Revista Fapesp, 09/2016
Universidade, que tem como diretriz o compromisso com a inovação baseada em pesquisa, depositou este ano seu milésimo registro de propriedade intelectual
A Unicamp atingiu, em julho deste ano, a marca de mil patentes ativas, no Brasil e no exterior, depois do depósito noInstituto Nacional de Propriedade Industrial (INPI) de registro referente a levedura modificada geneticamente. Desse total, 125 estão licenciadas para o mercado, segundo a Agência de Inovação Inova Unicamp, órgão responsável pela gestão da propriedade intelectual e transferência de tecnologia da universidade. Um levantamento feito pelo INPI em 2015 mostrou que a instituição é a terceira maior patenteadora do país. De autoria do professor Gonçalo Amarante Guimarães Pereira, do Instituto de Biologia (IB), e de Leandro Vieira dos Santos e Renan Augusto Siqueira Pirolla, a milésima patente está relacionada ao desenvolvimento de uma levedura industrial geneticamente modificada para o processo de obtenção de etanol de segunda geração, visando ao aproveitamento de açúcares presentes na palha, bagaço, folhas e caule da cana-de-açúcar. O processo de proteção da patente contou com apoio da FAPESP.
“É significativo atingir a milésima patente no ano em que a Unicamp comemora seu cinquentenário. Na Inova trabalhamos não somente para proteger as tecnologias desenvolvidas no âmbito da universidade, mas também para levá-las ao mercado”, afirma Milton Mori, diretor-executivo da Agência de Inovação. “Nosso grande desafio agora é licenciar essas patentes.”
Um olhar em retrospectiva para a história da Unicamp permite ver que sua trajetória é marcada pela naturalidade no relacionamento com a indústria, pelo diálogo com as agências de fomento e por sua rápida inserção no processo produtivo. Desde sua criação, a universidade realizou pesquisas com alto potencial para o setor industrial e em benefício da sociedade. De seus laboratórios surgiram, entre outras inovações, fibras ópticas, lasers e aparelhos para as áreas de telecomunicações e microeletrônica, equipamentos e processos para o setor energético (exploração de petróleo, produção de biocombustíveis, aperfeiçoamento da energia solar), novos produtos, ingredientes e formulações para o segmento alimentício e tecnologias para o campo, entre elas ferramentas geotecnológicas que impulsionaram no país o avanço da agricultura de precisão.
Ao atuar como uma fonte de pesquisas inovativas, a instituição atraiu para seus arredores um polo de alta tecnologia, que acabou por estimular o surgimento de uma série de instituições dedicadas à inovação. Entre elas destacam-se o Centro de Pesquisa e Desenvolvimento em Telecomunicações (CPqD), um dos maiores polos de pesquisa e desenvolvimento (P&D) em telecomunicações e tecnologia da informação (TI) da América Latina, e o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM), responsável pela gestão de quatro laboratórios nacionais: de Luz Síncroton (LNLS), de Ciência e Tecnologia de Bioetanol (CTBE), de Biociências (LNBio) e de Nanotecnologia (LNNano). O LNLS é detentor de um acelerador de partículas usado como fonte de luz, o primeiro instalado no hemisfério Sul. As fontes de luz síncrotron são equipamentos planejados para produzir um tipo de radiação capaz de penetrar a matéria e revelar sua estrutura molecular e atômica.
Muito em razão da existência da Unicamp, Campinas também se tornou a sede do Centro de Tecnologia da Informação Renato Archer, unidade de pesquisa do Ministério da Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações (MCTIC), que atua em áreas de fronteira do conhecimento do setor de Tecnologias da Informação e Comunicação (TICs), do Biofabris, uma das unidades integrantes da rede de Institutos Nacionais de Ciência e Tecnologia (INCTs) do governo federal, cujo foco é o desenvolvimento de biomateriais, dispositivos biomédicos e substitutos biológicos para órgãos humanos, e do Parque Empresarial Techno Park, um condomínio que abriga mais de 60 companhias de diversos setores da economia.
