de Centros e Museus de Ciências, que iria ocorrer no Rio de Janeiro, de 10 a 14 de abril de 2005. Ou seja, em menos de quatro meses (sem contar o recesso de fim de ano, Carnaval etc.)! Naquele momento não tínhamos equipe de trabalho, nem oficina, nem sequer um espaço adequado (estávamos temporariamente situados nos vestiários do ginásio da Unicamp). A gente não tinha a experiência sequer para ter uma dimensão real da complexidade de montar uma exposição. Desse modo, a nossa resposta foi fácil, baseada na ousadia e no entusiasmo: Sim, topamos!
Então, enquanto a burocracia retardava a liberação dos recursos, aproveitamos para iniciar o processo de contratação do parceiro com quem havíamos previamente negociado. No entanto essa negociação não foi fácil, pois tivemos diversos problemas de entendimento sobre a propriedade intelectual, fundamental para a sustentabilidade do projeto. Nós queríamos e exigíamos que todas as plataformas (software e hardware) fossem completamente abertas, para poder melhorá-las, aprender e realizar a manutenção necessária. Os nossos parceiros potenciais queriam manter tudo como verdadeiras “caixas-pretas”, imaginando uma relação de dependência que permitisse manter um negócio a longo prazo. A negociação foi muito dura. Se aceitássemos as suas condições, estaríamos à mercê de um único fornecedor, e não aprenderíamos o suficiente no caminho. Assim foi que, apesar da pressa, novamente tivemos coragem e não aceitamos o modelo proposto, e fomos em busca de outras opções. O tempo passava.
Fizemos uma busca rápida de possíveis provedores de software e de jogos eletrônicos, bem como gestores de projeto, diretores artísticos, atores, cenografistas, entre outros, que poderiam colaborar com o projeto. Realizamos um workshop de discussão (kick-off) de dois dias, junto com diversos cientistas da área de nanociência e nanotecnologia. Nesse workshop foi mostrado o conceito inicial do projeto e foram feitas discussões sobre diversos aspectos da nanociência, com conteúdos que deveriam ou poderiam ser transmitidos na exposição. A partir de um trabalho em grupo, os principais conceitos foram agrupados e decididos, e solicitamos que todos os potenciais parceiros ali presentes nos enviassem propostas rapidamente, em menos de 10 dias, para que pudéssemos consolidar uma equipe. Já era fim de novembro.
Em meados de dezembro finalmente constituímos o nosso time de trabalho, que consistia de aproximadamente 30 pessoas funcionando a todo vapor, sem parar nos fins de semana nem feriados de fim de ano. Um verdadeiro mutirão. Contratamos diversos desenvolvedores de jogos, designers, animadores 3-D (uma novidade na época), músicos, roteiristas, jornalistas, cenografistas, gerentes de projetos, produtores, entre outros. Em paralelo, desde o início, formamos um grupo de cientistas que se dedicou a indagar como abordar esse tema, tão distante do nosso público-alvo: crianças e adolescentes. Uma pesquisa preliminar com esse público nos ajudou a delinear um caminho que foi apoiado com ações educativas para docentes e monitores.
Naturalmente, a ideia inicial mudou significativamente em função da necessidade, da pressa, dos custos e do resultado das avaliações. Percebemos que se queríamos submergir nosso público no mundo nanoscópico deveríamos partir do que eles já conheciam e achavam muito pequeno. Formigas e pulgas foram então nosso ponto de partida para o nanomundo. A narrativa fazia o público chegar ao mundo dos átomos e moléculas reduzindo a escala de tamanho, o que foi repetido em jogos, painéis e materiais didáticos.
Desse modo foi nascendo a NanoAventura, que convida a explorar o mundo por meio de imagens, músicas e simulações de modo lúdico e interativo. Um apresentador conduz a experiência, que tem vídeos e jogos eletrônicos, que dura aproximadamente uma hora, e permite a entrada simultânea de no máximo 48 participantes (pensado para ser o tamanho de uma turma em uma visita escolar). O vídeo, desenvolvido especialmente para o projeto[5], introduz a noção de escala, apresenta os fundamentos da nanociência e nanotecnologia, e mostra o desenvolvimento dessas áreas no Brasil. Depois de ver o vídeo o público é dividido em quatro times que transitam pelas estações dos jogos. Três desses jogos permitem manipular objetos virtuais simulando práticas de laboratório e da indústria. O quarto jogo é um passeio virtual que explora os laboratórios de pesquisa em 3D do LNLS e da Unicamp. O fim da visita é novamente coletivo, com a apresentação de um vídeo 3D que recupera visualmente alguns dos conceitos apresentados previamente.
