Folha de S.Paulo, 28/12/2018
Retrospectiva inclui também novo acelerador de partículas brasileiro e chinês que disse ter editado DNA de bebês Virou clichê dizer que 2018 não foi um ano fácil para ninguém, mas quem de fato pode afirmar isso com propriedade é a ciência. Afinal, ela perdeu, em março, o físico Stephen Hawking, seu porta-voz mais famoso, e sofreu sua maior tragédia no Brasil em setembro, com o incêndio do Museu Nacional, no Rio. Teve até furto da medalha Fields justamente na primeira vez em que o Brasil sediou o Congresso Internacional de Matemáticos, no Rio.
Para compensar as perdas, porém, vimos a inauguração do novo acelerador de partículas brasileiro, o Sirius, em Campinas (SP), o lançamento da Falcon Heavy em fevereiro, com direito a carro voando pelo espaço ao som de David Bowie, a detecção de moléculas orgânicas complexas em Marte, novas pesquisas que avançam nosso conhecimento sobre os neandertais e mulheres ganhando espaço num ambiente predominantemente masculino, com Prêmio Nobel e campanhas contra o assédio e a discriminação na academia. Veja abaixo os principais destaques:
Incêndio no Museu Nacional do Rio
A maior tragédia da ciência nacional aconteceu na noite de 2 de setembro, quando o Museu Nacional, na Quinta da Boa Vista, no Rio, foi engolido pelo fogo. Grande parte de seu acervo, de valor inestimável, foi perdida. O prédio histórico ficou em ruínas. A tragédia, como muito se falou, era anunciada, já que a queixa dos pesquisadores sobre o estado precário do imóvel, que pertenceu à família imperial, era antiga. Durante as escavações dos escombros, porém, foram recuperadas peças importantes, como partes do esqueleto de Luzia, a mulher mais antiga já encontrada no Brasil. Os custos estimados para reconstrução do prédio e dos laboratórios por parte da direção do museu é de até R$ 300 milhões, valor que ainda não foi obtido.
Sirius
Um dos poucos alentos para a ciência nacional em um tempo de vacas magras e cortes orçamentários foi a conclusão a inauguração da primeira volta de luz no Sirius, acelerador de partículas que, em alguns aspectos, será o melhor do mundo. Com 80% dos componentes nacionais e custo total que pode chegar a R$ 1,8 bilhão, o Sirius é a menina dos olhos do MCTIC (Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações) e do CNPEM (Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais), em Campinas. Entre suas possibilidades de uso está o estudo de proteínas e outras moléculas e partículas ligadas à vida e a compreensão de como materiais interagem em nível microscópico, permitindo, por exemplo a elaboração de novas técnicas de exploração de petróleo e a investigação de fósseis e obras de arte do passado.
Furto de medalha no congresso de matemática
Em 2018, o Congresso Internacional de Matemáticos pela primeira vez aconteceu na América Latina e o Rio, sede do Impa (Instituto de Matemática Pura e Aplicada), foi escolhido para abrigar o evento. Trata-se do maior acontecimento da área, que ocorre apenas a cada quatro anos. É no ICM que são conhecidos os ganhadores da Medalha Fields, apelidada de “Nobel da matemática” e que reconhece aqueles que tenham realizado grandes feitos antes dos 40 anos de idade. O evento foi um sucesso, mas o roubo da medalha de Caucher Birkar, logo após ele receber o prêmio, roubou os holofotes. No fim, o matemático iraniano de origem curda recebeu uma nova; o ladrão, porém, escapou.
Adeus a Stephen Hawking
O mais conhecido cientista de atualidade morreu no dia 14 de março. Mas, além do popstar que foi alvo de cinebiografia e figurante em “Simpsons”, Stephen Hawking foi quem descobriu que os buracos negros não são totalmente negros, já que emitem uma sutil forma de radiação, e com isso encolhem até desaparecer —a chamada radiação Hawking. Para muitos, ele era o gênio que vivia em uma cadeira de rodas, o polemista inveterado, o herói das políticas em favor dos deficientes físicos e o triunfo do espírito humano diante das maiores adversidades. Entre suas obras acessíveis ao público estão “Uma Breve História do Tempo” e o póstumo “Breves Respostas para Grandes Questões”.
Humanos editados
Jiankui He, pesquisador chinês que afirma ter editado o genoma de bebês humanos – Kin Cheung/Associated Press Em novembro, o médico chinês Jiankui He anunciou que haviam nascido os primeiros bebês geneticamente modificados do mundo. A fala foi suficiente para causar um furor no mundo científico, mesmo sem provas do feito nem publicação do achado em uma revista científica até o momento. He teria usado a técnica de edição genética conhecida como Crispr, que simplificou a maneira de alterar as informações contidas do DNA mas ainda considerada insegura por especialistas. O gene supostamente alterado está ligado à produção de uma proteína que determina uma espécie de imunidade natural ao HIV. Os questionamentos éticos pairam sobre o suposto feito não só pelas inúmeras possibilidades que são abertas, como a criação de super-humanos, mas pelo fato de que os riscos corridos pelos bebês seriam desnecessários, já que há outras formas de se proteger contra a contaminação por HIV.