A marca do criador
A ideia de que a Unicamp deveria ser uma instituição superior voltada a estimular o surgimento de avanços tecnológicos e com atuação próxima ao setor empresarial já era defendida por Zeferino Vaz, que conduziu a implantação da universidade e foi seu primeiro reitor. “Zeferino foi um dos primeiros a compreender que a crescente industrialização do país criava uma demanda nova por pessoal qualificado, sobretudo no estado de São Paulo, que na época detinha 40% da capacidade industrial brasileira e 24% de sua população economicamente ativa”, relatou o jornalista Eustáquio Gomes no livro O Mandarim – História da infância da Unicamp (Editora Unicamp, 2006). O jornalista foi o responsável pela implantação da Assessoria de Comunicação da Unicamp em 1982 e foi seu coordenador por mais de duas décadas.
Até os anos 1960, o sistema de ensino superior estava direcionado para a formação de profissionais liberais que eram demandados pelo processo de urbanização, entre eles médicos, advogados e engenheiros. “Naquela ocasião, era bem-vinda uma universidade que desse ênfase à pesquisa tecnológica e, ao mesmo tempo, tivesse vínculos, ainda que indiretos, com o setor de produção de bens e serviços”, afirma o engenheiro eletrônico José Ellis Ripper Filho, que fez parte do grupo de profissionais convidados por Zeferino Vaz para o nascente Instituto de Física. Ripper foi o responsável pela montagem na universidade do primeiro Departamento de Física Aplicada do Brasil.
Ao longo dos primeiros 10 anos da Unicamp, o compromisso assumido por Zeferino de valorizar a inovação tecnológica e estreitar os vínculos da instituição com o setor produtivo foi expresso em vários momentos. Uma das primeiras unidades de ensino criadas na universidade campineira, por exemplo, foi a Faculdade de Tecnologia de Alimentos, depois renomeada Faculdade de Engenharia de Alimentos (FEA). Pioneira na América Latina, a unidade começou a funcionar em 1967. “Ela iniciou o processo de institucionalização de um novo campo de estudos no país, o da engenharia de alimentos. E hoje é reconhecida como um polo aglutinador de pesquisas, inovações e tecnologias nesse campo do conhecimento”, afirma a pró-reitora de Pesquisa Gláucia Maria Pastore, professora titular da FEA. A criação da faculdade se deu graças ao empenho do engenheiro-agrônomo André Tosello, que havia articulado anos antes a implantação do Centro Tropical de Pesquisas e Tecnologia de Alimentos (CTPTA), depois renomeado para Instituto de Tecnologia de Alimentos (Ital), um dos principais centros científicos e tecnológicos do setor de alimentos e embalagens do país (ver reportagem).
Ainda no início da década de 1970, a Unicamp criou seu Centro de Tecnologia (CT), um órgão de apoio aos institutos e faculdades e de prestação de serviços a terceiros. No CT, estudavam-se modelos, projetos e soluções para a indústria, especialmente a dos setores mecânico e metalúrgico. “O Centro de Tecnologia desempenhou um papel importante. Seu objetivo era ajudar as empresas na resolução de gargalos tecnológicos”, aponta Gláucia Pastore. Na área automotiva, os pesquisadores do CT participaram de estudos sobre o uso do álcool combustível para substituir o petróleo e da construção do primeiro motor a álcool puro.
Naquela mesma época, a universidade começou a oferecer seus primeiros cursos de tecnologia, com a criação das graduações em tecnologia sanitária e em tecnologia da construção civil. As aulas eram ministradas na antiga Faculdade de Engenharia Civil (FEC), que funcionava na cidade vizinha de Limeira. No final da década de 1980, os dirigentes campineiros criaram formalmente o Centro Superior de Educação Tecnológica (Ceset), que incorporou os diversos cursos de tecnologia da instituição. Em 2009, o Ceset foi transformado em uma unidade de ensino e pesquisa e mudou sua denominação para Faculdade de Tecnologia (FT), ainda hoje sediada em Limeira.
