Blog A Física se Move, em 18/02/2011
Há uma máquina do tamanho de um salão grande, guardada dentro de um pequeno prédio nas proximidades de Campinas, SP, que é um verdadeiro coringa: é usada para pesquisas da nanociência à química dos derivados de petróleo, da paleontologia à bioquímica extraterrestre. É a única da América Latina; no hemisfério Sul só há outra parecida na Austrália; e a daqui é utilizada por cientistas de vários países, como Argentina, Itália, Suécia e República Tcheca.
O aparelho tem a forma de um anel de 30 metros de diâemtro e chama-se “acelerador síncrotron”. Encontra-se no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), um complexo a poucos quilômetros da Unicamp. O porquê de tanta versatilidade deve-se à radiação que produz, que tem o mesmo nome, “luz síncrotron”. Esses raios são úteis para investigar com precisão a estrutura da matéria no nível dos átomos – é possível com isso confeccionar novos materiais e pesquisar a física por detrás de inúmeros fenômenos – e também para formar imagens tridimensionais do interior dos objetos sem ser preciso abri-los (em outros laboratórios pelo mundo, já se observou com ela inclusive o interior de ovos de dinossauro mantendo-os intactos).
A radiação é produzida por elétrons que trafegam em círculos no interior do anel a 99,999% da velocidade da luz (energia de 1,37 GeV); sua trajetória é mantida dentro do anel por fortes campos magnéticos, que obrigam as partículas a fazerem a curva. Partículas carregadas como os elétrons emitem radiação naturalmente quando são desviados da trajetória reta, formando a luz síncrotron emitida pelo aparelho.
Ao redor do anel, há diversas “saídas” para a radiação, cada uma acoplada a um conjunto de aparelhos. São as “linhas de luz”. Cada linha de luz processa a radiação síncrotron de uma forma diferente, adequando-a para as diversas aplicações possíveis. O conjunto todo é o “laboratório síncrotron”.
O ribossomo, átomo por átomo
O aspecto “coringa” desse complexo foi ilustrado ricamente num minicurso voltado a estudantes de pós-graduação, que aconteceu no LNLS entre 17 e 25 de janeiro último, intitulado “Novos desenvolvimentos no campo das radiações síncrotron” (parte do programa Escola São Paulo de Ciência Avançada, EPSCA). O objetivo era compartilhar o que vem sendo feito em laboratórios síncrotron de todo o globo para quem quisesse ouvir. Gente do mundo inteiro compareceu – Brasil, Argentina, França, Alemanha, Espanha, Estados Unidos, Irã, África do Sul etc. Vou abaixo falar sobre umas poucas pesquisas apresentadas, só para dar uma ideia da variedade do que pode ser feito com laboratórios síncrotrons.
Quem foi teve a sorte de ouvir as palestras de dois prêmios Nobel: Ada Yonath, de Química, e Albert Fert, de Física. Fert, da Universidade de Paris, falou sobre a spintrônica, uma nova área que explora as possibilidades de transmissão de informação por meio de ondas de spins de elétrons. Ada Yonath, do Instituto Weizmann, em Israel, falou no primeiro dia. Discorreu sobre suas pesquisas em Israel a respeito da estrutura do ribossomo – uma organela celular que faz a “leitura” do código do DNA e com isso produz proteínas para a célula.
Basicamente, o que seu grupo e seus colaboradores fizeram foi aproveitar que o ribossomo é muito pequeno – tem entre 25 e 30 nanômetros de diâmetro – e tratá-lo como se fosse uma molécula. Ora, um dos usos mais comuns para a radiação síncrotron é a determinação da estrutura da molécula de um material – de que átomos é composta e como eles se distribuem na molécula. Os cientistas aplicaram o método no ribossomo e acabaram determinando a sua estrutura átomo por átomo!
Não só: foram mostradas imagens do ribossomo se mexendo enquanto passava através dele uma “fita” de RNAm (molécula semelhante à do DNA, que leva o código genético do núcleo para o citoplasma da célula). Como num verdadeiro mecanismo de montagem em série, moléculas de aminoácidos presentes no citoplasma eram ligadas uma após a outro, formando uma cadeia que constituiria uma proteína, numa sequência determinada pelo RNAm que era lido simultaneamente. A longa molécula da proteína saía por um túnel através da organela.
