Assessoria de Comunicação em 28/01/2022
Combinação de materiais simples e baratos, estudados com uma infraestrutura sofisticada de nanotecnologia, surpreende por viabilizar aplicações em amostras complexas promissoras de sensoriamento ambiental e até diagnósticos da COVID-19
Uma fina camada de detergente (nanocamada, sendo mais de 50000 vezes inferior ao diâmetro de um fio de cabelo) depositada sobre uma estrutura de papel queimado (pirolisado), materiais simples e de baixo custo mas que, quando manipulados e analisados com os mais avançados recursos da nanotecnologia, geraram inovação na área de análises químicas.
Um estudo do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), coordenado pelos pesquisadores Renato Sousa Lima e Murilo Santhiago e publicado na ACS Applied Materials & Interfaces (https://pubs.acs.org/doi/10.1021/acsami.1c18778), demonstrou que essa inusitada combinação de materiais é promissora para solucionar um grande obstáculo no desenvolvimento de biossensores eletroquímicos para análise de amostras biológicas complexas, como plasma e soro sanguíneos: impedir a incrustação de proteínas (contidas nesse tipo de amostra) nos eletrodos dos dispositivos de diagnóstico. Esse fenômeno é responsável pela perda de precisão clínica das medidas de referência, levando a falsos positivos e negativos.
O papel pirolisado já vinha sendo usado como eletrodo poroso em experimentos do CNPEM com sensores projetados para monitoramento ambiental. O material se revelou promissor para aplicações voltadas a detectar contaminações de água por fosfato (https://pubs.acs.org/doi/10.1021/acssensors.1c01302). O pesquisador Renato Sousa Lima explica que as amostras usadas nesse estudo permitem detecção mais rápida e são usualmente menos complexas que os fluidos biológicos de modo que os eletrodos estão menos sujeitos à perda de desempenho pelo problema da incrustação.
Ainda assim, o método criado no CNPEM possibilitou um ganho de sensibilidade de 33 vezes em relação ao uso tradicional do eletrodo, contribuindo para um monitoramento ambiental eficiente (baixas concentrações de elementos tóxicos podem ser detectadas) a partir de materiais abundantes e de baixo custo.
Inovação em diagnósticos clínicos
Todas as estratégias de última geração descritas na literatura científica para superar o desafio da incrustação de eletrodos por proteínas em fluidos biológicos registram comprometimento da sensibilidade das medições ao longo do tempo. Diferentemente, o método proposto pelos pesquisadores do CNPEM gerou um resultado inverso.
“Essa nova abordagem leva a um aumento de 13 vezes na resposta do dispositivo (corrente elétrica gerada por reações eletroquímicas, ou seja, oxidação e redução) em relação às respostas originais após 1 h de exposição a plasma humano não processado”, revela Lima. “Essas condições são muito severas e costumam gerar uma perda significativa da funcionalidade de sistemas convencionais. Surpreendentemente, o nosso método não apenas suportou tais condições, mas levou a um ganho da sensibilidade sendo, assim, promissor para diagnósticos precisos em amostras de soro e plasma”, continua o pesquisador.
Os recursos de microscopia e espectroscopia do Laboratório Nacional de Nanotecnologia (LNNano) revelaram com precisão como a interação de uma gota de detergente de baixo custo, o Tween 20 (T20), é capaz de criar uma camada de 2 nanômetros de revestimento hidrofílico que impede a bioincrustração no papel pirolisado usado como eletrodo e, ao mesmo tempo, permite a penetração de amostras líquidas pelos poros do papel, ampliando a área de contato da amostra com o eletrodo e potencializando as reações eletroquímicas que se busca detectar.
“A taxa de penetração do líquido pelos poros do papel pode ser ajustada com outros tipos de nanorrevestimentos visando aplicações futuras na área da saúde, como já vem sendo estudado pelo grupo”, destaca o pesquisador Santhiago.
A plataforma obteve 100% de sucesso no reconhecimento de anticorpos do vírus SARS-CoV-2 presentes em dezenas de amostras de soro humano, distinguindo em poucos minutos amostras de indivíduos saudáveis de infectados.
