Órgão reproduzido com hipoderme pode ser utilizado em tratamentos de feridas, queimaduras e reduzir testes em animais
A construção de uma pele artificial desenvolvida por uma equipe de pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) foi destaque na Communications Biology, revista do grupo Nature, que detalhou sua fabricação através do uso de bioimpressão 3D. O novo modelo, chamado de Human Skin Equivalent with Hypodermis (HSEH), pode trazer grande impacto para o tratamento de feridas e queimaduras e apoiar o desenvolvimento de medicamentos e cosméticos, bem como para a simulação de doenças de pele sem uso de testes em animais. A produção, feita a partir de células-tronco e primárias, leva cerca de 18 dias do início ao final do processo.
Pela primeira vez no Brasil, foi possível produzir um modelo de pele completo, incluindo epiderme, derme e hipoderme, camada fundamental do órgão que contribui para funções essenciais.
Estudos sobre esse tipo de pele artificial só existem em outros seis países do mundo. Por meio de técnicas de Engenharia de Tecidos, o CNPEM produzirá a pele para estudos próprios, mas poderá confeccionar o material para instituições de pesquisa parceiras. A ideia é auxiliar no desenvolvimento de enxertos para tratamento de ferimentos e queimaduras.
“O desenvolvimento de um modelo tridimensional tri-camada da pele humana, incluindo a hipoderme, foi um desafio técnico e científico significativo. Desde a escolha dos materiais até a integração precisa das diferentes camadas celulares, cada etapa exigiu uma abordagem inovadora para garantir a funcionalidade e a relevância biológica do modelo. Um dos maiores obstáculos foi otimizar as condições para que as células da hipoderme, os adipócitos, interagissem de forma adequada com as células das camadas superiores, promovendo diferenciação e expressão gênica semelhantes às observadas na pele nativa.” Explica Thayná Avelino, pesquisadora do CNPEM e primeira autora do artigo.
Por ter características muito similares às da pele humana, o material pode ser usado em estudos de diversas doenças, tratamentos e medicamentos. O primeiro deles, já em andamento com pesquisadores da Holanda, é analisar características de pele de pessoas com diabetes, que podem ter ferimentos de difícil cicatrização com risco de amputações de membros inferiores.
O trabalho, coordenado pela pesquisadora Ana Carolina M. Figueira, do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio) do CNPEM, destaca como a presença da hipoderme em modelos de pele artificial exerce um papel fundamental na regulação de processos biológicos importantes, como a hidratação e a diferenciação celular. Essa camada, formada por células adiposas, cria um ambiente mais próximo do tecido humano real, permitindo assim uma adesão, proliferação e diferenciação celular mais eficiente.
No estudo, a equipe utilizou bioimpressão 3D para construir um modelo de pele baseado em colágeno, que serve de matriz para a interação das células. A hipoderme, camada que é frequentemente negligenciada em modelos simplificados, demonstrou ser indispensável para modular a expressão de uma ampla gama de genes vitais para a funcionalidade da pele, como os relacionados à proteção e à regeneração do tecido.
“A inclusão da hipoderme não apenas replica a arquitetura da pele humana, mas também permite o estudo aprofundado de processos biológicos de forma mais precisa e ética”, explica a pesquisadora. A hipoderme exerce um papel ativo na pele, influenciando processos como regulação da água, desenvolvimento celular e imunidade, o que a torna fundamental para criar modelos de pele completos e funcionais.
As pesquisas com modelos 3D de pele começaram em 2021 e o grupo já desenvolveu outros tecidos, como o que é utilizado como curativo para recuperação de áreas lesionadas em corações de pessoas infartadas.
Testes em animais
O HSEH desenvolvido pelo CNPEM oferece uma plataforma robusta e realista para o estudo de doenças dermatológicas, além de servir como uma alternativa ética e sustentável aos combatidos testes em animais. Esse modelo tem potencial para aplicações em uma ampla gama de pesquisas, desde o desenvolvimento de tratamentos para condições como dermatite e feridas crônicas até a avaliação de eficácia e segurança de cosméticos e medicamentos.
O estudo aponta ainda que essa estrutura de pele completa pode ser usada em pesquisas de toxicidade e resposta inflamatória, propiciando resultados mais próximos da fisiologia humana, o que representa um avanço significativo para o setor de cosméticos e farmacêutico.
“Apesar dos avanços alcançados, ainda há muito a explorar. O próximo passo seria avaliar como esse modelo responde a diferentes estímulos, como compostos químicos, estresse mecânico e condições inflamatórias, para garantir sua aplicabilidade em estudos de doenças de pele e testes de toxicidade, também é fundamental aprimorar a estabilidade e a durabilidade do modelo, permitindo ensaios mais longos e complexos. Outro desafio é escalar a produção desse modelo para torná-lo mais acessível e econômico, ampliando sua utilização em diferentes áreas.” Complementa Thayná
Além dos pesquisadores do CNPEM, o estudo contou com o apoio de especialistas da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e da Universidade do Porto, que contribuíram para a análise dos dados e otimização das técnicas de bioimpressão.
Prêmio
O Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) foi reconhecido com o prêmio “Embrace – conexões de impacto 2022” da Natura & Co pelo desenvolvimento da tecnologia Human-on-a-chip, na categoria “Projetos de Valor”. Essa inovação, que simula órgãos humanos em laboratório, permite testes de toxicidade em ingredientes cosméticos sem o uso de animais, reforçando a segurança e precisão nos estudos.
O projeto faz parte do Laboratório Nacional de Biociências (LNBio), que integra a RENAMA (Rede Nacional de Métodos Alternativos), coordenada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). A RENAMA promove métodos alternativos ao uso de animais, oferecendo infraestrutura e capacitação. Em 2022, a Natura e o CNPEM organizaram uma capacitação focada em “Sistemas Microfisiológicos Humanos” para impulsionar essa tecnologia na América Latina, destacando a liderança brasileira na pesquisa ética e sustentável.