Jornal da Ciência, em 10/12/2012
Gene é essencial para o desenvolvimento de embriões vertebrados.
O desenvolvimento do embrião de um animal vertebrado envolve uma série de eventos biológicos. Para que esse processo, conhecido por embriogênese, desenvolva um indivíduo saudável, diferentes substâncias são requeridas, entre elas um composto fundamental: o ácido retinóico (AR). O AR é obtido a partir da vitamina A, principalmente, por meio da enzima RALDH2. Pesquisa realizada no Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), em Campinas, identificou no gene da raldh2, a fração responsável por estimular a síntese dessa enzima na medula espinhal dorsal. O fragmento identificado é conhecido tecnicamente como enhancer, devido à sua função estimuladora da expressão gênica.
O impacto dessa descoberta está relacionado à complexidade do gene estudado. O gene da raldh2 é grande, com cerca de 120.000 pares de bases. Animais que não expressam esse gene morrem no início de seu desenvolvimento, já que a síntese de ácido retinóico é prejudicada (Figura 1). O AR, portanto, é uma substância crucial para vários processos da embriogênese.
O ácido retinóico atua na formação dos tecidos dos pulmões, rins, olhos, cérebro e coração. No sistema nervoso central, participa da diferenciação neural. A carência de AR afeta todos esses processos de desenvolvimento, assim como seu excesso prejudica esses eventos. Como a RALDH2 é a principal enzima envolvida na síntese do ácido retinóico na embriogênese, o gene que a codifica depende de um sofisticado mecanismo de regulação. A expressão de RALDH2 precisa ocorrer em diferentes partes do organismo e durante diversos estágios do desenvolvimento para garantir o desenvolvimento de um embrião saudável.
A RALDH2 expressa na medula dorsal e o movimento corporal
A pesquisa desenvolvida no LNBio, instalado no campus do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), identificou o enhancer responsável por estimular a produção de raldh2 na região mais dorsal da medula espinhal, conhecida como placa do teto, e nos interneurônios dorsais da medula espinhal. A pesquisa mostrou também que esse enhancer é encontrado em sapos, galinhas, camundongos e seres humanos, o que sugere que ele tenha sido conservado ao longo da evolução dos vertebrados.
Essa descoberta levou à seguinte pergunta: a expressão de raldh2 na placa de teto e nos interneurônios dorsais é uma característica dos tetrápodes, vertebrados que possuem quatro membros, ou é uma característica ainda mais antiga, herdada de animais ancestrais? Para responder a essa questão, os pesquisadores procuraram a expressão de raldh2 em uma espécie primitiva de peixe, conhecida por lampreia.
A expressão de raldh2 em lampreia foi observada apenas nos interneurônios dorsais. O resultado foi negativo na placa do teto. A presença de RALDH2 nos interneurônios dorsais sugere que essa enzima está relacionada com a coordenação de movimento corporal, tanto na lampreia, quanto nos tetrápodes. Essa evidência baseia-se na já comprovada participação dos interneurônios dorsais no desenvolvimento dos interneurônios comissurais, que emitem seus axônios para o lado contralateral da medula espinhal e estão envolvidos na coordenação dos movimentos corporais durante a locomoção.
Já na placa de teto, a situação é diferente. O ácido retinóico produzido nessa região provavelmente está relacionado ao desenvolvimento de circuitos nervosos do trato espinocerebelar, responsáveis por levar informações dos membros pareados ao cerebelo. Essa função está relacionada à propriocepção, isto é, a capacidade dos indivíduos em reconhecer, controlar e coordenar os movimentos de seus membros. A lampreia, por exemplo, não possui nadadeiras pareadas e a ausência de expressão do gene da raldh2 em sua placa de teto parece fazer sentido.
Essa hipótese ganhou força quando os pesquisadores decidiram observar a expressão de raldh2 em outras duas espécies de peixe: Danio rerio, o popular paulistinha ou zebrafish, e Oryzias latipes, conhecida por Medaka. Nesses animais, a raldh2 foi expressa apenas na região da medula relacionada ao desenvolvimento das nadadeiras peitorais. Dessa forma, é muito forte a possibilidade de essa enzima estar relacionada com a propriocepção dos membros pareados.
Apesar dos paralelos traçados entre as funções da RALDH2 nos diferentes organismos estudados, o enhancer identificado em tetrápodes e, recentemente, em lampreia, não foi observado nos peixes teleósteos pesquisados. Esse fato sugere que os peixes mais recentes perderam essa sequência ao longo da evolução e, provavelmente, devem ter outro mecanismo para regulação do gene raldh2 na medula espinhal dorsal. Esse fenômeno pode ser explicado pela simplicidade das nadadeiras e pela forma de locomoção desses peixes, que exigem uma rede neuronal menos complexa. Acredita-se que por isso, durante a embriogênese desses peixes, a raldh2 é expressa na medula espinhal apenas nos estágios mais tardios do desenvolvimento e em locais mais restritos, de onde emergem as nadadeiras peitorais.
Os pesquisadores investigam também um modelo de ativação do enhancer descoberto. Já identificaram moléculas que podem estimular ou inibir a ação desse gene e algumas regiões do enhancer que parecem interagir com elas. Essa parte da investigação é fundamental para entender a sofisticada regulação do gene raldh2 e a intricada rede de moléculas sinalizadoras responsáveis por seu controle.
A descoberta da regulação da raldh2 pode ajudar na compreensão de ataxias, isto é, da falta de coordenação dos movimentos e más formações congênitas, e no conhecimento das bases genéticas envolvidas no controle da especificação e diferenciação celular durante a embriogênese. Esse tipo de gene também é um potencial alvo para triagens genéticas que visam identificar mutações prejudiciais ao correto desenvolvimento dos embriões.
A pesquisa – realizada em parceria com o Instituto do Coração (InCor), Laboratório Europeu de Biologia Molecular (EMBL), Instituto de Tecnologia da Califórnia, Universidade de Chicago, Universidade do Chile, Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e Universidade de São Paulo (USP) – destaca também a importância da combinação de métodos comparativos de genética, biologia do desenvolvimento e filogenia para investigar fragmentos genéticos conservados. Muitos vertebrados, distantemente relacionados, apresentam regiões conservadas em genes que desempenham papéis cruciais para o desenvolvimento do sistema nervoso central. O conhecimento sobre esses fragmentos pode ajudar a entender como as adaptações dos vertebrados surgiram e como os organismos de diferentes gêneros ou espécies diferem entre si.
(Ascom do CNPEM)
Repercussão: Portal MCTI, Melhor Celular,