“Mantendo os ideais de sua criação, nossa faculdade tem como finalidade promover novos caminhos para solucionar dificuldades que atingem a sociedade, encarando-as como desafios tecnológicos que necessitam do desenvolvimento de dispositivos, sistemas ou processos inovadores para superação”, conta a diretora da Faculdade de Tecnologia, Luísa Andréia Gachet Barbosa. Professores e alunos da unidade têm realizado pesquisas nas áreas de meio ambiente e sustentabilidade (reaproveitamento de resíduos da construção civil), recursos hídricos (tratamento e distribuição de água), informática, telecomunicações e sensoriamento.
Experiência pioneira
Em 1976, Campinas foi palco de uma experiência pioneira no país com a criação da Companhia de Desenvolvimento Tecnológico (Codetec). Apontada por muitos como a primeira incubadora tecnológica do país, ela foi inspirada em um movimento protagonizado pela Universidade Stanford, na Califórnia, no início dos anos 1950, em que a articulação entre a própria universidade, empresas de microeletrônica e instituições de pesquisa deram origem ao Vale do Silício.
“A Codetec surgiu a partir de uma reunião promovida pelo Ministério da Indústria e Comércio na Unicamp”, recorda-se o físico Rogério Cezar de Cerqueira Leite, idealizador e dirigente da instituição por cerca de duas décadas. Segundo ele, dessa reunião foi formada uma comissão que elaborou a proposta de criação de uma companhia privada, com sólida ligação com a Unicamp, voltada para apoiar o estabelecimento de pequenas empresas surgidas na universidade capazes de gerar tecnologia apropriada às condições brasileiras.
De acordo com Cerqueira Leite, dezenas de empresas de base tecnológica de origens e segmentos distintos surgiram na incubadora e ganharam vida, dentre elas a Termoquip, que atuava na área de produção de energia a partir da biomassa, a Criometal, voltada à produção de equipamentos criogênicos, e a Novadata, que iniciou suas atividades produzindo minicomputadores – numa época em que a fabricação de equipamentos do gênero ainda estava engatinhando no mundo.
“A Codetec acolhia professores e alunos munidos de boas ideias e custeava despesas durante o período de desenvolvimento e estruturação do negócio”, ressalta Cerqueira Leite. “Se a viabilidade comercial fosse confirmada, o projeto era destacado da Codetec e uma empresa independente era formada.” Ao longo de sua história, a companhia desenvolveu 80 processos de produção de fármacos, dos quais cerca de 20 foram comercializados por diferentes empresas nacionais. Além destes, a Codetec desenvolveu uma tecnologia de produção de etanol a partir do bagaço de cana-de-açúcar por hidrólise ácida para a Indústrias Villares. Hoje, o chamado etanol celulósico ou de segunda geração é uma promissora fonte de energia sustentável e ambientalmente relevante.
A experiência positiva da Codetec serviu de estímulo para a Unicamp criar em 2001 sua própria incubadora, a Incamp, que nasceu com a finalidade de apoiar o surgimento de negócios inovadores de base tecnológica. Desde então, 44 empresas já foram graduadas e outras 25 encontram-se em processo de incubação. Essas startups integram o grupo de 514 “empresas-filhas” da Unicamp, que também inclui companhias formadas por alunos, ex-alunos ou pessoas com vínculo empregatício com a universidade e empreendimentos cuja atividade principal deriva de uma tecnologia licenciada pela Unicamp (saiba mais sobre as empresas-filhas).
Antes mesmo da Lei de Inovação, de 2004, que facilitou a criação de empresas tendo como sócios professores universitários, a Unicamp decidiu liberar seus docentes do Regime de Dedicação Integral à Docência e à Pesquisa (RDIDP) para que abrissem seus próprios negócios, como fizeram o engenheiro eletrônico José Elis Ripper e o biólogo Paulo Arruda, entre outros, por exemplo (ver reportagem).
