Descoberta ao acaso abre perspectivas para tratamento com antibiótico que retarda início dos sintomas da doença.
Um engano cometido por pesquisador da USP em Ribeirão Preto mostrou que a doxiciclina, antibiótico muito conhecido, é capaz de proteger o cérebro do desenvolvimento das lesões do mal de Parkinson.
Fruto do maior acaso, o episódio foi descrito pela professora Elaine Del Bel, do Departamento de Morfologia, Fisiologia e Patologia Básica da Faculdade de Odontologia de Ribeirão Preto (Forp) da USP, como um serendipity – termo criado pelo poeta britânico Horace Walpole no século 16 para descobertas felizes feitas a partir de um aparente acidente.
Há quatro anos, Marcio Lazzarini, ex-aluno de Elaine, estava em estágio de pós-doutorado no Max Planck Institute of Experimental Medicine, na Alemanha. Como parte de seus estudos, Lazzarini operou 40 camundongos para induzir Parkinson nesses animais. Ao final de 20 dias do procedimento, tempo considerado normal para observar as lesões dos neurônios no cérebro, o pesquisador entrou em pânico ao verificar que nenhum dos camundongos estava doente.
O desespero inicial por acreditar na perda de todo o trabalho se transformou em grata surpresa pela descoberta de que tudo se devia a “ato falho” na alimentação dos animais. Ao invés de ração normal, os bichos receberam durante todo o pós-operatório alimento especial com adição do antibiótico doxiciclina.
A professora conta que este foi o pontapé para um estudo publicado em 2013, confirmando os achados casualmente pelo erro alimentar. Além do tratamento por via oral, o grupo de pesquisa incluiu doxiciclina injetável. E todos foram suficientes para inibir as lesões neuronais do mal de Parkinson.
Mas como essa droga age, impedindo o desenvolvimento dos sintomas da doença? Essa é a pergunta que os pesquisadores, ou melhor, as pesquisadoras – o grupo é formado por cientistas de laboratórios de Ribeirão Preto e São Paulo, no Brasil, e da Argentina e França, todos dirigidos por mulheres – respondem agora num artigo que acaba de ser publicado pela revista Scientific Reports, do grupo Nature.
Droga evita formação de ‘agregados’ nos neurônios
A doxiciclina, conta Elaine, administrada em doses muito baixas modifica a estrutura da proteína α-sinucleína e impede que ela exerça seu papel tóxico nos neurônios dopaminérgicos do cérebro.
Muitos fatores podem desencadear a doença de Parkinson, continua a professora, mas uma dessas causas é a “morte de neurônios, presentes no tronco cerebral, que produzem um neurotransmissor chamado dopamina”. Esse neurotransmissor é importante para o controle das emoções e também para o controle dos movimentos do corpo.
E aqui entra a α-sinucleína, que é uma proteína presente no nosso cérebro cuja função, até hoje, sabe-se muito pouco. Mas, nos neurônios do cérebro de pacientes parkinsonianos, a proteína aparece como uma inclusão, um corpúsculo dentro dos neurônios, formando agregados.
A ciência já provou que “grandes fibras amiloides (agrupamento em forma de placas) de α-sinucleína não são tóxicas para as células e sim os chamados estágios oligoméricos, formados por pequenas quantidades de α-sinucleína agregadas. Esses oligômeros são capazes de lesar a membrana dos neurônios”, conta a pesquisadora da USP.
Nos cérebros dos doentes de Parkinson, ao invés dessa proteína aparecer normalmente, ela se apresenta num determinado local dentro dos neurônios dopaminérgicos, numa formação que lembra um pedaço de uma esponja de aço.
O portador do problema chega ao neurologista com sintomas como dificuldade de caminhar, de manter a postura corporal e outros problemas motores que vão se agravando com o avanço da doença. O diagnóstico definitivo, porém, só poderá ser feito após a morte. E o Parkinson é confirmado então, com a detecção dessa proteína, ou o que a professora Elaine diz ser um agregado de α-sinucleína, como um pedacinho de “Bombril“, dentro da célula neuronal.
Nos maiores estudos realizados no mundo sobre o tema, os cientistas perguntam se essa agregação – esse depósito de α-sinucleína – causará a morte desse neurônio e, portanto, desencadeará o Parkinson. As pesquisadoras desses três países não responderam essa questão, mas mostraram que, na presença de doxiciclina, a α-sinucleína não forma esse agregado, não se precipita nem forma esse corpúsculo – esse depósito – nos neurônios. Elaine conta que esse agregado é chamado de corpúsculo de Lewy e foi descoberto em 1912 pelo neurologista americano Frederick Lewy.
A equipe multinacional comemora o feito que acabam de publicar como “uma coisa maravilhosa”. Elaine acredita que tenham aberto uma perspectiva de adiamento dos sintomas da doença desencadeados pela α-sinucleína. Agora, desejam que a droga possa ser testada em pacientes com a doença de Parkinson, “se não como neuroprotetor, como mecanismo auxiliar no tratamento dos sintomas da doença”.
Desafio para testes em humanos
Apesar de animadas com os resultados de seus estudos, as cientistas não se enganam quanto às dificuldades no prosseguimento do trabalho. Para que se transforme em terapia para seres humanos, existe a necessidade de ensaios clínicos, que são muito caros, antecipa Elaine. Esses estudos envolvem pesquisas em diversos centros e hospitais, com grande número de pacientes.
E a doxiciclina é um antibiótico muito conhecido, de fácil acesso e, portanto, muito barato. Elaine diz que não tem nem patente e é usado há mais de meio século. Atualmente, é tratamento comum para acne e problema periodontal. Assim, apesar de seguro, sem toxicidade nas dosagens prescritas, pode não oferecer grandes atrativos à indústria farmacêutica.
O laboratório da professora Elaine foi responsável por todo o experimento com animais. A professora Rosangela Itri, do Instituto de Física (IF) USP, tem acesso a linha de espalhamento de RX a baixos ângulos (SAXS) do Laboratório Nacional de Luz Sincrotron (LNLS, Campinas). Através desta facilidade, os pesquisadores caracterizaram a conformação da proteína em solução assim como os estados de agregação (oligômeros).
Foi a combinação de três diferentes técnicas – espectroscopia por ressonância magnética nuclear, espalhamento de raios X e infravermelho – que tornou possível perceber duas situações distintas. No meio sem doxiciclina, α-sinucleína se agrega em direção à formação de fibras amiloides. Já no meio contendo o antibiótico, a proteína forma outro tipo de agregado, com forma e tamanho diferentes.
“Forma-se um oligômero totalmente diferente, de forma esferoidal e estrutura amorfa. Nos testes em cultura de células e membranas modelo ou com animais, observamos que eles não causaram danos à membrana celular”, contou Rosangela.
Já a professora Rosana Chehin, da Universidade de Tucuman, Argentina, têm um projeto Fapesp binacional em conjunto com a colega paulista. Através dele, Rosana veio a São Paulo e trabalhou com Rosangela no Sincrotron para caracterizar as formas agregadas da proteína.
O grupo francês, liderado pela professora Rita Raisman-Vozari, do Instituto do Cérebro e Medula Espinhal – INSERM, em Paris, é especialista em estudos in vitro. Lá, os alunos argentinos da professora Rosane trabalharam com essas proteínas e esses oligômeros em culturas de células neurais humanas modificadas, os neuroblastomas.
As equipes das professoras Elaine e Rita trabalham conjuntamente há quase 15 anos. Elaine explica que o INSERM é um instituto muito importante e pioneiro na investigação da doença de Parkinson.
Repercussão: NIT Mantiqueira