Até hoje não sabemos explicar como conseguimos realizar tantas coisas em tão pouco tempo. A montagem da NanoAventura no Riocentro, onde ocorreu o congresso, foi também uma verdadeira loucura, com pouquíssimo tempo, e sem ter tido a possibilidade de realizar nenhum teste preliminar. Tudo foi organizado no momento e atendíamos centenas de visitantes ávidos por conhecer e perguntar sobre tudo. Além disso, tínhamos que passar a prova de fogo, pois o congresso tinha os principais especialistas mundiais sobre o assunto. Uma boa parte desses especialistas nos visitou, com o seu olhar crítico. E para piorar ainda mais a situação a Fundação Vitae aproveitou a oportunidade para que uma comissão de avaliação fizesse uma análise do resultado in-situ. O evento atraiu a mídia e foram feitas dezenas de entrevistas e reportagens durante a exposição. Tudo isso sob um calor quase insuportável, fechados no pavilhão desde cedo até tarde da noite.
Mas conseguimos superar o teste. O relatório do projeto foi aprovado e durante seus primeiros anos de vida a NanoAventura foi itinerante, tendo viajado pelas cidades de São Paulo, Porto Alegre e Campinas, onde foi instalada no Parque Taquaral. Depois, decidimos montar a tenda definitivamente na Unicamp, no espaço finalmente destinado para a sede definitiva do Museu de Ciências (onde se encontra montada até hoje). Conseguimos encontrar um modelo de funcionamento sustentável, com apoio da universidade e de diversos patrocinadores, o que permitiu que a visita fosse gratuita para estudantes de escolas públicas. O sucesso foi tão grande que a NanoAventura acabou realizando uma réplica modernizada no Museu Catavento, em São Paulo, onde ainda está aberta para centenas de visitantes diários. Ao longo desta trajetória de mais de 13 anos de funcionamento a NanoAventura, além de engajar os visitantes com um assunto fascinante, serviu como espaço para investigações acadêmicas sobre divulgação e percepção pública da ciência e tecnologia. Conquistamos também vários prêmios, dentre os quais se destacam o Prêmio Red-Pop em 2009 e a menção honrosa do Prêmio Mercosul de Ciência e Tecnologia 2014, na categoria de divulgação científica e tecnológica.
Este breve relato ilustra bem a força da ousadia baseada em certa inconsciência. Em certos momentos da vida, para tomar uma decisão é melhor não avaliar demais as consequências. Às vezes temos que fechar os olhos e nos lançar rumo à meta, contando com os bons ventos da intenção correta, claro que com dedicação, esforço, organização e boa equipe de trabalho, para chegar ao destino sonhado.
Marcelo Knobel é reitor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), Brasil. Sandra E. Murriello é docente da Universidad Nacional de Rio Negro (UNRN), Argentina.
[1] Em 2003 foram formados dois grupos de trabalho com professores da universidade que discutiram o perfil e a viabilidade do museu. No ano seguinte foram criadas uma comissão executiva e uma comissão consultiva com uma ampla representação da comunidade acadêmica.
[2] O projeto inicial consistia na revitalização do Museu Dinâmico de Ciências (MDCC), localizado no Parque Portugal (Taquaral). Depois foi também pensada a criação do Centro Cultural Guanabara, na Estação Guanabara, no centro da cidade de Campinas, que atualmente funciona com outro tipo de atividade.
[3] Em agosto de 2003 foi realizado um workshop internacional, com a presença de diversos especialistas nacionais e diretores de três museus de ciência importantes: Jorge Padilla (Explora – Leon/México), Jorge Wagensberg (Museo de Ciencias La Caixa – Barcelona/Espanha) e Peter Giles (The Tech – San Jose/Estados Unidos da América). Em 2004 foi realizada uma semana intensiva de trabalho para aprofundar diversos aspectos do funcionamento de um museu com David Ellis (Science Museum – Boston/EUA) e houve também a visita de Julia Tagueña (Universum – Cidade do México/ME). Essas iniciativas contaram com o apoio da Fundação Vitae. Em 2005 e 2006 foram organizados seminários quinzenais e discussões com especialistas nacionais e internacionais.
[4] Infelizmente a Fundação Vitae encerrou suas atividades em 2005.
[5] O video didático ganhou a menção honrosa no Festival de Video Científico do Mercosul, Ciencien 2006 (Ver https://www.youtube.com/watch?v=OgGG3VMCVXk)