Física & Paleontologia
No dia 21, houve a inesperada palestra de uma jovem paleontóloga, Sophie Sanchez, do Museu Nacional de História Natural, em Paris, que mostrou como os laboratórios síncrotron podem ser úteis para a sua ciência. Fósseis muitas vezes vêm no interior de rochas e seria preciso quebrá-las e estragar as relíquias para conseguir enxergá-los. Com a luz síncrotron, pode-se obter figuras tridimensionais do interior dessas rochas mantendo-as intactas. Na telona foram exibidas imagens de um velho pedaço de âmbar com insetos fósseis dentro, uma pesquisa de Malvina Lak (da Universidade de Rennes, na França) e Paul Tafforeau. (do European Synchrotron Radiation Facility). Uma simulação computacional, alimentada pelas imagens obtidas com o síncrotron, montou uma animação na qual o âmbar girava na tela, mostrando com nitidez os antiquíssimos insetos de cerca de 100 milhões de anos. Também mostrou várias análises do interior de ossos e dentes de animais pré-históricos e embriões dentro de ovos.
Esse tipo de pesquisa – a do ribossomo ou a dos insetos dentro do âmbar – não poderia ser feita no LNLS, pois precisa da chamada fonte de radiação síncrotron de terceira geração, que produz radiação mais intensa e com espectro mais amplo. Mas um novo anel está sendo construído no LNLS, o Sirius, com 146 metros de diâmetro. Este será uma fonte de terceira geração e abrirá possibilidades para todo um conjunto novo de possibilidades de pesquisas para o Brasil e para os usuários LNLS vindos de outros países.
Outros pesquisam ovos mais recentes. Antes de Sophie, falou Franz Pfeiffer, da Universidade Técnica de Munique, Alemanha. Explicou, em meio a equações e desenhos esquemáticos, a teoria matemática por detrás das mesmas técnicas que ela usava. A razão de tanta sofisticação é que, para transformar os dados brutos da radiação síncrotron em imagens, é necessário um complexo processamento matemático realizado por computadores. Para ilustrar a aplicação da teoria, em certo momento Pfeiffer mostrou os resultados de um experimento-teste feito no laboratório: imagens tridimensionais do interior de… um Kinder-Ovo!
Filmes mesoporosos e bioquímica extraterrestre
Mais próximo da física, o argentino Galo Soler-Illía, do Centro Atómico Constituyentes, em Buenos Aires, falou sobre os filmes mesoporosos. Assunto amplamente desconhecido do grande público, trata-se de minúsculos dispositivos com forma de finíssimas películas porosas – cada poro possui entre 2 e 50 nanômetros, ou milionésimos de milímetro – com múltiplas aplicações na nanociência. Podem servir para a tecnologia, como na construção de detectores de substâncias químicas, ou para estudos científicas em física, química e biologia. Uma surpreendente pesquisa de 2009, feita por uma equipe de Buenos Aires, usou filmes mesoporosos para simular o funcionamento das membranas de neurônios, que transmitem o impulso nervoso bloqueando ou deixando passar íons de sódio e potássio. Usando, para isso, o LNLS.
Outra pesquisa de 2009, que não chegou a ser comentada no evento, usou as instalações do LNLS e concluiu que há indicações da existência de adenina, uma das bases constituintes do DNA, na atmosfera de Titã, um satélite de Saturno! O que foi feito por Sergio Pilling, da Universidade do Vale do Paraíba (Univap), foi simular a atmosfera e as condições do satélite numa campânula e analisar a composição do material que era formado ali. O LNLS foi usado para produzir raios-X para imitar os raios-X solares que bombardeiam a atmosfera de Titã.
Na campânula, formou-se uma maçaroca composta de diversas substâncias químicas, que aparece frequentemente em condições semelhantes no espaço sideral, chamada “tholin”. A análise do tholin acusou a presença da adenina. É uma conclusão excitante, pois coloca um pequeno tijolo a mais nas pesquisas sobre a origem da vida – como ela pôde aparecer a partir de elementos não biológicos – e mesmo sobre as possibilidades de ela surgir também em outros mundos.