Medidas realizadas em diversas linhas de luz do Sirius forneceram fortes evidências para a classificação do fóssil Spongiophyton nanum como um líquen, sugerindo forte contribuição destes organismos para o processo de evolução da vida nos ambientes terrestres
Um amplo esforço internacional envolvendo diversas instituições de pesquisa reuniu especialistas do Brasil, Austrália, Estados Unidos, Reino Unido e França para desvendar um grande enigma na história da evolução da vida na Terra. A pesquisa, que foi capa da revista Science Advances, demonstrou que o organismo Spongiophyton nanum era, na verdade, um dos líquens mais antigos e amplamente distribuídos da história da Terra.
Os pesquisadores utilizaram múltiplas linhas de luz do Sirius — a fonte de luz síncrotron do CNPEM — durante as investigações, empregando técnicas avançadas de imageamento e caracterização utilizando luz síncrotron, possibilitando revelar microestruturas e assinaturas químicas preservadas nos fósseis com altíssima resolução. O trabalho também contou com experimentos em outras grandes instalações internacionais, como o Diamond Light Source e o Advanced Photon Source.

Fragmento isolado do talo de Spongiophyton nanum, mostrando a superfície superior com poros. Imagem publicada no artigo “The rise of lichens during the colonization of terrestrial environments” (Science Advances, 2024). Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adw7879
As medidas confirmaram que o Spongiophyton era um líquen plenamente desenvolvido, formado pela associação entre fungos e microalgas. Sua presença abundante há cerca de 410 milhões de anos indica que os líquens foram pioneiros na transformação das rochas em solo, ajudando a criar as condições necessárias para que as plantas e animais se estabelecessem e se diversificassem em terra firme, especialmente em regiões inóspitas do planeta.
Um grande enigma na história da vida na Terra
Líquens são organismos compostos que surgem da associação simbiótica entre fungos e algas ou cianobactérias. Essa relação permite que estes organismos prosperem em ambientes mais desafiadores, estendendo seu alcance ecológico ao garantir benefícios mútuos para os parceiros. Enquanto as algas ou cianobactérias se beneficiam da proteção garantida pelos filamentos dos fungos, que também coletam água e nutrientes da atmosfera, os fungos se beneficiam dos carboidratos produzidos por elas através da fotossíntese.
Essa relação bem-sucedida é evidenciada pela presença dos líquens em praticamente todas as regiões do planeta, sejam as mais favoráveis à vida ou as mais extremas. Estes organismos podem sobreviver em uma grande variedade de substratos, como rochas, cascas de árvores, dunas de areia, solos com poucos nutrientes ou até mesmo superfícies artificiais.
Ao secretarem ácidos orgânicos e promoverem reações químicas que dissolvem minerais e desagregam rochas, os líquens contribuem para a formação de solos e desempenham até hoje funções ecológicas essenciais, como reciclagem de nutrientes e captura de carbono na atmosfera. Sua origem evolutiva, no entanto, é um grande debate entre cientistas.
O escasso registro fóssil destes organismos deixa grandes dúvidas sobre sua contribuição para o complexo processo de transição da vida para o ambiente terrestre. Além de serem raramente encontrados, classificá-los é especialmente desafiador por terem características morfológicas bastante semelhantes com uma enorme variedade de organismos.
Entre os candidatos a serem classificados como líquens que são encontrados no registro fóssil da Era Paleozoica, organismos do gênero Spongiophyton se destacam por sua ampla distribuição e particular dificuldade de classificação. Há décadas estes organismos intrigam paleontólogos, que discutem características que podem definí-los como líquens, algas ou plantas basais.
As descobertas da pesquisa
Os pesquisadores analisaram espécimes de Spongiophyton nanum encontradas em rochas com 410 milhões de anos na Formação Ponta Grossa, na Bacia do Paraná — uma vasta região hidrográfica que se estende por sete unidades da federação brasileira, incluindo o Mato Grosso do Sul, onde os fósseis foram descobertos.
Estes fósseis apresentam uma morfologia compatível com líquens modernos. Seu talo é fino e possui ramificações e superfícies que sugerem um crescimento aderido a um substrato. Já em seu interior, pesquisadores observaram redes de hifas, estruturas filamentosas típicas de fungos. Além disso, conjuntos de células esféricas com características semelhantes às algas que vivem em simbiose com fungos nos líquens modernos também foram observados.

Fragmento de Spongiophyton nanum observado por microscopia óptica. Imagem publicada no artigo “The rise of lichens during the colonization of terrestrial environments” (Science Advances, 2024). Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adw7879
No CNPEM, os pesquisadores utilizaram equipamentos especializados do Laboratório de Preparações Criogênicas (LCRIO) para preparar pequenas amostras dos fósseis, que foram levadas para a linha de luz Mogno — dedicada à obtenção de imagens tomográficas de altíssima resolução. As medidas resultaram em imagens com resoluções entre 150 e 500 nm e que revelaram a distribuição tridimensional de hifas fúngicas e células fotossintéticas preservadas no fóssil. Essa visão 3D detalhada confirmou um arranjo interno altamente reminiscente de líquens modernos.
“Este trabalho mostra como é essencial combinar metodologias convencionais com técnicas de ponta”, explica Nathaly L. Archilha, coautora do artigo e coordenadora da linha de luz Mogno no Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS). “As medições iniciais nos direcionaram às regiões-chave de interesse, e só então foi possível obter imagens tridimensionais em escala nanométrica, revelando as complexas redes de fungos e algas que definem Spongiophyton como um verdadeiro líquen.”