Falcon Heavy e Starman
Parecia impossível, mas a empresa SpaceX foi lá e fez. Em fevereiro,lançou seu primeiro superfoguete, o Falcon Heavy, e colocou um carro —isso mesmo, um carro— a caminho da órbita de Marte. O “piloto” era um manequim batizado de Starman, em homenagem à canção de David Bowie. As imagens incríveis são o prenúncio de uma nova era na corrida espacial, em que empresas começam a apitar tanto quanto governos. O Falcon Heavy é hoje o foguete mais poderoso em operação e também um dos mais versáteis, já que tem capacidade de voltar à terra firme de forma segura e controlada para ser reaproveitado em uma nova missão.
Mulheres na ciência
O ano de 2018 foi de luta para as mulheres em busca de condições de igualdade também na área científica. No Cern (Organização Europeia para Pesquisa Nuclear), um dos institutos de pesquisas mais importantes do mundo, um pesquisador foi suspenso após dizer que as mulheres não tinham contribuído para o avanço da física. Ironicamente, em 2018, depois de 55 anos, a canadense Donna Strickland ganhou o Prêmio Nobel de Física por seu método de geração de pulsos ópticos ultracurtos de alta intensidade. Instituições como o Cern e a Unicamp estudam maneiras de implementar políticas que inibam o sexismo e o assédio sofrido pelas mulheres.
Planeta vermelho em alta
Marte rendeu boas notícias para os terráqueos. Em junho, o jipe Curiosity detectou pela primeira vez moléculas orgânicas complexas, sinal de que Marte teve no passado todos os ingredientes para a vida. Em julho, foi a vez de dados da Mars Express revelarem a existência de um lago sob a calota polar marciana — um oásis marciano escondido pelo gelo. E, claro, em novembro tivemos o pouso da sonda InSight, para “radiografar” o interior do planeta. É muita coisa boa em um ano só!
Arte neandertal
Com alguns achados em sítios arqueológicos na Espanha, caiu a barreira mais importante que restava entre nossa espécie (Homo sapiens) e os neandertais (Homo neanderthalis). Desenhos em cavernas e adornos corporais mostram que nossos parentes também eram capazes de pensamento simbólico complexo, ou seja, aquele que atribui significado a imagens e padrões criados por eles mesmos. A conclusão foi possível graças às datações, que mostraram que essa atividade encontrada nas cavernas era anterior à chegada do H. sapiensno continente europeu. Em 2018 também foram encontradas evidências de que espécies distintas de hominídeos, os neandertais e os denisovanos, faziam sexocom relativa assiduidade, gerando híbridos. Isso também acontecia entre neandertais e H. sapiens. Ou seja, nem as barreiras sexuais eram tão consistentes assim.
Macacas clonadas
Depois de décadas de tentativas, cientistas chineses anunciaram em janeiro de 2018 os primeiros clones de primatas. São duas fêmeas de cinomolgo, macaco comum no sudeste asiático, apellidadas de Zhong Zhong e de Hua Hua. Com os novos macacos, espera-se obter bons modelos de estudos para pesquisas biomédicas, como a de novas drogas. Mas o processo ainda deve ser aperfeiçoado, já que são necessárias dezenas de tentativas para obter um nascimento saudável. Dois do mesmo sexo procriam, com uma ajudinha Também na China foram obtidos camundongos por uma via nada tradicional, a partir da combinação de dois pais e de duas mães. Para isso, foram empregadas algumas técnicas de biologia celular e molecular, como reverter o espermatozoide a um estágio de célula-tronco, colocar seu núcleo em um óvulo “emprestado” e só então fecundá-lo com um outro espermatozoide. Camundongos filhos de duas mães viveram normalmente; os de dois pais, morreram 48h após o nascimento.
Via Láctea em 3D
Em abril foi divulgado o primeiro pacote de dados do satélite europeu Gaia. Com um catálogo de mais de 1 bilhão de estrelas, ele representa o mais perto que já chegamos de montar um mapa 3D da nossa galáxia, a Via Láctea. Esses resultados serão fundamentais para todo tipo de pesquisa astrofísica daqui por diante; é o catálogo de objetos astronômicos mais sofisticado já produzido.
Caçadores de planetas e luas
O ano de 2018 trouxe o adeus ao satélite caçador de planetas Kepler, em outubro, e a chegada de seu sucessor, o Tess, lançado em abril. E uma descoberta particularmente intrigante, iniciada com o Kepler, foi corroborada com a ajuda do Hubble: a primeira exolua. Ela orbita um planeta maior que Júpiter e tem o tamanho de Netuno. Um mistério bizarro a ser mais investigado no ano que vem.