Grupo de biologia computacional do CNPEM criou serviço online gratuito que facilita a busca, categorização e seleção de locais de interação de proteínas com fármacos
Pesquisadores do Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) acabam de criar um serviço online chamado KVFinder-web. A página, aberta à comunidade acadêmica e ao público geral, permite que o usuário enxergue e categorize as cavidades não só de proteínas, como de qualquer tipo molécula. A novidade tem o potencial de facilitar pesquisas em múltiplas áreas de conhecimento.
O estudo que resultou na ferramenta foi publicado em maio na revista científica Nucleic Acids Research. Já no mês seguinte, outro artigo do grupo de biologia computacional do Laboratório Nacional de Biologia do CNPEM, em associação com a Université Toulouse III─Paul Sabatier, conquistou a capa da JCIM (Journal of Chemical Information and Modeling).
O artigo-capa é derivado do uso inesperado do programa para uma estrutura que nada tem a ver com uma proteína. O uso alternativo mirou identificar e quantificar as dimensões do interior das chamadas “gaiolas supramoleculares”, estruturas artificiais, geralmente compostas por múltiplos átomos de carbono. As gaiolas são utilizadas para isolar, alojar ou aprisionar moléculas em reações químicas, com objetivos diversos. Por exemplo, encapsular subprodutos nocivos ou explosivos durante o processo de síntese de um composto químico.
O KVFinder pôde, com sucesso, caracterizar o espaço no interior das gaiolas supramoleculares. Sabendo o volume e abertura da gaiola, é possível determinar, por exemplo, se vale a pena ou não sintetizar a molécula. O estudo mostra como o destino de softwares deste tipo pode ser diverso e como ainda são subutilizados.
Por que as cavidades?
Apesar de o KVFinder conseguir analisar a superfície de qualquer molécula e, caso ela venha a ter cavidades, identificar e dar características a elas, as ferramentas foram inicialmente pensadas para o estudo de macromoléculas, principalmente para proteínas.
A razão é que há tempos é conhecida a importância de espaços em uma proteína na relação com sua funcionalidade. Esses espaços se formam pelo dobramento da molécula em si mesma e definem sítios de ligação. Isto é, se a proteína for a espícula de um vírus, há grandes chances de as moléculas virais que interagem com as membranas das células e/ou com medicamentos antivirais estarem justo em uma dessas cavidades.
O mesmo ocorre para enzimas de todo tipo. Para muitas proteínas enzimáticas, como as quinases, por exemplo, já foi bem estabelecido que a maior e mais profunda cavidade, será, geralmente, a catalítica.
A famosa analogia do “chave-fechadura” foi originada de uma das pesquisas iniciais sobre o complexo enzima-substrato, realizada por Emil Fischer, em 1894. A analogia é hoje considerada simplista demais para a variedade de circunstâncias em reações químicas e das conformações de molécula envolvidas, mas mantêm-se a importância das cavidades em processos bioquímicos e farmacológicos.
Para Paulo Oliveira, coordenador do grupo de biologia computacional do CNPEM, ainda que se soubesse faz tempo da relação entre forma e função de proteínas, havia um problema de método e uma lacuna na área. Ou seja, até o presente, não existia uma ferramenta eficaz de análise das cavidades proteicas que permitisse melhor predição dos fenômenos dependentes de sua geometria espacial.
Passo-a-passo para o KVFinder-web
O funcionamento do KVFinder-web para o usuário interessado é relativamente simples. Basta carregar o arquivo da estrutura da molécula em formato PDB, ou apenas inserir o código de 4 dígitos, e selecionar visualizações de interesse. Os resultados estarão prontos em alguns instantes.
Para muitos dos pesquisadores que já trabalharam com proteínas, há familiaridade com o formato PDB e com o banco de dados mundial disponível. Se for uma molécula que ainda não exista no banco de dados, é possível obter a estrutura elucidada no AlphaFold, ou em outros programas de modelagem com a mesma função, e assim carregar no KVFinder-web.
Uma vez processado o arquivo carregado, a página mostra a pré-visualização da estrutura espacial da molécula e as opções para visualização com características das cavidades como “volume”, “profundidade” e “hidrofilia”. É possível carregar uma grande quantidade de arquivos, ou seja, de moléculas, ao mesmo tempo e então organizar a análise segundo as informações de propriedades de cavidade. Com essa combinação de informações geométricas e físico-químicas, pode-se inferir com maior eficiência qual molécula ligante, como de um fármaco, por exemplo, seria mais apropriada em testagens.
