Jornal da Unicamp em agosto de 2016
Uma equipe multidisciplinar de cientistas, envolvendo pesquisadores da Unicamp e dos Laboratórios Nacionais de Luz Síncrotron (LNLS), Biociências (LNBio) e Nanotecnologia (LNNano) vem desenvolvendo uma tecnologia baseada em nanopartículas que pode fazer com que medicamentos quimioterápicos atinjam especificamente as células do câncer, causando um dano mínimo às células saudáveis do corpo. Os primeiros testes do modelo, em culturas celulares, já foram realizados e são descritos em artigo publicado no periódico Langmuir.
A maioria das drogas usadas na quimioterapia do câncer ataca o processo de divisão celular. Embora a divisão descontrolada seja a característica principal dos tumores, células saudáveis também se dividem e, por conta disso, acabam sofrendo com a ação dos quimioterápicos que, uma vez aplicados, se espalham por todo o corpo, causando os efeitos colaterais associados ao tratamento. Em todo o mundo, cientistas buscam tecnologias capazes de garantir que a quimioterapia afete somente o tecido doente, poupando o restante do corpo.
O sistema testado pelo grupo brasileiro é composto de nanopartículas de sílica – o mesmo material dos grãos areia – “decoradas”, ou revestidas, por um tipo de molécula orgânica, o folato. “A célula de câncer expressa mais receptores de folato que as células normais”, explica o biólogo Jörg Kobarg, professor da Faculdade de Ciências Farmacêuticas e do Instituto de Biologia (IB) da Unicamp. Com isso, as nanopartículas, que podem carregar quimioterápicos, acabam sendo mais absorvidas pelo tumor do que por tecidos saudáveis.
“Ainda não sabemos exatamente se foi o folato que criou essa seletividade”, disse o pesquisador. “Mas as partículas estão decoradas com o folato, e a célula de câncer expressa mais desse receptor, então essa poderia ser uma explicação. A gente observou que, realmente, a nossa partícula é bem mais tóxica para a célula de câncer do que para a célula normal”.
Insolúvel
O artigo na Langmuir, “Functionalized Silica Nanoparticles As an Alternative Platform for Targeted Drug-Delivery of Water Insoluble Drugs” (”Nanopartículas de Sílica Funcionalizadas Como Plataforma Alternativa para a Entrega Direcionada de Drogas Insolúveis em Água”) descreve a ação do modelo sobre linhagens de células da próstata, saudáveis e tumorais. As nanopartículas revestidas de folato foram carregadas com curcumina, um pigmento extraído do açafrão-da-terra que vem sendo estudado como possível medicamento contra o câncer.
Em tese, disse Kobarg, as partículas poderiam transportar qualquer droga, inclusive quimioterápicos tradicionais. O pesquisador Mateus Borba Cardoso, do LNLS, também autor do artigo, explicou a escolha da curcumina para o teste: “Ela é colorida, o que é uma vantagem na hora de analisar as partículas, e é insolúvel em água, o que traz ainda uma vantagem adicional: hoje não é tão utilizada em tratamentos porque, se você tentar dissolver no sangue, não vai funcionar. Só que a gente conseguiu colocá-la dentro das partículas, e as partículas são solúveis. São as nanopartículas que levam o fármaco”.
“A sílica é capaz de transportar coisas dentro dos poros”, disse ele, descrevendo os motivos pelos quais esse material específico foi escolhido. “Mas alguém poderia dizer, existem outras nanopartículas que transportam também, como os lipossomas”, que são invólucros orgânicos, de material semelhante ao que existe nas membranas celulares. “Então, primeiro motivo: a sílica pode transportar coisas; segundo motivo, e o mais importante: a gente consegue modificar a superfície, consegue fazer uma química de superfície, reações que nos permitem colocar coisas que levem as nanopartículas até o ponto em que temos interesse, como por exemplo foi o caso do folato. Nos lipossomas, não poderíamos fazer essas reações de superfície. Lipossomas são muito frágeis”. O uso do folato, dizem Kobarg e Cardoso, foi apenas um primeiro passo: novos estudos testarão modos de “decorar” a sílica com anticorpos, aumentando a seletividade da partícula por células de câncer.
Aplicação
O artigo publicado constata a afinidade das nanopartículas revestidas de folato por células de câncer, e sua toxicidade contra essas células. Trata-se de um resultado inicial promissor, mas a taxa de técnicas propostas para o combate ao câncer que se mostram promissoras, em testes in vitro, e que acabam se revelando realmente viáveis como tratamento é muito baixa – da ordem de 5%, segundo algumas estimativas.
“É um índice baixo, muito baixo”, reconhece Cardoso. “Eu, particularmente, acredito que antes que a gente tenha algum ensaio in vivo, mais definitivo, precisamos aprimorar um pouco o sistema, que é o que já estamos fazendo, tentando botar anticorpos na superfície. Porque o anticorpo com a célula de câncer, é como se fosse chave e fechadura. Então, a nossa ideia é colocar anticorpos para que somente um único tipo de célula reconheça aquela nanopartícula, através do anticorpo, e aí o tratamento seria muito mais eficaz”.
“E não só isso”, prossegue ele. “Estamos trabalhando para que essas nanopartículas, mesmo num fluido biológico, não tenham a tendência à agregação. Quando a gente põe qualquer tipo de nanopartícula num fluido biológico, como o sangue, as proteínas do meio começam a grudar nelas, e aí elas deixam de ter o efeito nano, passam a ter um efeito já não tão potente, porque o tamanho já não é mais tão pequeno”.
O pesquisador disse que o grupo procura estratégias para evitar que as proteínas se aglomerem sobre as partículas. “Com isso, os experimentos que fizermos in vitro terão resultados muito próximos dos que veremos in vivo”, acredita. “Hoje temos essa taxa tão baixa de conversão em tratamentos muito por causa disso: os efeitos biológicos não são levados em consideração nos primeiros testes. A gente poderia testar essa partícula e até mesmo ver que ela é eficiente, mas seria uma aposta. Se conseguirmos desenvolver esse mesmo tipo de sistema, fazendo com que as proteínas de superfície não se agreguem à nanopartícula, aí eu diria que a taxa sai de 5% para 90% de chance”.
Síncrotron
O Laboratório Nacional de Luz Síncrotron, do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CPNEM) do governo federal, foi empregado na análise das nanopartículas usadas no experimento. O síncrotron utiliza elétrons acelerados quase à velocidade da luz para produzir feixes de radiação penetrante, capaz de gerar imagens detalhadas e levantar dados sobre as características dos materiais estudados.
Cardoso descreveu a operação para a reportagem, enquanto uma pesquisadora inseria uma amostra de nanopartículas no equipamento. “Ela injeta a amostra, com a seringa, e monitora numa câmera digital para ver se não há bolhas de ar. Porque senão, quando a radiação passar, ela não vai ler a partícula, vai ler o ar. Então, o ideal é a gente ver que não tem bolhas. Aí a luz vem, passa pela amostra e é captada no detector. O detector gera uma imagem bidimensional que a gente converte numa curva, numa tabela que mostra a intensidade da luz por ângulo de incidência. Com essa curva, conseguimos obter o tamanho e a forma das partículas”. Outras pesquisas sobre aplicações de nanopartículas na saúde humana realizadas no LNLS envolvem sistemas desenvolvidos para combater bactérias e vírus.
Repercussão: CRUESP; LabNetwork; Diário da Saúde; Sindhosp; Portal MCTI