UFMG, em 21/03/2014
O sequenciamento do genoma do parasita Leishmania amazonensis, totalmente realizado por pesquisadores brasileiros – sob coordenação da professora Diana Bahia, do Departamento de Biologia Geral da UFMG –, pode ajudar a desvendar mecanismos pelos quais alguns microrganismos escapam da resposta imune do hospedeiro.
Publicado na revista DNA Research, o artigo que descreve o trabalho aponta campos com vastas possibilidades de investigação em futuro próximo. “A pesquisa mais abre portas para uma série de entendimentos do que soluciona questões, mas tem importantes impactos dos pontos de vista médico e biológico”, destaca Diana Bahia.
Causadora de lesão cutânea difusa, forma mais grave e que não tem cura, de alta prevalência na América Latina e em especial na região amazônica do Brasil, a Leishmania amazonensis tem traços comuns com a Leishmania mexicana, e ambas diferem muito dos tipos mais comuns desse gênero, que já tiveram seu genoma elucidado.
Chamou a atenção da equipe de 16 pesquisadores que compõem o grupo a presença dos parasitas em vacúolos (espécies de bolsa) de grandes dimensões dentro dos macrófagos, células de defesa do sistema imune do hospedeiro. “Ele fica protegido e vai se replicando”, descreve a professora.
Segundo ela, a intenção foi descobrir se de dentro do macrófago o parasita secreta fatores proteicos que justifiquem a biogênese desse vacúolo largo e, consequentemente, a evasão da resposta imune. “O fato é que as respostas imunes clássicas que matariam outras espécies de leishmania não funcionam para a L. amazonensis”, explica Diana, lembrando que tal hipótese, por si, justificaria a decisão de sequenciar mais um genoma desse gênero.
Proteína de superfície
Contudo, outras evidências aumentaram o interesse pelo estudo. “Percebemos que a L. amazonensis tem cópias extras de uma proteína de superfície chamada amastina, identificada e caracterizada, inicialmente, pela professora Santuza Teixeira, da UFMG”, conta. Superfamília de proteínas composta por vários membros, as amastinas são encontradas apenas em tripanossomatídeos – grupo que inclui todas as leishmanias e os tripanossomas –, sendo bem mais abundante nas primeiras.
Em trabalho de quatro anos, utilizando prioritariamente ferramentas de bioinformática, o grupo buscou encontrar algo que diferenciasse a L. amazonensis das demais, já que as leishmanias são muito parecidas no âmbito genômico. Observaram que elas têm basicamente os mesmos genes, mas a espécie escolhida para objeto de estudo produz cópias diferenciadas desses genes. Além disso, a reconstrução filogenética revelou que em L. amazonensis e L. mexicana(ambas do complexo mexicana) algumas amastinas evoluíram de forma diferente.
De acordo com a professora, a maior expressão de amastina observada em Trypanosoma cruzi, por exemplo, faz com que esse parasita se multiplique muito mais rápido no seu vacúolo parasitóforo intracelular e, também, se diferencie rapidamente, assumindo forma infectiva que escapa do ataque da resposta imune.
“Embora isto não tenha sido demonstrado para a leishmania, nossa equipe acredita que a amastina poderia ser uma das moléculas responsáveis pela formação desses vacúolos grandes e, consequentemente, pela evasão da resposta imune, mas isso precisa ser estudado experimentalmente”, pondera Diana Bahia.
Interações
Os autores do estudo sugerem que fatores secretados por leishmania poderiam imitar fatores de mamíferos, perturbando, portanto, as interações de proteínas hospedeiras com nativas. Para identificar as possíveis interações de fatores do hospedeiro mamífero com os dos parasitas, construíram redes híbridas de interação de proteínas, os interactomas. O grupo percebeu que a L. amazonensis secreta uma heat-shock protein, ou HSP-70, que se liga a receptores de membrana, o Toll-like receptor 9 (TLR-9), importante regulador imunológico.