Plataforma de “pescaria”
O dispositivo, construído a partir de materiais acessíveis e de baixo custo, permite produção em escala e sem geração de resíduos. Ele foi também projetado, em escala nanométrica, para o diagnóstico clínico da COVID-19.
Para tanto, papel e detergente foram combinados com o uso de nanopartículas de ouro (sintetizadas em laboratório) rapidamente modificadas com a proteína Spike (S) do vírus através de uma única etapa de gotejamento (30 minutos).
Essa modificação pode ser facilmente aplicada para o ancoramento de demais biomoléculas que possam atuar como receptores de biomarcadores de outras doenças. Esse conceito modular abre, assim, oportunidade para uso do método em diversos tipos de doenças.
Por conta dessa versatilidade, a plataforma pode ser comparada à uma “vara de pescar biotecnológica”, onde metaforicamente diferentes biorreceptores podem ser usados como “iscas” para a interação específica com biomarcadores e consequente diagnóstico de várias doenças. O pesquisador Renato Sousa Lima complementa:
“Se eu uso a proteína S na superfície de uma mínima concentração de nanopartículas de ouro como elemento de reconhecimento, como foi o nosso teste, essa proteína S vai reconhecer o anticorpo do Sars-Cov-2 quando a gente coloca soro do paciente na plataforma. Se eu quisesse detectar uma outra coisa, ao invés de colocar a proteína S, bastava colocar um receptor da H1N1, influenza, malária, cólera, câncer, etc.”
Próximos passos
O estudo teve a colaboração do professor Wendel A. Alves, da UFABC, e conta com financiamentos da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP) e do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).
Como próxima etapa de trabalho, o grupo prevê aplicações a um número ainda mais elevado de amostras de soro de pacientes, estudos voltados a novas estratégias que possibilitem a superação de outros desafios relacionados à conservação e estabilidade dos biomarcadores necessários em dispositivos de diagnóstico e o uso de inteligência artificial e machine learning para tornar os diagnósticos ainda mais precisos e seguros.
“O atual cenário de pandemia da COVID-19 tem demonstrado a necessidade da aplicação da ciência no desenvolvimento de tecnologias de diagnóstico não apenas acessíveis, simples e eficientes, mas também que possam ser aplicadas no nosso dia-a-dia. Assim, os nossos esforços seguem direcionados para criação de dispositivos que possam ser produzidos em larga-escala, que possibilitem o aumento da acurácia dos resultados em amostras complexas (soro e plasma), com menor percentual de falsos positivos ou negativos, e cujos insumos possuam alta estabilidade e possam, assim, manter intacta a sua funcionalidade considerando as etapas envolvidas na comercialização e uso de rotina dessas tecnologias (como transporte e armazenamento)”, explica Lima.
Sobre o CNPEM
Ambiente de pesquisa e desenvolvimento sofisticado e efervescente, único no País e presente em poucos polos científicos no mundo, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) é uma organização social supervisionada pelo Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações (MCTI).
O Centro é constituído por quatro Laboratórios Nacionais e é berço do mais complexo projeto da ciência brasileira – o Sirius – uma das mais avançadas fontes de luz síncrotron do mundo.
O CNPEM reúne equipes multitemáticas altamente especializadas, infraestruturas laboratoriais mundialmente competitivas e abertas à comunidade científica, linhas de pesquisa em áreas estratégicas, projetos inovadores em parcerias com o setor produtivo e ações de treinamento para pesquisadores e estudantes.
O Centro constitui um ambiente movido pela busca de soluções com impacto nas áreas de saúde, energia, meio ambiente, novos materiais, entre outras.
As competências singulares e complementares presentes no CNPEM impulsionam pesquisas e desenvolvimentos nas áreas de luz síncrotron; engenharia de aceleradores; descoberta de novos medicamentos, inclusive a partir de espécies vegetais da biodiversidade brasileira; mecanismos moleculares envolvidos no surgimento e na progressão do câncer, doenças cardíacas e do neurodesenvolvimento; nanopartículas funcionalizadas para combate de bactérias, vírus, câncer; novos sensores e dispositivos nanoestruturados para os setores de óleo e gás e saúde; soluções biotecnológicas para o desenvolvimento sustentável de biocombustíveis avançados, bioquímicos e biomateriais.