A criação da Inova Unicamp em julho de 2003, durante a administração de Carlos Henrique de Brito Cruz (2002-2005), um de seus principais idealizadores, foi consequência natural do movimento da universidade em favor da pesquisa aplicada e do desenvolvimento de novas tecnologias. Para o professor Roberto de Alencar Lotufo, diretor-executivo da Inova entre 2004 e 2013, a agência foi criada com o objetivo de aumentar o impacto do ensino, da pesquisa e da extensão da Unicamp por meio de iniciativas de inovação e empreendedorismo em benefício da sociedade. “A Inova foi pioneira em vários aspectos. Sua missão foi gerir a inovação tecnológica surgida na universidade e intermediar a transferência de tecnologia e as parcerias entre a Unicamp e as empresas”, conta Lotufo. “Creio que foi e é bem-sucedida nesse objetivo.” Desde sua implantação, a Inova é uma das entradas para empresários que querem modernizar seus processos industriais, capacitar recursos humanos ou incorporar a suas linhas de produção os frutos das pesquisas realizadas nos laboratórios da instituição.
“A inovação é parte da cultura da Unicamp desde o começo. O ponto forte da agência é a junção de todas as frentes que envolvem inovação tecnológica, como transferência de tecnologia, propriedade intelectual, empreendedorismo, o Parque Científico e Tecnológico e a incubadora de empresas”, afirma Milton Mori. A história da universidade neste ramo teve início em 1984 com a criação da Comissão Permanente de Propriedade Industrial, cujo propósito era atender professores inventores da instituição.
“A Unicamp é uma universidade jovem e pioneira na gestão da propriedade intelectual e serve como exemplo para outras universidades conseguirem converter o conhecimento gerado em aplicações industriais, favorecendo o avanço tecnológico e a competitividade das empresas”, destaca Patrícia Leal Gestic, diretora da Propriedade Intelectual da Inova. “Desde meados da década de 1980, a propriedade industrial é tema relevante e estratégico para a universidade.”
Parque tecnológico
Com a implantação da Incamp e da Inova, o passo seguinte da Unicamp foi estruturar seu próprio parque tecnológico. O projeto de criação do Parque Científico e Tecnológico, inicialmente denominado Polo de Pesquisa e Inovação da Unicamp, foi apresentado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico, Ciência e Tecnologia do Estado de São Paulo em 2008. Sua construção foi iniciada no ano seguinte e o primeiro convênio com uma empresa parceira, a Cameron do Brasil, foi assinado em 2011. No começo deste ano, o parque obteve o credenciamento definitivo no Sistema Paulista de Parques, entidade do governo que dá suporte à rede de 28 parques tecnológicos existentes ou em implantação em São Paulo.
O parque envolve um conjunto de áreas para instalações dedicadas a abrigar competências científicas e tecnológicas e laboratórios de inovação voltados ao desenvolvimento e à execução de projetos de pesquisa financiados por instituições públicas e privadas. A primeira unidade a ficar pronta foi o prédio principal, inaugurado há dois anos. Nele, encontram-se em operação laboratórios de pesquisa de multinacionais (Samsung, IBM, Lenovo e Motorola), do Instituto de Pesquisas Eldorado, que atua no desenvolvimento de softwares, hardwares, sistemas e testes de produtos eletrônicos, do Núcleo Softex Campinas, voltado à promoção do software nacional, e da MC1 Tecnologia da Informação, uma empresa-filha da Unicamp. Algumas dessas empresas já faziam parte do Inovasoft, o Centro de Inovação em Softwares da Unicamp, instalado em 2006 em uma área contígua ao campus de Barão Geraldo. Nas negociações para incorporação de novos laboratórios ao complexo há uma regra estrita: só são admitidas iniciativas que contemplem convênios com grupos de pesquisa da Unicamp.
Criado com o objetivo de ser mais um instrumento da Unicamp para fomentar a inovação e o desenvolvimento socioeconômico do país, o parque reflete as diretrizes que nortearam a própria fundação da instituição há 50 anos: manter estreita relação com o setor produtivo por meio do compromisso com a inovação baseada em pesquisa. “A Unicamp nasceu com base em um projeto solidamente sustentado pela indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão”, destaca o reitor José Tadeu Jorge. “Desde o início, a universidade estimulou a intensa realização de pesquisa qualificada para que a ponta do conhecimento enriquecesse a formação dos seus alunos, ao mesmo tempo que estabeleceu relações com diversos setores sociais para que esse conhecimento novo chegasse à sociedade de maneira efetiva.”