Imagem do fóssil Spongiophyton nanum obtida por nanotomografia, mostrando a distribuição de suas estruturas internas. Imagem publicada no artigo “The rise of lichens during the colonization of terrestrial environments” (Science Advances, 2024). Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adw7879
As medidas de fluorescência de raios X realizadas na linha de luz Carnaúba revelaram a distribuição espacial de elementos como cálcio, ferro e zinco no fóssil. A análise identificou microcristais de calcita, com morfologia compatível com o oxalato de cálcio (CaOx), um biomineral comumente produzido por líquens modernos como um mecanismo de proteção em ambientes com alta incidência de luz solar. De acordo com os autores, essa é a primeira evidência de biomineralização em um fóssil fúngico macroscópico e é uma prova complementar conclusiva da natureza liquenizada do fóssil.

O mapeamento químico em escala nanométrica obtido nas linhas de luz do Sirius revela micropartículas de cálcio derivadas da precipitação de oxalato de cálcio
Para investigar a composição orgânica, análises nas linhas de luz Imbuia e Ipê focaram na química do fóssil. O mapeamento confirmou a presença de compostos nitrogenados, indicando uma composição orgânica diferente da esperada de matéria vegetal ou de algas livres e mais consistente com a presença de estruturas poliméricas como a quitina, o principal componente da parede celular de fungos.
“As assinaturas moleculares, os padrões minerais e a anatomia estão totalmente alinhados com o que observamos em líquens vivos.”, explica Bruno Becker-Kerber, coautor do artigo e atualmente pesquisador de pós-doutorado na Universidade de Harvard. Durante o período em que as medidas foram realizadas, Becker-Kerber atuava como pesquisador-colaborador do CNPEM.
Pioneiros na transformação da Terra
A abordagem multimodal e de alta resolução, combinada com dados morfológicos, minerais e moleculares obtidos nas instalações do Sirius e de outros síncrotrons internacionais, permitiu uma caracterização abrangente do Spongiophyton nanum, fornecendo fortes evidências de que ele foi um dos primeiros fungos macroscópicos liquenizados.

Reconstrução artística do Spongiophyton durante o Devoniano Inicial, no sistema deposicional de alta latitude da Bacia do Paraná. Imagem publicada no artigo The rise of lichens during the colonization of terrestrial environments (Science Advances, 2024). Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adw7879
Por serem organismos altamente tolerantes a ambientes extremos, líquens podem ter agido como pioneiros no processo de transição da vida para o ambiente terrestre. “Nossas descobertas mostram que os líquens não eram organismos marginais, mas sim pioneiros fundamentais na transformação da superfície da Terra. Eles ajudaram a criar os proto-solos que permitiram que plantas e animais se estabelecessem e se diversificassem em terra firme.”, complementa Bruno.
Outro ponto revelado pela pesquisa é a possível origem geográfica dos líquens primitivos. “Nossos resultados sugerem que esse líquen ancestral evoluiu inicialmente em regiões polares frias do supercontinente Gondwana, em áreas que hoje correspondem à América do Sul e à África.”, acrescenta Becker-Kerber.

Distribuição paleogeográfica de Spongiophyton durante o Devoniano Inicial em diferentes regiões do supercontinente Gondwana. Imagem publicada no artigo “The rise of lichens during the colonization of terrestrial environments” (Science Advances, 2024). Disponível em: https://www.science.org/doi/10.1126/sciadv.adw7879
A partir das análises conduzidas no CNPEM e em centros parceiros internacionais, o estudo mostra que líquens como o Spongiophyton foram agentes-chave na transformação do planeta, acelerando processos geoquímicos que tornaram possível o surgimento de ecossistemas complexos. Ao desvendar o papel desses organismos pioneiros, a pesquisa também evidencia como o uso de técnicas avançadas de análise, como as disponíveis no Sirius, são essenciais para responder grandes perguntas da ciência.
Sobre o CNPEM
O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) abriga um ambiente científico de fronteira, multiusuário e multidisciplinar, com ações em diferentes frentes do Sistema Nacional de CT&I. Organização Social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI), o CNPEM é impulsionado por pesquisas que impactam as áreas de saúde, energia, materiais renováveis e sustentabilidade. Responsável pelo Sirius, maior equipamento científico já construído no País. O CNPEM hoje desenvolve o projeto Orion, complexo laboratorial para pesquisas avançadas em patógenos. Equipes altamente especializadas em ciência e engenharia, infraestruturas sofisticadas abertas à comunidade científica, linhas estratégicas de investigação, projetos inovadores com o setor produtivo e formação de pesquisadores e estudantes compõem os pilares da atuação deste centro único no País, capaz de atuar como ponte entre conhecimento e inovação. As atividades de pesquisa e desenvolvimento do CNPEM são realizadas por seus Laboratórios Nacionais de: Luz Síncrotron (LNLS), Biociências (LNBio), Nanotecnologia (LNNano) e Biorrenováveis (LNBR), além de sua unidade de Tecnologia (DAT) e da Ilum Escola de Ciência, curso de bacharelado em Ciência e Tecnologia, com apoio do Ministério da Educação (MEC).