As visualizações disponibilizadas no KVFinder-web permitem, portanto, que “as perspectivas atômica e espacial se complementem e se somem na busca de ligantes de interesse, e era difícil explorar esse conjunto antes”, comenta João Victor Guerra, autor do artigo de lançamento da plataforma.
Esta não é a primeira vez de um programa de computação com o propósito de prever a superfície de moléculas. Mas o uso de um serviço online abrangente é inédito. Além disso, o KVFinder-web é uma porta de entrada para uma plataforma de softwares já lançados anteriormente pelo CNPEM, que agora foram aprimorados. Segundo Guerra, a interface online facilita e torna atraente o uso para quem não tem muito domínio na área.
Além da melhora na acessibilidade, uma das principais diferenças entre esta ferramenta e as de outras instituições está na eficácia em delimitar sutilezas na superfície da molécula que os outros programas não conseguem detectar.
Por exemplo, quando existe uma cavidade maior, composta por várias menores, ou fendas, que possuem inclusive propriedades distintas entre elas, os poucos softwares que existiram antes da plataforma KVFinder apenas eram capazes de reconhecer, de uma maneira mais aproximada e grosseira, o espaço maior. Enquanto o KVFinder não só indica a cavidade maior, como as cavidades menores em seu interior, assim como dá características relevantes a cada uma delas.
Entre outras dificuldades de adequação à realidade das moléculas para a criação dos softwares de análise de superfície, os autores do artigo citam também a movimentação ativa e constante das proteínas no espaço (e, portanto, alteração de sua conformação e superfície, especialmente em momentos de interagir com o substrato) e citam a execução do programa em larga escala. Isto é, quando, por exemplo, se quer realizar uma análise comparativa para várias proteínas de uma vez, na intenção de encontrar uma adequada a determinado fármaco, ou então quando se quer analisar e organizar os resultados para as moléculas de uma microbiota inteira, em vez de uma espécie por vez.
Para esses casos, a otimização dos algoritmos feita para a plataforma atual, e a seleção das visualizações no serviço online, permitem solução. O que torna o conjunto de programas especial é, portanto, a combinação entre todas as novas capacidades, e o pioneirismo na interface online.
As possibilidades de uso da ferramenta são muitas – há o potencial já demonstrado, como no caso das gaiolas supramoleculares, em áreas de pesquisa para além da virologia, bioquímica e farmacologia. Além de acessar o serviço, um professor universitário também pode baixar e instalar o KVFinder-web no servidor de sua instituição, e o utilizar na sala de aula. Por fim, outro aspecto interessante de uso pela comunidade científica que o pesquisador Paulo Oliveira cita é que “mesmo que não seja o foco de sua pesquisa, às vezes o usuário só quer ir lá e ver a ‘carinha’ da proteína com a qual está trabalhando, o que é sempre fascinante e o serviço online permite isso”.
Sobre o CNPEM
Ambiente sofisticado e efervescente de pesquisa e desenvolvimento, único no Brasil e presente em poucos centros científicos do mundo, o Centro Nacional de Pesquisa em Energia e Materiais (CNPEM) é uma organização privada sem fins lucrativos, sob a supervisão do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação (MCTI). O Centro opera quatro Laboratórios Nacionais e é o berço do projeto mais complexo da ciência brasileira – Sirius – uma das fontes de luz síncrotron mais avançadas do mundo. O CNPEM reúne equipes multitemáticas altamente especializadas, infraestruturas laboratoriais globalmente competitivas e abertas à comunidade científica, linhas estratégicas de investigação, projetos inovadores em parceria com o setor produtivo e formação de investigadores e estudantes. O Centro é um ambiente impulsionado pela pesquisa de soluções com impacto nas áreas de Saúde, Energia e Materiais Renováveis, Agroambiental, Tecnologias Quânticas. Por meio da [plataforma CNPEM 360](https://pages.cnpem.br/cnpem360/) é possível explorar, de forma virtual e imersiva, ambientes de todos os laboratórios instalados em Campinas (SP) e também obter informações sobre trabalhos realizados e recursos disponibilizados para a comunidade científica e empresas. A partir de 2022, com o apoio do Ministério da Educação (MEC), o CNPEM expandiu suas atividades com a abertura da Ilum Escola de Ciência. O curso superior interdisciplinar em Ciência, Tecnologia e Inovação adota propostas inovadoras com o objetivo de oferecer formação de excelência, gratuita, em período integral e com imersão no ambiente de pesquisa do CNPEM.