“Nossa hipótese é de que a secreção dessa proteína perturba o metabolismo do hospedeiro, promovendo a ligação com o TLR-9, encontrado em vesículas e vacúolos, o que desencadearia respostas favoráveis ao estabelecimento intracelular do parasita. Esses eventos podem estar envolvidos na sobrevivência do parasita em vacúolos dentro do hospedeiro, já que não seria alcançado pelo seu sistema imune”, esclarece.
O genoma sequenciado da Leishmania amazonensis está depositado em bancos de dados nacionais e em breve integrará o TriTrypDB, banco internacional dos tripanossomatídeos. A partir dessas informações, públicas, qualquer pesquisador pode dar prosseguimento ao estudo tanto das hipóteses apontadas pelo grupo quanto em outras áreas. Particularmente, Diana Bahia tem interesse em se aprofundar no papel das amastinas específicas de L. amazonensis e da HSP-70.
“Pretendo clonar essas proteí-nas, transfectar parasitas para obter uma superexpressão delas e infectar macrófagos ou clonar tais proteínas em leishmania de espécie formadora de vacúolos apertados e observar o efeito biológico consequente”, informa a professora, destacando a importância de se entender o papel de tais proteínas na biogênese do vacúolo largo.
A doença
A leishmaniose cutânea difusa (LCD), também conhecida como leishmaniose cutânea anérgica difusa (LCAD) ou leishmaniose anérgica hansenoide (LAH), foi descrita pela primeira vez na Amazônia brasileira, mais precisamente no estado do Pará, que relatou os primeiros achados clínicos sobre forma rara da leishmaniose tegumentar, ressaltando a natureza das lesões queloidianas. Em alguns casos, as lesões regridem espontaneamente, mas atualmente não há cura para a doença, que se apresenta mais gravemente em crianças.
Pesquisas revelam que L. amazonensis e L. mexicana vieram de organismos silvestres que apresentavam lesões. Segundo Diana Bahia, esses parasitas eram organismos de vida livre que, para se protegerem, começaram a parasitar outros seres, incluindo talvez amebas, obtendo vantagens evolutivas para se adaptarem a humanos e animais. Dados da Organização Mundial de Saúde (OMS) indicam que boa parte dos mamíferos reservatórios e de humanos infectados pela L. amazonensisnão apresentam lesões.
“É possível que a L. amazonensis seja uma dessas espécies que obtiveram vantagens em uma vida intracelular para viver silenciosamente no hospedeiro”, diz Diana. “Filosoficamente, isto representaria uma hipótese de troca (trade off hypothesis), teoria segundo a qual os parasitas tendem a evoluir de modo a viver em homeostase com o hospedeiro, pois a morte deste último é, em última análise, prejudicial à vida do parasita intracelular, que poderia desaparecer completamente. Acredita-se que os parasitas que permitem grande sobrevida aos hospedeiros são mais bem-sucedidos na sua reprodução e dispersão”, conclui a pesquisadora.
Artigo: REAL, F. et al. The genome sequence of Leishmania (Leishmania) amazonensis: functional annotation and extended analysis of gene models
Publicação: DNA Research. v. 20, p. 1-15. jul. 2013. O artigo está disponível neste link.
Financiamento: Fapesp e Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
Autores: Diana Bahia, do Departamento de Biologia Geral (ICB-UFMG), coordenou o projeto em colaboração com pesquisadores do Departamento de Microbiologia, Imunologia e Parasitologia da Escola Paulista de Medicina (Unifesp) – incluindo o primeiro autor, Fernando Real – e com grupos do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) e do Laboratório de Genômica e Expressão da Universidade Estadual de Campinas (que abriga os dois outros primeiros coautores, Ramon Oliveira Vidal e Marcelo Falsarella Carazzolle)
Onde encontrar o genoma
O Leishmania (Leishmania) amazonensis Genome Database está disponível neste endereço. As sequências foram depositadas no NCBI, sob o acesso APNT00000000 (SUBID SUB120161, BioProject PRJNA173202).
Em breve, estará disponível no TriTrypDB.
(Ana Rita Araújo/Boletim 1855)